Um disco indispensável: Pérola Negra - Luiz Melodia (Philips/CBD Phonogram, 1973)

Como a história prova, a MPB sofreu uma grandiosa volta por cima, se recriou novamente através de um momento em que a inspiração se renovava e colocava mensagens que eram visíveis a indignação do brasileiro ao regime/ditadura militar - já iam fazer 5 anos da instauração do Ato Institucional número 5, o temido e inesquecível AI-5, que tirou vários direitos do brasileiro, até o de ter um advogado caso seja preso sem motivo algum. Enquanto nomes da bossa nova como João Gilberto e Tom Jobim renovavam sua discografias em trabalhos incríveis - o primeiro com um homônimo recheado de novidades e o segundo com um trabalho cada vez mais universal, leia-se Matita-Perê onde conhecemos a belíssima Águas de Março, um clássico que foi além da MPB. Elis Regina, com mais de 10 anos de carreira, buscando dar sua volta por cima em um disco da trilogia Elis sequenciada desde 1972 e após sofrer repulsas da imprensa e do público após cantar em um evento militar que foi as Olimpíadas do Exército - tornando-se motivo de chacota e gerando diversas piadas nas charges de Henfil no jornal O Pasquim, a ponto da própria buscar ir atrás dele para tirar satisfações. Caetano Veloso decidiu mergulhar de cabeça na onda dos discos experimentais "para entendidos" lançou o Araçá Azul, onde misturou poesia de Sousândrade, Milton Nascimento, samba de roda da Bahia e música concreta com algo surrealista para a época - o que causou um recorde de devolução seguido de uma tremenda dor de cabeça para a gravadora Philips. Gil seguiu na estrada no embalo do sucesso de Expresso 2222, lançado no ano anterior e resultado da vontade de Gil fusionar o forró do Nordeste com o jazz, o rock e elementos do soul e que o manteve consagrado. Foi o ano do sucesso das canções dores-de-cotovelo, cafonas - o que seria conhecido posteriormente como brega, marcado por nomes como Paulo Sérgio, Waldick Soriano,  Lindomar Castilho e principalmente Odair José - que lançando um disco brilhante, chamou a atenção do público a nível nacional mesmo com um de seus sucessos Eu Vou Tirar Você Desse Lugar ter gerado um forte impacto, assim como Uma Vida Só (Pare de Tomar a Pílula) que falava abertamente sobre a pílula anticoncepcional uma vez que o assunto era tabu. Maria Bethânia estava em alta com o show Drama, levou para o disco o recital com o nome de 3º Ato, já a outra baiana Gal Costa mostrou seu lado nativo e botou nas lojas o disco Índia onde ela usava um tapa-sexo entre uma saia indígena, e vestida como uma na contracapa com os seios à mostra - o disco teve que vir num lacre especial. E teve também a consagração definitiva de artistas novatos,  em especial do considerado núcleo dos "malditos": o tropicalista Jards Macalé, que vinha com um sucesso do disco anterior, e brevemente lançaria Aprendendo a Nadar, um álbum mais próximo da linguagem comercial. O brilhante Walter Franco, após a vaia tomada no Festival Internacional da Canção de 1972, lançou seu inteligentíssimo Ou Não, gerando uma visão diferente de como se fazer música brasileira para a época. O capixaba Sérgio Sampaio, apareceu naquele ano com uma marcha-rancho psicodélica bem viajandona, Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua, já vinha de uma tentativa mal-sucedida de emplacar na CBS onde um dos produtores era Raulzito Seixas, que depois tornou-se apenas Raul Seixas e gravou na mesma Philips um dos melhores lançamentos da época e logo o clássico Krig-ha, Bandolo! onde o disco todo é recheado de clássicos como Metamorfose Ambulante, Al Capone, Mosca na Sopa, Rockxixe e a emblemática Ouro de Tolo, um hit bombástico que rendeu aquele ano e o aclamou em definitivo.
