Um disco indispensável: Voices - Daryl Hall & John Oates (RCA Records, 1980)

Uma boa história contada sempre é que cada geração precisa se reciclar de uma forma para não sentir-se ultrapassada, repetente, a mesma coisa. Os anos 1980 talvez tenham sido inovadores na tecnologia e ao mesmo tempo recicláveis, capazes de trazerem um pouco do passado com uma releitura nova, modificada e atraente - o new wave é um exemplo assim, era um pouco do punk com influências vigentes dos anos 1950 e 60 com sintetizadores em peso, sons programados e arranjos minimalistas. Muita influência do doo-wop e até do soul vigente da época como os da Motown e Stax acabam tornando-se fortes influências na carreira de diversos artistas, mesmo com a presença do rock em especial dos Beatles, Stones, Beach Boys e cia. e da surf music vigente, e foi com o soul em específico que dois caras decidiram juntar-se para fazer música após se conhecerem no Adelphi Ballroom, na Filadélfia, cidade norte-americana do estado da Pensilvânia, lá por volta de 1967: Daryl Franklin Hohl, nascido na Pensilvânia em Pottstown no dia 11 de outubro de 1946, e John William Oates nascido em New York no dia 7 de abril de 1948, tiveram suas vidas mudadas nessa noite quando havia uma batalha das bandas e ambos estavam com seus respectivos conjuntos, Daryl Hall com os Temptones do qual integrava desde 1965, e John Oates com o The Masters, e nesse evento, houve um tiroteio entre gangues rivais, o que fizeram ambos usarem o mesmo elevador de serviço - logo descobrem que frequentavam a mesma Temple University, tinham o mesmo interesse por música e logo dividindo o mesmo apartamento, a ponto de uma das caixas de correio estar escrita como Hall & Oates. Porém, houve uma barreira que quase separou a dupla de trabalharem juntos: em um breve período, Oates ficou na Europa durante uma estadia prolongada, e voltou à Filadélfia notando um Daryl diferente do que conheceu em princípios, e logo decidiram montar a dupla para valer - ajudando assim logo de cara em um contrato com o empresário e produtor Tommy Mottola, que tinha a Champion Entertainment Organization, uma agência artística que cuidava de diversos artistas, e Mottola via neles uma fonte de sucessos, o que era justo. Nos anos 1970, surgia além do funk e do rock progressivo, um som mais doce e que agradava a muitos e dava um certo estranhamento da crítica: o chamado soft rock - explicando bem, pop sofisticado e em geral mais adulto, baladas mais açucaradas, com fortes influências do jazz e do R&B, que fazia sucesso nas rádios - artistas como Bread, Eagles, Air Supply e seus principais difusores - os Carpenters, formado pelos irmãos Richard e Karen que venderam milhões de cópias feito água no auge da dupla. Hall & Oates, a princípio, fazia um som que era mais calcado no country folk, basicamente algo acercado ao popular soft rock, e podemos sentir isso logo em Whole Oats, o disco que marcou a estreia da banda e ajudou Hall & Oates a logo de cara a ter sua simples notoriedade, fazendo parte do cast da lendária Atlantic Records, na qual contava com um vastoso elenco que ia desde Aretha Franklin - diva suprema da música negra, passando pelos Rolling Stones, Delaney & Boonie, King Crimson e os então best-sellers do rock 70 da época: os fenômenos de peso do Led Zeppelin e os gigantes do rock progressivo Yes, ou seja - Hall & Oates não estavam mal na foto. Mesmo assim, o disco ainda não tinha sido o sinal de hit definitivo, não vendeu muito, e mesmo assim, parecia que a banda não ia dar sinais de que seria grande pra frente - mas, em 1973 houve uma favorecida com Abandoned Luncheonette, que gerou o famoso hit da dupla She's Gone e aos poucos a dupla conseguiu espaço midiaticamente embora demorasse um pouco a explodir musicalmente
Já no terceiro álbum houve uma mudança favorável para eles, a começar pela mudança do produtor, se nos dois primeiros álbuns eles contavam com Arif Mardin, figurinha velha da Atlantic, já em War Babies, com uma sonoridade mais rock, eles contariam com Todd Rundgren, e este ainda montou com alguns músicos das sessões deste álbum o conjunto Utopia - mesmo assim, não vingou, e logo depois de War Babies, eles deixavam a Atlantic Records
Daryl Hall e John Oates no auge dos anos 80: a dupla emplacava
a cada disco, vários hits. Em "Voices" emplacaram "Kiss on My List",
"You Make My Dreams", "
