Refazenda - Gilberto Gil (Philips/CBD Phonogram, 1975)

Corria o ano de 1973, o compositor baiano Gilberto Gil percorria Brasil afora divulgando sua música, mostrando que em seus 10 anos de carreira já fez muito que se imagina. Depois do impulsivo sucesso do clássico psico-prog-forrock Expresso 2222, lançado em 1972 após voltar do exílio no Velho Continente - em especial na Inglaterra, onde ele e Caetano Veloso, companheiro de vida e tropicalismo, aproveitaram a estadia para ampliarem sua brasilidade sonora e testemunhavam o efervescente auge de diversas bandas de rock como Black Sabbath, Yes, Rolling Stones, Pink Floyd, Genesis, Deep Purple e Led Zeppelin - e tocando em festivais como Glastonburry e Isle of Wight, e voltando aqui, viu que estava na hora de trazer um pouco de tudo, como o jazz e música pop internacional para dentro da sua mistureba sonora brazuca. Em 1973, entrou em estúdio para gravar um monte de canções que tinha composto para o que poderia ser um disco duplo, que só viria à luz em 1998, bem depois - Cidade do Salvador colocava um monte de pérolas somada a algumas canções lançadas em compactos, como Meio de Campo - uma homenagem ao jogador Afonsinho, o baião Eu Só Quero um Xodó da autoria de um acordeonista pernambucano chamado Dominguinhos, além de Maracatu Atômico - criação de Jorge Mautner e Nelson Jacobina que foi um sucesso, e Preciso Aprender a Só Ser, criação de Gil que mostrava o seu melhor naquela época. Depois de se juntar com Chico Buarque apresentando-se com a censurada Cálice, mais Elis e inclusive com o pai do samba-rock Jorge Ben no festival Phono 73, grava dois discos ao vivo em um mesmo 1974: o primeiro foi com Caetano e Gal gravado na Bahia intitulado Temporada de Verão Ao Vivo na Bahia onde apresentou releitura de outro tema de Mautner intitulado O Relógio Quebrou e uma interpretação brilhante para Cantiga do Sapo, clássico de Jackson do Pandeiro dos anos 1950, somando também Terremoto do novo parceiro musical João Donato e por fim O Sonho Acabou para relembrar os tempos em que vivia desfilando suas ideias pela Inglaterra afora. O segundo foi somente de músicas inéditas gravadas no Teatro Tuca, onde apresentou Herói das Estrelas, de Mautner e Jacobina e inclusive Lugar Comum, em parceria com o acriano João Donato, que naquela época já tinha feito sua obra clássica Quem é Quem. E falando no próprio Mautner, o poeta, ensaísta, violinista, bandolinista e kaoísta teve seu disco produzido pelo próprio baiano e também lançado em 1974 tendo dentre o time de músicos acompanhantes Nelson Jacobina na guitarra, Chiquinho Azevedo e Tuti Moreno na bateria e um rapaz chamado Roberto de Carvalho (sim, o futuro sr. Rita Lee) na guitarra e teclados - gravou Herói das Estrelas, O Relógio Quebrou e, claro, Maracatu Atômico como de lei - fechando assim o 1974 que foi marcado pelo auge do samba na época com Martinho da Vila, Clara Nunes, Adoniran Barbosa, Benito di Paula e Originais do Samba, além do sucesso de Raul Seixas com o best-seller Gitâ - o disco e a faixa fizeram enorme sucesso e o colocaram de volta meses depois do exílio nos EUA após a feitura do LP, e também do bem-sucedido disco-parceria Elis & Tom, além do misticismo suingado de Jorge Ben e sua obra-prima A Tábua de Esmeralda, ou seja, 1974 foi mais outro grande ano dentro da história da MPB.