Luiz Melodia: do Morro do São Carlos (RJ) para o mundo,
surpreendendo musicalmente aos 22 anos
(acervo Rubens Maia/internet)
E também um rapaz negro, vindo do morro do Estácio, no Rio de Janeiro, filho do poeta Osvaldo Melodia e de Eurídice, o único filho homem Luiz Carlos dos Santos nascido em 9 de janeiro de 1951 pegou o gosto da música vendo o pai tocar violão, mesmo que não gostasse que o menino pegasse a viola de 4 cordas, Oswaldo preferia ver Luiz como advogado formado. Contrariado, o pai acabou mudando de ideia até que o filho começasse a realmente mostrar talento e ganhasse o pai como fã e incentivador
Tocando em um conjunto chamado Os Instantâneos com Manoel, Nazareno e o primeiro parceiro Mizinho, e nessa época já trabalhava como tipógrafo, vendedor, caixeiro e músico em bares noturnos, e após concluir o ginásio (ensino médio à época), seguiu a rotina de músico tocando sucessos da bossa nova e da jovem guarda com os Instantâneos, até que essa fusão de elementos com os sambas dos morros do RJ, acabaram por chamar a atenção de um frequentador, o poeta, ensaísta e agitador cultural Waly Salomão - nessa época, Melodia estava prestes a sair do Exército, onde serviu durante um breve tempo. Waly encontrou em Melodia um gênio vindo do morro, e logo de cara, pede algumas canções a oferecer para uma cantora que estava produzindo - a cantora era Gal Costa, o show era idealizado pelo poeta e por Luciano Figueiredo, o show de nome Fatal Gal A Todo Vapor  acabou por introduzir a emblemática Pérola Negra - cujo nome da canção foi inspirada em um homossexual da mesma região que o próprio Melô, e no disco ganhou um bucolismo hippie. Logo de cara, converte-se no compositor mais desejado da MPB, pois uma outra baiana também quis gravá-lo, e justamente Maria Bethânia foi a primeira intérprete de Estácio, Holly Estácio no seu LP Drama/Anjo Exterminado, e foi preciso o sucesso das duas canções para que a gravadora Philips, por intermédio do diretor artístico Roberto Menescal (sabendo do quão estava sendo popular como compositor) - do qual Bethânia e Gal faziam parte - lançassem ele para o Brasil através do disco que mereceu o título de Pérola Negra, e o pessoal que ajudou na gravação como o produtor Sérgio de Carvalho (aqui diretor de estúdio) e Guilherme Araújo na direção de produção, e, ah, os músicos: os guitarristas Renato Piau e Hyldon, Perinho Albuquerque nos violões, guitarras e direção musical, os baixistas Luizão Maia, Fernando Leporace e Rubão Sabino, os bateristas Lula Nascimento e Pascoal Meireles, os pianistas Hugo Bellard e Antonio Perna, o percussionista Luis Paraguai mais Robertinho Silva na bateria e percussão, Dominguinhos no acordeon e Rildo Hora na gaita de boca (harmônica) mais os arranjos de Perinho e Arthur . É mole? O projeto visual, elaborado por Melodia com o artista visual e fotógrafo Rubens Maia trazia na capa e contracapa o feijão, alimento de enorme consumo nacional e no meio do fundo de feijão a capa põe Melodia em uma banheira com um globo a tiracolo enquanto a contracapa une no prato as origens de Melodia, os amigos, a família seguido dos talheres. No encarte interno, com os dados dos músicos participantes, uma foto em preto e branco de Melodia sem camisa, quase que sensualizando e encarando no olhar - profundo como dizendo que agora era a sua vez.
Melodia apresentando "Ébano" na única edição
do festival Abertura em 1975 pela TV Globo.