E foi mudando de gravadora que a dupla encontrou o sucesso pra valer, ao assinarem em 1975 com a famosa gravadora do cachorrinho escutando o gramofone - sim, a Radio Corporation of America, a famosa RCA - sim, aquela RCA dos discos de Harry Belafonte, Benny Goodman, Chet Baker, Elvis Presley, Lou Reed, David Bowie e de Luiz Gonzaga (BR porque sim!) agora também era a casa de Daryl e de John, emplacando logo em seu primeiro álbum na casa nova que levava o nome da dupla o hit a balada Sara Smile - que não demorou muito a fazer sucesso, já deu mais visibilidade atraindo o público até pela capa que lembrava o estilo glam de Bowie, e com o sucessor Bigger Than a Both of Us a história não foi outra - a música Rich Girl emplacou no topo das paradas e conquistando o primeiro lugar, e isso ajudou com o disco de ouro, meio milhão de cópias e só indo. Depois de dois álbuns também excelentes e ao mesmo tempo seguindo a pegada de pop rock com ares soft, a banda quase passa batida com X-Static onde eles exploram a mistura do rock e do soul com a disco music, já ficando saturada depois do boom promovido por Donna Summer, Bee Gees, ABBA e Village People - mas, o tempo foi favorável e Wait For Me ajudou a banda a estar entre os 20 primeiros do Hot 100, o que é bom. Na onda do que estava acontecendo, uma nova reformulação da cena, a new wave acontecendo, o soul aderindo a elementos tech e até mesmo o punk deixando seu legado vivo pelo hardcore, Hall & Oates precisavam fazer um disco que acontecesse pra valer e fosse um grande sucesso - e foi assim que nasceu Voices, o décimo LP da dupla. Flertando elementos com o blues, o jazz, o power pop e os já citados punk e new wave 
misturando isso com fortes camadas de soul , eles encontraram ali uma fórmula ideal para o que tornaria-se o Pop 80 que ajudou a acontecer e o resto é história. Gravado logo depois de lançarem X-Static, a dupla decidiu assumir a produção de forma autoral com sessões realizadas em New York nos lendários estúdios The Hit Factory e no templo Electric Lady, o estúdio que Jimi Hendrix havia montado meses antes de morrer. Daryl na voz, sintetizadores, mandar (uma espécie de guitarra com bandolim), vocoder e percussão, John não só dando voz, mas mandando nas guitarras de seis e doze cordas mais percussão e a banda: G.E. Smith nas guitarras, John Siegler no baixo, Charlie DeChante no sax, Chuck Burgi na bateria e percussão e Jerry Marotta na bateria. Então vamos lá: o álbum já começa muito bem com How Does It Feel To Be Back, onde um riff de guitarra conquista a gente logo de cara, é a cara dos anos 80, e lá temos John Oates dando voz a um hino marcante que faz presente deste álbum, soa como um lamento de alguém que deseja ter de volta em seus braços, a sensação de solidão e de uma saudade, e isso ajuda a construir uma boa história de amor dentro da música; a seguir, o repertório do álbum continua fluindo bem, a prova disto está em faixa como Big Kids, um rock também que não deixa passar batido falando sobre a questão da imaturidade dos adultos vista como crianções, que não parecem ter crescido, e sobre estarem em busca de muita diversão - a harmonia vocal surpreende logo na escuta e isso é muito impressionante porque a dupla sempre soou afinadíssima sem pretensões de parecerem forçados, o que sempre foi provado; em seguida, com um ar totalmente new wave e parecendo que estavam a chutar uma porta, temos aqui a poesia sonora da dupla mistura de política com romance através da genial United State, onde o arranjo de guitarras e sintetizadores funciona muito bem - o que não deixa de mostrar a autenticidade sonora que este disco proporciona, e a goleada é a das melhores; em seguida, é a vez de um tema envolvendo complicações sobre o amor - estou falando de Hard to Be in Love With You, sobre a questão de estar longe da amada, confessando estar se sentindo difícil de se apaixonar - a base aqui não deixa a desejar, e ajuda a dar a deixa; como se sabe, a faixa anterior foi uma deixa para um hit - sim! - e aqui refiro-me a Kiss On My List, um clássico do repertório da dupla que foi concebido através de uma criação entre Daryl e Jana, irmã da então parceira musical e amorosa Sara Allen, sobre a sensação do beijo de uma pessoa amada estar entre as melhores coisas da vida do eu-lírico - e um fato incrível, foi uma das músicas da dupla que ajudou a ostentar o primeiro lugar nas paradas da Billboard, a segunda música em específico; mais