Clics Modernos - Charly García (SG Discos, 1983)

Nunca a tecnologia do futuro esteve tão perto e tão globalizada quanto nos anos 1980. A princípio, era a modernização da televisão com vários canais com suas antenas parabólicas, o surgimento das novas mídias físicas que até então eram sinônimos de ostentação, como o videocassete e o disco compacto, ou o famoso CD como nós conhecemos onde davam para colocar 80 minutos de muito som, e os computadores começavam a se diminuir, ficando cada vez mais simples e com novas utilidades. Mas, quem disse que a tecnologia futurística da época ainda é nostálgica, vista até como novidade, pode se sentir mais ainda em 1980. Sintetizadores, teclados imitavam sons de instrumentos de corda e sopro, e era possível fazer quase tudo sem depender de um monte de músicos e instrumentistas para fazer muito trabalho. A qualidade sonora cada dia evoluía mais, os estúdios tinham agora como levar o som digital desenvolvido ainda no final dos anos 1970 para diversos lugares do mundo. Foi também quando a democracia voltava a respirar em países latino-americanos que estavam sob regime/ditadura militar, como no caso da Argentina - que, em março de 1976, sofrera um golpe de estado e por anos a liberdade de expressão, muitas pessoas acabaram sendo perseguidas, as que não sobreviviam, eram mortas ou desaparecidas da pior forma. Enquanto as que resistiam, ou buscavam fugir, ou conseguiam escapar, mas aguardando discretamente e em silêncio o despertar democrático do país. Durante o período de abril a junho de 1982, o país se viu em uma situação arriscada - a disputa pelo território das Ilhas Malvinas, pipocando de vez a velha rivalidade entre Argentina e a Inglaterra dando como vencida a batalha pelos britânicos - com isso, Leopoldo Galtieri deixa de assumir o papel como presidente argentino renunciando 4 dias após o desfecho. Durante 14 dias, quem assumiu foi Alfredo de Saint-Jean e em seguida o último presidente militar - Reynaldo Bignone acabou por segurar o comando até dezembro de 1983, bem exatos menos de dois meses após uma nova eleição presidencial, como parte de um processo de reorganização da democracia argentina na qual venceu Raúl Alfonsín. Com isso, nomes que estavam sendo proibidos de divulgarem sua cultura e suas artes, enfim, puderam retomar ao país sem medo de sofrerem censura. Nomes da música como Nacha Guevara, León Gieco, Piero, Ariel Ramírez, Horacio Guaraní e Mercedes Sosa - ícone da música daqueles tempos e de sempre - voltavam a dar voz e vez. E nomes que cantavam as verdades sobre a Argentina daqueles anos, mas sempre com mensagens quase indecifráveis para os militares por soarem inteligente demais, pareciam estar felizes e mais eufóricos - um destes era Charly García que já era aclamado à frente de conjuntos musicais como Sui Generis, La Máquina de Hacer Pájaros e em 1978 com o Serú Girán, se tornava um ícone da resistência. O rock começava a acontecer de forma vangloriosa e bandas como Riff (do lendário guitar her
o Pappo), Los Abuelos de la Nada (formado por Miguel Abuelo em 1967 e reformulado em 1982), Virus, Sumo, Enanitos Verdes, Soda Stereo, Patricio Rey Y Sus Redonditos de Ricota formavam a nova trilha sonora de uma Argentina renascida do medo e do ambiente neblinado da ditadura. García estava iniciando sua carreira como artista solo depois de quatro anos com o grupo Serú Girán, que montou com David Lebón (Pescado Rabioso, Pappo's Blues, Polifemo) na guitarra, Pedro Aznar no baixo e Oscar Moro na bateria - em 1981, Aznar foi para os EUA cursar música e o grupo deu um tempo em 1982 após lançar um disco ao vivo com uma faixa inédita que levou o nome interessante No Llores Por Mí, Argentina com um clima discreto e ainda passado a fase campo de batalha nas Malvinas.