Com um disco onde ele foge do padrão de que negro tinha que cantar e tocar somente samba, ele chegou neste disco com tudo, mas sem a pretensão de tirar o reinado de Tim Maia, o artista de soul que estava dominando e inspirado naquela época -  em Pérola Negra, ele fusiona jazz, blues, soul, rock, forró, choro, bolero e samba, ou seja, ele une musicalmente o Brasil ao resto do mundo e faz um LP totalmente brasileiro no ambiente poético-musical. A primeira faixa é justamente um samba-choro, recordando as origens e o começo de tudo em Estácio, Eu e Você une o lado sambista e roots da MPB com uma letra onde ele fala sobre um encontro no bairro do Estácio com o acompanhamento do Regional de Canhoto, conjunto liderado pelo cavaquinista Canhoto, e com o solo de flauta de Altamiro Carrilho, que soa mágico e brilhante ao ouvirmos; a seguir, com um solo de viola executado por Perinho em Vale Quanto Pesa onde ele questiona coisas envolvendo incertezas sobre subordinar pessoas para nos humilhar, e logo de cara ganha um peso grooveado pela levada de metais com o belo refrão "ai de mim, de nós dois" num samba-funk-afrocaribenho que acaba por dar muito certo -e sem nenhuma enrolação, com os metais estilo soul puro; na faixa seguinte, contamos aqui com um dos temas que imortalizaram Melodia como um dos mais grandiosos compositores da MPB de sempre - Estácio, Holly Estácio já com Melodia ganha uma atmosfera que equilibra entre o samba-canção e o bolero com um belo solo instrumental de gaita tocado por Rildo Hora, produtor de Zeca Pagodinho, Martinho da Vila entre outros nomes do samba, e que aqui conta também com Perna ao piano, Perinho ao violão, Rubão tocando baixo, Robertinho Silva na bateria e a voz de Melô, enfim, a canção em que o eu-lírico se desiludia de vez com um amor que não deu certo tendo como cenário o Largo do Estácio consagrada no ano anterior por Maria Bethânia leva de vez na voz do autor uma senhora interpretação; trazendo consigo suas referências sonoras, inseriu em uma mesma faixa o soul e o rock através de Pra Aquietar - letra que causou um incômodo com a Censura por causa de alguns versos e sofreram adaptação, onde o peso sonoro marcado pelo dominante groove que lembra Jovem Guarda com os arranjos de Arthur Verocai e a história de um belo passeio de família no final de semana na Ilha de Paquetá - na canja, ele contou Fernando Leporace no baixo, Hugo Bellard no piano, Pascoal Meirelles na bateria e na guitarra um jovem Hyldon, futuro autor de um sucesso que já agradou muita gente na rua, na chuva ou na fazenda ou numa casinha de sapê, nada mal, com um final matador bem roqueiro pra aquietar os ouvidos de duvidosos; para a próxima música, a suavidade, o primor e a fineza se destacam de vez em um tema que soa profundo e sombrio - Abundantemente Morte é sobre a dança da morte, um cara que quase morreu ou que morreu para a vida, onde Perinho faz um som de guitarra à Barney Kessel no clássico disco Julie is Her Name (1955) como sideman de Julie London no disco, o que fica perfeito; atingindo à perfeição que buscava para colocar em seu disco, Melô não esqueceu de colocar a canção que o lançou como compositor a nível nacional - Pérola Negra, inspirado em um relacionamento com a namorada de um amigo, passa pela dúvida, pela incerteza e obsessão, tendo ali os estágios de uma paixão, e o naipe de metais entra aqui para dar um gosto a mais da música, com Sabino e Perna o acompanhando faz manter essa característica de blues/soul que a música dignamente merecia ter; mantendo essa essência roqueira, o lado roots americano com um jeitinho brasileiro perdura através de Magrelinha, uma canção que parece não ter nenhum significado definitivo e acaba soando nonsense demais, porém, com uma bela passagem instrumental de guitarra de Perinho atacando de Jimi Hendrix com estilo - a música ganhou seu culto após Caetano regravar no álbum Noites do Norte - Ao Vivo  (2001) sem perder o seu primor; com o disco rendendo cada música boa, o repertório continua com mais um hino que merece seu valor devidamente cultuado que é justamente Farrapo Humano, que traz aquela levada suingante de soul e R&B que funciona no arranjo, com Perinho, Rubão, Perna e Lula Nascimento matando a pau na bateria e que veio a causar problemas com a Censura - uma letra que falava sobre planejamento de suicídio com cacos de telha e vidro, com atmosfera funky engrossando o caldo e os metais ajudando no clímax sonoro e sem passar batido; quando o assunto é misturar sons diversos e manter um som bem brasileira, Melodia acerta em cheio com Objeto H, um blues que flerta até mesmo com foxtrot e o jazz americano dos anos 1940, mas também com o rock dos primórdios onde novamente o nonsense desfila pela poesia, às vezes a gente tenta buscar o significado do que ele quer dizer, mas fica na imaginação de cada um do que ele quer falar; o encerramento do disco é de fazer a gente ter os pés fincados no Nordeste, onde começa o Brasil historicamente, a gente acaba dançando ao som de Forró de Janeiro onde ele fala de uma moça chamada Mariquita e seu casamento que será embalado pelo forró, e aqui Melodia conta com a presença do lendário acordeonista Dominguinhos embalando esta canção, e de um dos pioneiros do underground Damião Experiença, que gravava discos extremamente vanguardistas e diz ser vindo do planeta Lamma, algo tão surreal quanto inimaginável, apesar de Damião e Melodia se conhecerem desde os tempos do Estácio, e fecha de vez com chave de ouro.