adiante, um tema que chega a passar batido na escuta, mas não por aqui - Gotta Lotta Nerve (Perfect Perfect) não decepciona, mas renova o estilo de rock dos anos 50 com aquele ar bem new-wavístico da época e mostrando influências de grupos como Temptations e Coasters na cara ao escutarmos detalhadamente os arranjos vocais com uma coisa meio punk comportado até; adiante, temos mais outro sucesso da dupla presente neste LP, a inspiração para isto foi uma dupla em quem muitos viam Hall & Oates, os Righteous Brothers - e foi um cover deles que ajudou muito neste disco, no caso, You've Lost That Lovin' Feeling é um marco e tanto na carreira deles, aqui a sofisticação é única e os vocais soam como ouro puríssimo, intocável a letra e as harmonias - um hit e tanto; em seguida, a dupla emenda outro hit de peso (o lado B do disco é só clássicos), com uma introdução de guitarra que marca, You Make My Dreams é simplsmente aquele tipo de música capaz de fazer nos animar no dia, fala sobre essa coisa do amor tornar os sonhos realidade, ainda mais que é uma conhecida de Hollywood por ter aparecido em séries The Office, New Girl e O Rei do Pedaço além de filmes como 500 Dias Com Ela, Quase Irmãos e mais recente em Jogador Número 1 - é aqui que a dupla atinge seu ponto alto no disco, dando a essa canção o status de clássico do pop; e como não é de esperar, temos um hit escondido aqui no LP, que não fez muito sucesso na época, mas tem seu merecido culto - essa é Everytime You Go Away, com uma letra que é bem no estilo de quem tem o coração partido quando alguém deixa um encontro e leva um pedaço, detalhes aqui para a levada baladista com a guitarra à la Larry Carlton que marca a escuta, teve uma versão mais popular anos depois quando Paul Young a regravou e literalmente tirou o brilho e o primor com o excesso de sintetizadores mais pasteurizados, o que não temos na versão da dupla filadelfiana; mais adiante, o ritmo do disco volta a soar mais empolgante e acelerada, e com a perfeccionista Africa, onde John Oates conta a história de sua amada que foi ao continente berço do mundo, escutamos no início uma levada de bateria que evoca um pouco dos tambores africanos se formos sentir a referência, o arranjo mantêm a fórmula de boa parte das canções com um solo de sax de Charlie DeChante que chega a lembrar Soul Makossa de Manu Dibango nos primeiros acordes; o encerramento fica por conta de um tema bem embalante e que dá o toque final, mantendo a pegada de new wave com ligações ao R&B dos anos 1950/60 em Diddy Doo Wop (I Hear This Voices) que traz um ar nostálgico evocando Beatles nos versos e citando seu primeiro hit n° 1, Rich Girl, aqui chegamos ao veredito de que a dupla acertou e muito no repertório deste disco.
Veredito final: depois de dez anos correndo atrás de conquistar um grande sucesso definitivo, a banda enfim emplaca um disco que é tiro certeiro nos ouvidos, logo nos dando o cartão de visitas inaugural do pop 80 - sim, o pop 80 de Duran Duran, Madonna, Prince, George Michael, Cyndi Lauper, Eurhythmics, U2, Dead Or Alive, Human League, Smiths, New Order, Soft Cell, Dire Straits e até mesmo de Michael Jackson, sem esquecer Hall & Oates. Unindo diversos elementos sonoros dos últimos 25 anos, a dupla conseguiu neste disco alcançar méritos importantes como a fórmula pra ajudar a criar tendências, e em especial louvar as raízes sem deixar perder o primor, mas modernizando até - com o enorme sucesso deste LP, a dupla inicialmente bateu a casa do meio milhão de cópias, e em pouco tempo conseguiram com Voices vender um milhão e ainda sobrou tempo para juntarem mais novos materiais com o que sobraria de Voices, resultando-se no excelente sucessor Private Eyes, editado em setembro de 1981. Mas aí já é uma outra história.
Set do disco:
1 - How Does It Feel To Be Back (John Oates)
2 - Big Kids (Daryl Hall/John Oates)
3 - United State (Daryl Hall/John Oates)
4 - Hard to Be in Love With You (Daryl Hal/Neil Jason/John Oates)
5 - Kiss On My List (Jana Allen/Daryl Hall)
6 - Gotta Lotta Nerve (Perfect Perfect) (Sara Allen/Daryl Hall/John Oates)
7 - You've Lost That Lovin' Feeling (Barry Mann/Cynthia Well/Phil Spector)
8 - You Make My Dreams (Sara Allen/Daryl Hall/John Oates)
9 - Everytime You Go Away (Daryl Hall)
10 - Africa (John Oates)
11 - Diddy Doo Wop (I Hear This Voices) (Daryl Hall/John Oates)

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