Foi durante 1982, após a pausa do Serú que Charly dedicou-se a dois trabalhos como artista solo: o primeiro foi a trilha de Pubis Angelical, baseado num livro homônimo de Manuel Puig dirigido por Raúl de La Torre, e o segundo foi um álbum solo mais por conta própria, que levou o título de uma das faixas, Yendo de la Cama al Living - onde contou com Aznar, Spinetta e Nito Mestre, velho conhecido da dupla Sui Generis, e, a propósito, sairia ainda em disco duplo, mas recentemente, Yendo saiu apenas em um disco só  - sem a trilha sonora. García decidiu fazer sua primeira gigantesca apresentação solo no estádio Ferro Carril Oeste onde além de um megacenário contou com uma banda de peso formado por membros de grupo Los Abuelos de La Nada - Cachorro López no baixo, Gustavo Bazterrica na guitarra e Andrés Calamaro nos teclados, fora do Abuelos só o baterista Willy Iturri. Charly havia produzido o primeiro long-play dos Abuelos meses antes e estava trabalhando futuramente com Los Twist, que trazia uma vibe anos 50/60 e tinha como seus principais membros Pipo Cipolatti nos vocais e guitarras e Fabiana Cantilo nos vocais, resumindo: ele estava de olho no que pintava de novo no cenário roqueiro e incentivando as bandas. Enquanto a ditadura ruía nos seus últimos meses, Charly viajava para os EUA onde decidiu buscar novos ares e comprou sintetizadores, pegou estrada rumo a New York onde decidiu ali se instalar para gravar seu quarto (ou terceiro) disco solo - finalmente conseguiu no lendário Electric Lady onde os responsáveis acharam engraçado aquele sujeito do bigode bicolor chegar com seus instrumentos, e foi só mr. García mostrar o dinheiro que já ofereceram as melhores salas de gravação e um engenheiro de som, um rapaz de nome Joe Blaney (tendo no currículo trabalhos com o The Clash) foi o requisitado para esta missão possível, que, ao lado de Charly, conseguiram buscar um som perfeito e moderno para a época. Além de Charly programar efeitos, teclados e baixo Moog, bateria eletrônica e tocar guitarra, Aznar participou como baixista de algumas faixas, o álbum contou com Larry Carlton - famoso por ter trabalhado com Steely Dan - nas guitarras, Doug Norwine no saxofone e Casey Scheuerell na bateria em algumas faixas - um time pequeno, mas capaz de fazer grandes coisas em um disco. Com nove faixas e a duração total de 34 minutos, o disco que chegou a ter o título provisório de Nuevos Trapos - recebeu o célebre nome de Clics Modernos após o fotógrafo Uberto Sagramasso junto de Charly terem encontrado um grafite de um corpo todo de preto com um coração em destaque, e, ao lado os dizeres Modern Clix, que na verdade era uma banda americana que fazia um som reggae e punk - e mal sabiam eles (o grupo de Nova York) que esse nome seria muito cultuado como o de um disco clássico do rock argentino.
O disco abre logo de cara com um tema extremamente pop, aqueles ares neowavísticos e - temos aqui Nos Siguen Pegando Abajo (Pecado Mortal) onde se nota referências sobre a censura moral, o abuso de poder dos militares e a violência brutal - temáticas envolvendo a ditadura, muito presente no repertório, o arranjo é simplesmente puro pop internacional feito por argentinos; na faixa seguinte, um tema com ares mais profundos, soturnos e com a cara dos 80 - No Soy Un Extraño carrega aquele clímax lento, sofisticado em torno de uma narrativa sobre um argentino que sabe que Buenos Aires não é a que falam na imprensa, e ainda coloca em versos as transformações urbanas que se passam na cidade e não poder enfrentar as mudanças com a mesma atitude ou usar o mesmo parâmetro baseado em duas realidades distintas - há claras referências ao processo de redemocratização nos versos - pelas entrelinhas; a próxima música é uma espécie de salsa à moda oitenteira do jeito que a cartilha new wave exigia na sonoridade, Dos Cero Uno (Transas) é um tipo de ode à metamorfose do artista que antes tinha a índole do hippie dos cabelos longos e das canções de protesto que torna-se um protótipo de artista new-wave com o corte mais curto e roupas diferentes com marcas de grife, descrente de que possa parar de fumar - apenas percussão e sintetizadores mais a voz em dois minutos quase autobiográficos (será?); adiante, um Charly voltado para a sensatez crítica e com tons voltados a princípio em uma relação, Nuevos Trapos é bem oitentista e soando como se fosse um Devo ou B-52's com tons dark, a letra envolve uma relação amorosa como em diversas canções de mr. Say No More, mas com claras alusões ao governo da época "Habiendo compartido aquel terror/Habiendo convivido en esta desolación total" (Havendo compartilhado