Começava o ano de 1975, e o verão carioca era embalado pela visita de Eric Clapton à Cidade Maravilhosa, que estava se recuperando do vício em drogas ilícitas veio a dar uma passadinha por aqui mesmo sem fazer um show, a convite da Phonogram brasileira, então presidida por André Midani, o sírio-franco-brasileiro que se deu bem comandando a gravadora por aqui. E a visita de Clapton chamou a atenção,  depois de um breve encontro no Phono 73, Gil e Jorge decidiram após um evento com Clapton - onde até Cat Stevens, Rita Lee e Caetano estiveram e o God não tocou guitarra - gravar uma espécie de jam session ao vivo intitulada Gil & Jorge: Ogum Xangô onde eles passam dos limites da sonoridade e viajam na mistura, e que se tornou quase uma raridade em vinil obviamente pelo seu valor cultuado. Gil já estava namorando a música nordestina, as suas raízes desde 1972, mas nesse trabalho seguinte já era notória a influência do forró nesse disco, mas misturando também elementos do rock e do soul - e Gil soube como ninguém a acertar em cheio na mistura - o quinto trabalho de estúdio individual e décimo em geral intitulado Refazenda teve como poder ter um time auxiliando o baiano, do aclamado e consagrado produtor Marco Mazzola pilotando a mesa de som enquanto Gil ao violão e phase guitar conta com Moacyr Albuquerque no baixo, Chiquinho Azevedo na bateria, Dominguinhos no acordeom, os irmãos Hermes e Ariovaldo Contensini na percussão, o trio de flautas Jorginho, Celso Wolzenlogel e Geraldo Moreira, Ed Maciel e Bocato no trombone, e nos pistons nomes lendários como Formiga, Barreto e Niltinho - ou seja, um time de surpreender mesmo. A capa estampa o guru tropicalista se alimentando da macrobiótica - seu regime alimentício desde os tempos de exílio, seguido de uma colagem de fotos ao lado dos seus filhos, de plantas, bois e placa de veículo - tudo isso concebido pelo artista visual João Castrioto com o diretor de arte Aldo Luiz onde até Dominguinhos aparece em meio a uma imagem de pôr do sol, provavelmente no Mar da Bahia ou das águas do Rio, há de buscar explicação. O álbum já começa com um violão elétrico suingante e uma energia bem embalante, que lembra samba-rock e forró ao mesmo tempo, Ela não mede esforços e torna-se uma canção exaltando o primor e a beleza de uma determinada mulher - certamente, sua então esposa Sandra Gadelha, a "musa única, mulher, mãe dos meus filhos, filhas de amor" e faz se sentir um navegador; na sequência, uma canção de pura crítica social - a situação da seca nordestina é totalmente cantada em Tenho Sede, de Anastácia e Dominguinhos põe aqui a voz de todos os nordestinos que se sentem vítimas da seca e pedem urgentemente pela chuva, a sanfona de Dominguinhos e a orquestra de cordas destacam-se pela forma como toca e expressa o sentimento desse povo castigado pela tragédia maior (hoje, já não tanto) dessa região; a seguir, uma canção onde o solo de sanfona do sr. José Domingos de Morais floresce musicalmente a sonoridade do tema de nome Refazenda, uma canção cuja ideia principal fixava-se no conceito dos versos obedecerem um ritmo, que segundo o compositor, resultou-se numa justaposição de nonsenses e envolve a questão de ressignificar a vivência no campo e também a de refazer alguma coisa: a vida, o resgate do Tropicalismo, o flerte com a música nordestina - Torquato Neto já dizia que haviam várias formas de fazer música e que Gil prefere todas, sendo assim, uma definição gilbertogílica à sua forma; para a próxima música, uma lembrança afetiva pessoal através de Pai e Mãe em uma perfeita interpretação de chorinho que remete a sensação sobre beijar outros homens tal como beijamos nossos pais de forma fraternal, aqui o acompanhamento fica com Dino no violão de 7 cordas, Canhoto no cavaquinho e Altamiro Carrilho na flauta - um acompanhamento luxuoso que dá esse ar de tradição do samba e da MPB em geral; sem perder novamente o puro brilho, as raízes totalmente nordestinas e rurais levam à modernização do caipira através de Jeca Total - basicamente tratando da globalização do homem do campo, que vai para os caminhos da política, assiste televisão - em especial a telenovela Gabriela, exibida justamente em 1975: com uma pegada bem forrozeira moderna, Gil antecedeu provavelmente a onda dos chamados neojecas ligados à