O disco conquistou de vez público e crítica, tornando-se um disco predileto de diversos nomes da MPB,  cultuado por diversos "pirados, friques e doidões" da geração desbundada e pelos caretões que ficaram fascinado com aquele negro de 22 anos que cantava perfeitamente e misturava desde forró até soul e jovem guarda. O sucesso de Melodia aconteceu in loco, embora não tenha sido um artista best-seller da Música Popular Brasileira  ao longo de sua trajetória, porém, sempre foi um artista excêntrico e original no momento de fazer trabalhos, porém, a Philips já queria logo de cara um segundo álbum e muito mais voltado ao samba do que a mistura consagrada em Pérola Negra, ele não quis e o contrato acabou - fazendo assim com que ele tivesse uma fama de maldito a ponto de não contratarem para suas fonográficas, mas a volta por cima surgiu. No ano de 1975, houve a única edição do Festival Abertura na qual nomes como Carlinhos Vergueiro - que ganhou com Como Um Ladrão, um estreante Djavan, Walter Franco, Leci Brandão, Jorge Mautner e Alceu Valença - o poeta do morro apresentou seu Ébano, que foi um dos destaques daquele festival. No mesmo ano, voltou às paradas com um samba marcante que se tornou clássico, Juventude Transviada primeiro apareceu na telenovela Pecado Capital escrita por Janete Clair, e depois no seu segundo LP intitulado Maravilhas Contemporâneas, editado em 1976, outro clássico da obra, que não tem o mesmo culto de seu antecessor, mas aí já é uma outra história. O disco teve suas canções regravadas por nomes como Arnaldo Antunes, o próprio Macalé, Pedro Luís, Barão Vermelho, Zezé Motta dentre outros nomes importantes da nossa música, e com os anos, fez Melodia desvincular-se dos típicos clichês de maldito e ter seu devido culto, mesmo após sua morte em 4 de agosto de 2017 em decorrência de um câncer, é provavelmente o disco mais vendido dele até hoje embora os números não sejam calculados em definitivo, e podemos destacar também o 32º lugar na lista dos 100 Maiores Discos da Música Brasileira pela revista Rolling Stone que destaca essa mistura brilhante por trás de uma pérola (negra) da música como um todo.
Set do disco:
1 - Estácio, Eu e Você (Luiz Melodia) - com Regional de Canhoto
2 - Vale Quanto Pesa (Luiz Melodia)
3 - Estácio, Holly Estácio (Luiz Melodia) - com Rildo Hora
4 - Pra Aquietar (Luiz Melodia)
5 - Abundantemente Morte (Luiz Melodia)
6 - Pérola Negra (Luiz Melodia)
7 - Magrelinha (Luiz Melodia)
8 - Farrapo Humano(Luiz Melodia)
9 - Objeto H (Luiz Melodia)
10 - Forró de Janeiro (Luiz Melodia) - com Dominguinhos e Damião Experiença

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