aquele terror/Havendo de conviver naquela desolação total - tradução livre) e com Doug Norwine fechando o tema com um brilhante solo de saxofone que soa como gritos de desespero de uma nação que queria romper o silêncio velado pelos militares; adiante, um tema que se converte ao mesmo tempo em hino e faz uma sacada bem crítica e ao mesmo tempo debochante pela temática, Bancate Este Defecto é um canto em que Charly fala sobre essa obsessão pelo perfeccionismo estético do corpo, e pede para que assumamos sem precisar retocar cirurgicamente - com certa razão, com a pegada evocando de forma sintetizada a levada afrocaribenha com direito à invocar Celia Cruz no seu famoso bordão "Azúúúcaaar" perto do final da canção; com uma batida envolvente e o primeiro uso de sampler dos gritos de James Brown mais uma pulsação enérgica do baixo, No Me Dejan Salir brinca com a monotonia, mas envolve também o confinamento não apenas físico, mas mental na impossibilidade de sentir, produzir e amar - e também social em tempos de regime, e o arranjo com levada bem pop dançante empolga de cara com a forte presença de elementos da época; tendo um toque mais suave, mas com a forte presença de sintetizadores, o tema Los Dinosaurios fala sobre os desaparecidos durante a época de chumbo hermana - cantores de rádio, amigos do bairro, jornalistas, pessoas que amamos e com a certeza de que os dinossauros (já entenderam de quem se trata, né?) iriam desaparecer, e a guitarra de Carlton reaparece com fuzzes mais suaves que lembram um pouco prog melódico dos anos 70; a seguir, uma música que mexe com lembranças muito amargas destes tempos sombrios jamais esquecidos, com um toque bem sombrio - lembrando rock alternativo/gótico até, Plateado Sobre Plateado (Huellas En El Mar) faz uma alusão a um dos métodos de fazer sumir com os opositores ao regime, que era o "voo da morte", corpos eram atirados do avião para o mar para de lá nunca mais, o destaque instrumental, além da presença instrumental do baixo, temos novamente a guitarra de Carlton matando a pau e o piano desfilando tons melódicos - perfeito para combinar com o conceito da música; encerrando este disco, o repertório acaba por ter uma balada doce e lenta com um piano reinando soberanamente, Ojos de Video Tape narra sobre uma suposta despedida incorporando algo mais melancólico e frio nos versos, a levada instrumental encerra o disco com a bateria marcada enquanto os sintetizadores com um solo de guitarra que traz esse ar mais emocionante, soa como o sinal do fim dos tempos de ditadura e a luz ao fim do túnel... será? Talvez, mas também prova que Charly conseguiu criar com poucos músicos um trabalho inteligente e tanto.
No final de 1983, voltou a sua Buenos Aires querida onde ensaiou o repertório para que pudesse apresentar no ginásio Luna Park, templo dos grandes eventos e também do boxe - durante os dias 15, 16, 17 e 18 de dezembro como se fosse uma festa da redemocratização argentina acompanhado de uma superbanda formada pelo trio G.I.T. - Pablo Guyot na guitarra, Willy Iturri na bateria e Alfredo Toth no baixo mais Fabiana Cantilo nos vocais, Gonzalo Palacios e Daniel Melingo nos saxofones e Fito Páez nos teclados: recorde de público imediato. Neste período, chegou a planejar um disco com Luis Alberto Spinetta, a ponto de ser divulgado com grande louvor entre os veículos de comunicação, mas que ficou apenas por algumas composições. Com o passar dos anos, o disco tornou-se cultuado e reverenciado por diversos nomes do rock não somente na Argentina, mas na América Latina em todo, fazendo com que sua mensagem fosse muito bem entendida. Com uma influência enorme, acabou rendendo honrarias dignas em listas como a da revista Al Borde dos 250 Melhores Álbuns de Rock Iberoamericano onde conquistou o 3° lugar, ficando atrás de Canción Animal, dos conterrâneos do Soda Stereo, e o 2° lugar pela revista Rolling Stone dos 100 melhores álbuns de rock argentino pela sucursal hermana. E em 23 de outubro de 2021, García chegará aos 70 anos e podemos ver que sua obra continua cada vez mais moderna e atual para a geração de hoje do que nunca - e Clics Modernos é uma das provas definitivas disto.
Set do disco:
1 - Nos Siguen Pegando Abajo (Pecado Mortal) (Charly García)
2 - No Soy Un Extraño (Charly García)
3 - Dos Cero Uno (Transas) (Charly García)
4 - Nuevos Trapos (Charly García)
5 - Bancate Este Defecto (Charly García)
6 - No Me Dejan Salir(Charly García)
7 - Los Dinosaurios (Charly García)
8 - Plateado Sobre Plateado (Huellas En El Mar) (Charly García)
9 - Ojos de Video Tape (Charly García)

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