Um disco indispensável: Sobrevivendo no Inferno - Racionais MC's (Zimbabwe/Cosa Nostra, 1997)

São Paulo, Palácio das Convenções do Anhembi, noite do 13 de agosto de 1998, uma chuva que quase parou a cidade e o Anhembi, que recebia a quarta edição do Video Music Brasil, o famoso VMB, prêmio de música da MTV no nosso país. O apresentador? Um tal de Carlinhos Brown que além de fazer umas batucadas, anunciava o prêmio de Melhor Clipe - Escolha da Audiência, e adivinhem quem ganhou? Nada de Skank, Paralamas, Raimundos, Barão ou até o próprio Caetano Veloso e sim o clipe de um grupo de rap, os Racionais MC's e seu clássico videoclipe Diário de Um Detento, que narrava a história de um dos tantos personagens que vivenciaram o massacre do Carandiru, em outubro de 1992, um mês após o processo de impeachment que derrubava o primeiro presidente eleito democraticamente desde 1960, o alagoano Fernando Collor de Mello, e o quadro-geral de violência tendia a piorar não somente no sistema carcerário, mas também nas periferias e nas regiões centrais das grandes cidades. São Paulo vivia de índices violentíssimos, e para você ter noção, caro leitor/ouvinte, quem vivia em comunidades como o Capão Redondo, tinha até 12 vezes a chance de morrer. O relato de um presidiário conseguiu ganhar, enfim, o Brasil e o mundo através de um conjunto com seus dez anos de trajetória, oriundos do underground, e o vídeo se tornou um clássico da videografia da música brasileira e da MTV Brasil, que passou muitas vezes. Além disto, era preciso lembrar que: no meio do discurso de KL Jay, produtor e DJ do grupo, houve uma espécie de "freestyle" um discurso antirracista cantado e improvisado por Brown, que interrompera ali num tom solidário. Também levaram a melhor naquela mesma noite com a categoria Melhor Videoclipe de Rap, anunciados pelo então casal negro da moda: o pagodeiro Netinho de Paula e a jovem atriz Taís Araújo (hoje casada com Lázaro Ramos), e o então vocalista do Negritude Junior falara que tanto o rap, quanto o funk e o pagode mostravam o papel do negro na música - verídico. Bom, quem também duvidou de todo esse sucesso dos Racionais, que tinha uma década de estrada, não imaginava o grande estouro, pois haviam lançado em dezembro de 1997 um dos discos mais emblemáticos que ajudou a colocar o hip hop em um dos grandes patamares da música popular brasileira, com um discurso realista das favelas, a violência, críticas contra o sistema sociopolíticoeconômico, de caráter relevante para aqueles que não tinham o que podemos considerar voz e vez entre boa parte do povo. Sim, falar de Sobrevivendo no Inferno é falar de um álbum que, como poucos, transpôs a realidade das vítimas do abuso de poder, sejam dos políticos, do sistema carcerário e enfim: KL Jay, Mano Brown, Edi Rock e Ice Blue atacavam novamente com versos que se destacariam pela forma de ataque direto aos que ignoram as tragédias vivenciadas pelo pessoal suburbano. A capa, feita por Marcos Marques, diretor de arte da revista Raça, surgiu após uma ligação de Blue, e a cruz foi inspirado na tatuagem de Brown no braço, trouxe também fotos clicadas por Klaus Mitteldorf, todas na região do Capão Redondo, com direito a foto de um sujeito de costas, armado, entre as faixas e um dos versículos do Salmo 23, o mesmo salmo usado na capa deste também.
