Um disco indispensável: Let's Get it On - Marvin Gaye (Tamla Motown, 1973)

Então, chegamos no florescer dos anos 1970: quando movimentos de contracultura como a psicodelia atingiu seu ápice com características envolvendo liberdade, uso de drogas, rompimento de tabus e muito rock and roll, a América ainda sentia presente os efeitos da Guerra do Vietnã, o país ganhara a corrida espacial contra a URSS, a magia de Woodstock já havia surtido efeito e marcado uma geração, porém alguns ídolos da geração 60 começaram a pagar pelo preço dos vícios, exageros e da fama: Brian Jones, Alan Wilson, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison... logo John Lennon decidiu decretar o fim do sonho seguido do anúncio de Paul McCartney de que estava deixando os The Beatles - uma vez que este era pretexto para o decreto do fim da banda com a qual manteve por 12 anos, e dali os quatro começariam suas carreiras solos. A música negra se fortalecia cada vez mais na virada desta década: com a ascensão de Sly & The Family Stone, que, em 1969 lançou o divisor de águas Stand! que levou a música negra a outros patamares, assim como Isaac Hayes que construiu uma nova fórmula de soul mais romântica e sofisticada que primorou o estilo Wall of Sound de Phil Spector através do célebre Hot Buttered Soul, também lançado no mesmo ano, trazendo de volta a Stax um bom lucro depois de um ano difícil pra casa do soul de Memphis. E nascia uma estrela: o pequeno jovem Michael Jackson, que, com 11 anos já fazia música se apresentava com os irmãos no The Jackson 5, a então nova sensação da música negra, do pop da virada dos 1960 para os 1970 e também da Motown. Sim, a casa do soul de Detroit, famosamente conhecida também por Hitsville chegara a uma década de atividades desde que lançou um compacto com The Satintones e que adiante emplacara desde Mary Wells, The Four Tops, Smokey Robinson And The Miracles, Martha And The Vandellas, The Temptations, Eddie Holland, as Supremes com Diana Ross no auge do grupo, um jovem descoberto em 1962 aos 12 anos que tornara-se Stevie Wonder, e dentre os talentos da Motown, um cara que fora contratado por Berry Gordy a princípio para gravar bateria para os diversos artistas e canções da Motown, mostrava ser um letrista de mão cheia, e um cantor indescritível - este era Marvin Gaye (1939-1984). Com suas gravações que flertavam com interpretações de temas do jazz, e demorou muito a converter-se em um astro da música negra a nível de Ray Charles, Sam Cooke e Otis Redding - mas, foi gravando em parcerias que encontrou o sucesso definitivo: primeiro com Mary Wells no LP único do duo intitulado Together, e, em seguida com Kim Weston emplacou Take Two - um título pouco explorado de sua discografia, embora It Takes Two seja lembrado dos duetos de Gaye gravados. Mas, foi com Tammi Terrell que se consolidou nos grandes duetos de sua carreira, em principal com o disco United na qual emplacaram o grande clássico Ain't No Mountain High Enough que fez sucesso em 1967 e ajudoou nas vendas do LP da parceria, United - porém, a saúde de Terrell quase não ajudava a manter a dupla em pé até que lançaram em 1969 o terceiro e último LP da dupla - Easy, que não era nada fácil devido ao tumor cerebral que Tammi estava sofrendo e que abalaria sua saúde. A morte de sua parceira de música em 16 de março de 1970 o abalou e fez com que ele entrasse em uma depressão, a ponto de desistir da música - mas, quando o irmão Frankye voltou da Guerra do Vietnã, decidiu se abrir como um artista mais politizado, debatendo questões sociais, criticando a guerra, a desigualdade e até abordando a ecologia como fez em sua magnum opus What's Going On, que ele suou a camisa para conseguir lançar o disco como ele sempre quis - o que foi uma sorte para ele, pois tornou-se o divisor de águas não somente na sua carreira, mas também na música negra em toda, no soul pelas mensagens espalhadas ao longo das 9 faixas e que teimou em fusionar bem o jazz com elementos de funk, o que deu certo.