música sertaneja, à agropecuária e ao avanço das cidades interiorianas, nada mal; das gravações feitas para o disco, a única a ter sido gravada antes do LP inteiro foi justamente Essa É Pra Tocar no Rádio - gravado em 1973, envolvendo a influência da canção e de como o locutor de um programa pode anunciar tal canção dedicando a vários tipos, é aquela canção bem embalada no ritmo de forró com ares roqueiros mesclados com jazz, a música gravada anos antes contou com Rubão Sabino no baixo, Aloísio Milanez no órgão e piano elétrico, Tuti Moreno na bateria, Azevedo na percussão e o próprio Dominguinhos ao acordeon - uma canja e tanto! A próxima música deste LP surge com uma leveza e um coral de lálálá traz uma beleza sonora que marca em Ê, Povo, Ê que nos faz sentir como se estivéssemos com a vontade de viajar, de ir além e da vontade de ver o bom humor da pessoa que a gente ama; nesse clima zen-astral e suave que perdura na próxima música, Gil coloca uma visão importante de mundo sobre poder se livrar do caos e encontrar a paz pelos Retiros Espirituais onde descobrimos coisas imagináveis, e no fim de cada verso, ele sai por citar Banho de Lua, o hit de Celly Campello com um solo de violão psicodélico que nos faz viajar; adiante, ele segue a enfeitar o repertório do disco com parcerias - e não é uma parceria qualquer, é com Mautner que contribuiu na parceria de O Rouxinol, falava sobre uma ave que cantava um certo rock em chinês e foi encontrado numa pescaria, aqui o baiano tem Frederiko o auxiliando no violão; com o resto do disco fluindo otimamente com a fixação nas raízes, Gil decide adaptar um tema chamado Forró do Dominguinhos e acrescentar poesia para tornar-se Lamento Sertanejo, considerado uma espécie de blues à nordestina onde fala sobre o viver e a luta diária de quem vive no sertão, o riff choroso do violão e a sanfona ajuda muito nessa pegada; o encerramento definitivo fica por conta de um tema totalmente curto, com menos de dois minutos, e apenas o violão dando um toque, Meditação encerra o LP sob o contexto de emblematizar a ideia reflexiva e introspectiva do álbum - uma volta ao ciclo de onde tudo começa. Gil zen-budista filósofo como se imagina.
Com este LP, o baiano seguiu indo cada vez mais além do que se imagina, unindo o útil ao agradável e percorrendo o Brasil e mundo afora com sua música, e, logo de cara, é um dos discos de maior sucesso do ano. No ano seguinte, após Bethânia celebrar 10 anos de sucesso com Chico Buarque, ela decidiu juntar-se ao mano Caetano, Gal e ao próprio Gil para realizarem a magnificente turnê dos Doces Bárbaros - 4 baianos unidos pela música decidem cantar e fazerem uma verdadeira festa, mas antes não fosse continuada se Gil não tivesse sido preso por porte ilegal de maconha, o que causou desconforto e o interrompimento da tour em meio à controvérsia, mesmo com o show gravado no Palácio de Convenções do Anhembi prestes a virar mais um marcante LP duplo que foi o disco mais esperado de 1976. Sua volta por cima após a prisão foi a viagem para o Festac 77, um festival dedicado à cultura africana organizado em Lagos, capital da Nigéria onde descobrira o movimento afrobeat e um de seus representantes - no caso o próprio Fela Kuti, e dali surgiria a continuação de Refazenda, o embalante soul/afrobeat/funk à brasileira Refavela, mas aí já é uma outra história. O disco, por destacar esse renascer de Gil seja como pessoa ou no sentido musical, está presente em diversas listas dos melhores álbuns de MPB da história, em especial a dos 100 Maiores Álbuns da Música Brasileira publicado pela revista Rolling Stone em 2007 no 43º lugar, mostrando a importância desse álbum no cancioneiro maravilhoso da MPB como um todo.
Set do disco:
1 - Ela (Gilberto Gil)
2 - Tenho Sede (Dominguinhos/Anastácia)
3 - Refazenda (Gilberto Gil)
4 - Pai e Mãe (Gilberto Gil)
5 - Jeca Total (Gilberto Gil)
6 - Essa É Pra Tocar no Rádio (Gilberto Gil)
7 - Ê, Povo, Ê (Gilberto Gil)
8 - Retiros Espirituais (Gilberto Gil)/música incidental - Banho de Lua (Tintarella di Luna) (Bruno de Filippi/Franco Migliacci, versão de Fred Jorge)
9 - O Rouxinol (Gilberto Gil/Jorge Mautner)
10 - Lamento Sertanejo (Forró do Dominguinhos)(Dominguinhos/Gilberto Gil)
11 - Meditação (Gilberto Gil)

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