Sobrevivendo no Inferno mal começa e já temos uma reverência ao grande mestre do suingue, estamos falando de Jorge Ben e seu tema de 1975 Jorge da Capadócia, gravada em Solta o Pavão e também por Caetano Veloso em seu disco Qualquer Coisa, ambos no mesmo ano, aqui ganha uma versão tendo como base Ike's Rap II, do Isaac Hayes, e aqui o grupo faz uma releitura fiel que antecede o que vem por aí neste clássico do rap nacional; na sequência, temos a faixa Gênesis, que nada mais é do que uma vinheta de 25 segundos, com Brown dizendo "Deus fez o mar, as águas, as crianças o amor..." e expõe o lado suburbana, com ruídos de sirenes e admite estar Sobrevivendo no Inferno realmente, e dá a deixa; a deixa é para o tema que abre com relatos sobre os jovens negros de periferia que sofrem dos abusos policiais, sobre o pouco espaço em universidades - soa como uma propaganda de TV ou de rádio a respeito do racismo, mas é Primo Preto, "mais um sobrevivente" que passa o bastão para Mano Brown soltar os versos de Capítulo 4, Versículo 3, da célebre frase "apoiado por mais de 50 mil manos", com os melhores 8 minutos do hip hop nacional, não perdoam ninguém: nem playboy, nem o próprio sistema, rendeu até uma interpretação ao vivo no VMB daquele 1998 fazendo a multidão ir ao delírio com a poesia suburbana de Brown que soa mais atual do que nunca no ponto de vista, tanto para os fãs quanto para os críticos, que manjam mesmo; a faixa seguinte mantêm essa narrativa com uma pegada das crônicas periféricas que ambientam, é a mais longa do álbum: Tô Ouvindo Alguém Me Chamar, com Brown na pele de um mano baleado a mando de um antigo parceiro de crime, que não tem nome, mas é chamado de Guina - este, preso, que achou que foi o tal mano que o entregou, e sente seus últimos momentos recriando uma narrativa, com uma chance de poder mudar sua vida caso escapasse, são 11 minutos e 13 segundos que não fazem feio, e mantendo o tom que marca as canções do álbum; uma narração de futebol é o que inicia a música Rapaz Comum, de Edi Rock, é onde ele também põe sua visão sobre a vida de um cidadão negro da periferia, e se imaginando mais uma vez como seria o seu final sendo um dos tantos, ganha um baita destaque no repertório do conjunto; e ainda temos um tema instrumental sem título, mas creditado assim ... - isto mesmo, três pontos, é um intevalo com uma pegada bem funky, lembra a base de alguma canção do Isaac Hayes ou até do Funkadelic, seja lá qual artista lembra, mas já dá a antecipada para o que vem por aí: "São Paulo, dia 1º de outubro de 1992, 8 horas da manhã..." e eis que assim abre Diário de Um Detento, inspirado em um relato do ex-presidiário Jocenir, um dos sobreviventes do massacre do Carandiru onde 111 presos foram mortos pela polícia, e que com a voz de Mano Brown ganha uma potência, e se tornou um dos maiores temas do hip hop brasileiro, embora tendo seus 7 minutos e 33 segundos que nos impressionam pela crônica suburbana que ambienta os versos, que conquistou o Brasil e o mundo inteiro também, já que o grupo têm seu valor pelos fãs de rap nos quatro cantos deste planeta, que ajudou a render 2 estatuetas do mesmo VMB já citado anteriormente; em seguida, o disco segue a lançar temas de peso, Periferia é Periferia (Em Qualquer Lugar), por exemplo, traz ainda essa mensagem de ativismo social onipresente nos versos do tema, com um perfil bem storyteller como têm em vários raps, com citações de trechos de canções do GOG, do Thaíde & DJ Hum, Sistema Negro e dos próprios Racionais, como Homem na Estrada e também Fim de Semana no Parque já nos minutos finais; parece até coisa de doido, mas uma rádio sintonizada num tema do Boi-Bumbá Garantido, e ainda tem um trecho de Vem Quente Que Eu Estou Fervendo na versão do Barão Vermelho, como se fosse uma busca da música boa para acompanhar a jornada de Edi Rock em Qual Mentira Vou Acreditar?, que traz aqui uma pegada bem parecida com os temas de gangsta rap, com Brown dando um toque a mais, e aqui o personagem começa a suspeitar de tudo o que falam, qualquer desculpa que acaba soando como uma mentira em meio à curtição da vida, nesta aqui até Blue também puxa alguns versos também; e há também uma presença de pessoas que contam suas histórias envolvendo seu passado com drogas, abrindo de vez Mágico de Oz, também de Rock, continua com esse show de pérolas realistas do subúrbio que acabam soando como uma mensagem reflexiva sobre as crianças perdidas no mundo da cola, uma atenção ao ler nas entrelinhas os versos; mais adiante, ainda temos aqui um Mano Brown que revê suas memórias do passado humilde através de Fórmula Mágica da Paz, composta quando morava em Cohab (Conjunto Habitacional), e sua situação sempre foi uma moradia segundo ele, e dessa vivência nas quebradas e esse acesso de nostalgia o fazem botar num monte de lembranças que passam a cada verso dos 10 minutos que fazem parte da faixa, e a tal fórmula mágica é uma espécie de saída do mundo das drogas e da violência, e aqui faz uma citação ao Cemitério São Luís, aonde muitos haviam sido enterrados após morrerem em conflitos, e ainda deixa uma mensagem de esperança às famílias que haviam perdido filhos e parentes e pede que busquem a tal Fórmula nos últimos minutos complementados por versos cantados como "Agradeça a Deus e aos orixás" repetido muitas vezes; para terminar, o álbum fecha com a mesma pegada melódica de Jorge da Capadócia, mas desta vez com Brown dedicando à todas as comunidades paulistas "...as grades nunca vão prender nosso pensamento" e também Ice Blue complementando a mensagem de Salve, que também acaba reverenciando às comunidades periféricas brasileiras e também a Jesus Cristo, fechando com um "paz" deixando assim um positivismo aos manos e minas, e afirmando que o rap é a trilha sonora do gueto, o que nunca deixou de ser verdade.
O hip hop até então tinha representantes com pouco destaque nos grandes veículos, embora nomes como MV Bill, Cidinho & Doca, o próprio Planet Hemp e também Gabriel O Pensador levantavam a bandeira carioca do cenário, a Cidade Maravilhosa era mais acostumada com o funk, que se expandiu até hoje. Por isso que São Paulo se tornou a capital nacional do rap brasileiro, trazendo nomes como Thaíde & DJ Hum, PMC & DJ Deco Murphy, DMC (D Menos Crime), GOG, Pavilhão 9, Facção Central, Faces do Subúrbio entre outros, mas foi o Racionais MC's que elevou o rap a outros níveis, com o perdão dos colegas de geração. Em pouco tempo, o grupo estava vendendo 200 mil cópias, acabou dando uma visibilidade enorme, em pouco tempo começaram a receber propostas para se apresentar inclusive na Rede Globo, porém o grupo foi contra e evita fazer esse tipo de performance na emissora dos Marinho até hoje. Em 1998, já era mais de um milhão de cópias vendidas, ou seja: pra quem achava que só uma loirinha de rosto simpático apresentadora de programa infantil ou grupos de samba romântico, ou só duplas sertanejas com suas canções melódicas podiam bater esse número, o grupo seguiu a lógica de Pessoa: e não sabendo que era impossível, foram lá e fizeram a coisa acontecer, é o álbum mais vendido do hip hop brasileiro até hoje, embora lançado por um selo independente, o que deixa os executivos boquiabertos e em dúvidas. O disco merece mesmo todas as honrarias, pelo conceito, as letras e tudo mais, não é à toa que ele recebeu o 14º lugar na lista dos 100 melhores álbuns da música brasileira feita pela Rolling Stone daqui, e virou até presente do Papa Francisco que o ex-prefeito Fernando Haddad oferecera, e talvez o Sumo Pontífice deva ter ouvido e compreendido a mensagem daqueles que têm voz e vez para combater todos os tipos de desigualdades sociais combatida desde os primórdios da civilização humana brasileira.
Set do disco:
1 - Jorge da Capadócia (Jorge Ben)
2 - Gênesis (Mano Brown) - vinheta
3 - Capítulo 4, Versículo 3 (Mano Brown)
4 - Tô Ouvindo Alguém Me Chamar (Mano Brown)
5 - Rapaz Comum (Edi Rock)
6 - ... (Edi Rock) - instrumental
7 - Diário de Um Detento (Jocenir/Mano Brown)
8 - Periferia é Periferia (Em Qualquer Lugar) (Edi Rock)
9 - Qual Mentira Vou Acreditar? (Edi Rock/Mano Brown)
10 - Mágico de Oz (Edi Rock)
11 - Fórmula Mágica da Paz (Mano Brown)
12 - Salve (Mano Brown/Ice Blue)

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