Marvin inspirado nos anos 70: com a crista do sucesso
de "What's Going On", ele gravou tanta coisa
que, o que ficou de fora, sobrou para mais adiante
em "Let's Get It On"
Com essa nova fase, recebeu a oportunidade de renovar seu contrato com a Motown por 1 milhão de dólares, o que ajudou ainda mais para ele ter total liberdade criativa e incentivando seus colegas a abrirem a mente para seus discos, como no caso de Stevie Wonder - que iniciou em 1972 através de Music of My Mind uma nova fase indo para direções mais balanceadas e com puro groove. Em 1972, houve mais outra oportunidade de Marvin mostrar novamente na trilha sonora de um filme de suspense policial do estilo blaxpoitation, Trouble Man dirigido por Ivan Dixon na qual mostra um detetive particular que busca fazer justiça com as próprias mãos - a trilha de Marvin com temas inéditos pegou carona nas trilhas de filmes blaxpoitations como a de Superfly concebida por Curtis Mayfield, e a célebre Shaft, que rendeu ao autor Isaac Hayes um Oscar - sua glória máxima. Ao mesmo tempo, juntava gravações ainda realizadas no período de What's Going On, nos estúdios da Motown em Detroit, cidade que também abrigava o Golden World, e mais tarde em Los Angeles no estúdio Hitsville West de fevereiro a julho de 1973 com Ed Townsend (1929-2003) na produção com Marvin. Dentre os músicos presentes, guitarristas como David T. Walker, Eddie Willis e Louis Shelton, os baixistas Winston Felder e James Jamerson - o homem do groove da Motown, Paul Humphrey e Uriel Jones na bateria, Victor Feldman e Emil Richards no vibrafone, Eddie "Bongo" Brown na bateria e bongô, mais o piano de Joe Sample, Marvin Jerkins e o próprio Gaye. Editado em 28 de agosto de 1973, o décimo-quarto LP individual, décimo-terceiro de estúdio e décimo-nono da discografia em geral - se contar com os discos em colaboração - Let's Get It On mostrava uma imagem dele meio chacoalhada em estúdio como se estivesse com raiva, se distraindo ou até achando graça de algo, era a imagem de um homem com mais de 30 anos inspirado e disposto a falar de tudo, e era assim que Marvin parecia se ver. Ao botarmos pra rodar este álbum, somos pegos de surpresa por um som de guitarra wahwah que sensualiza pela canção e se destaca, e é a deixa para ouvirmos Let's Get It On, com um arranjo maravilhoso, numa canção que trata sobre uma declaração enganosamente simples de positividade sexual, e curioso que foi interpretada e composta por um homem que despertou do trauma de crescer com abusos físicos e mentais por um pai pregador que convencia seus filhos a considerarem o sexo vergonhoso, e essa música é uma libertação de tabus puríssima, a voz aqui soa plenamente onde ele exagera dos tons vocais e marcante não só no álbum, mas como nos filmes em que já apareceu; a faixa seguinte, novamente uma balada, ela ainda é o ponto do meio-caminho dado no começo do álbum, e a faixa seguinte intitulada Please Stay (Once You Go Away) nos oferecendo uma bela harmonização dos vocais, uma percussão marcante e uma orquestração maravilhosa em um convite de Marvin para que a pessoa amada fique com ele, admitindo que não conseguirá estar de pé ou dormir e fecha cantando que jamais poderia ter vindo ao lugar - e talvez esta amada tenha concordado muito; em seguida, temos uma letra que soa bem curiosa e ao menos um pouco premonitória até pelo título - If I Should Die Tonight traz um último pedido à amada, sabendo que não era o desejo dele, um homem sortudo e cheio de sonhos - a orquestra dá um tom mais melódico e profundo, e Marvin traz peso emocional ao cantar cada verso desta; mais adiante, a próxima faixa deste álbum ajuda a manter a pegada sensual não somente nos versos, mas também na parte instrumental, Keep Gettin' It On é basicamente uma canção gêmea da própria e já dita Let's Get It On, que traz na escuta melodias semelhantes, um arranjo igualzinho, com coral e orquestra dando o ar da graça, e a guitarra no fundo engrossando o caldo, enquanto Gaye canta sobre o "deixar rolar" como colocar o amor um ao outro acima de tudo para que cada filho de Deus como o vê, possa viver em harmonia uma vida feliz e digna, e o som rolando solta sem nenhum problema na audição; adiante, o repertório tenta soar o contrário do que era o começo mas, muito diferente da expectativa, o resultado sai melhor do que esperava mais ainda nas faixas a seguir - Come Get to This é uma forma de como ele expressou sobre separação e frustração sexual, com ares de nostalgia dos versos em que pede por uma noite mais não querendo ficar esperando demais, aqui com um arranjo vertido para o jazz dos anos 50, mas com uma jovialidade cheia de grooves da época; a seguir, mantendo o primor da faixa anterior, uma atmosfera jazzística embalante com um tom funkeado, sem deixar a proposta de agradar poeticamente e musicalmente, ainda temos mais outra canção que emocione, Distant Lover é um exemplo de canção perfeita com letra confessional, o anseio que o eu-lírico sente por uma amante que está a milhas de distância enquanto pede a volta dela lamentando o vazio que complementa sua ausência, uma baladinha sofisticada, lembrando o estilo clássico da Motown nos 60 com o peso das cordas e dos vocais que ajuda no primor; na sequência, tendo um forte e extremamente picante sex-appeal tanto na letra quanto na música, You Sure Love to Ball é totalmente marcada pela sensualidade que é notada logo pelos gemidos ousadíssimos na introdução, um sax tão sedutor (e pensar que Careless Whisper entre outras fizeram escola) com um quê de explícito que se tornou uma das mais controversas faixas do mesmo na qual envolve sexo (sim!), mas sem deixar de destacar o arranjo que dá um empurrãozinho a mais nessa música; encerrando o LP com tudo, essa jornada de sexo e aventuras amorosas, eis que ainda Gaye dá o seu último suspiro neste álbum através de mais um belo petardo que complementa o repertório com Just to Keep You Satisfied é o ponto final de uma série de confissões amorosas que, assim como em outras faixas com ares mais sofisticados, um soul fino diga-se de passagem, com ares mais sinfônicos, fala sobre a sensação melancólica de um casamento em ruínas, prestes a terminar, e era assim que o próprio casamento de Marvin com Anna Gordy, irmã do presidente da Motown, estava se situando, gerando o fim em 1977, o que é notório até na forma em como canta.
Marvin alçava voos diferentes, sempre maiores, e nesse disco era como se deleitar em uma noite de amor ou em infinitas noites entre um jantar a dois movido a vinho e aperitivos até um pouco picantes, com iluminação feita por velas - basicamente a ocasião ideal para ouvir este álbum. O álbum repetia o sucesso constantemente comercial justamente do próprio What's Going On, e, logo em seguida, excursionando mundo afora e em outubro lançaria um dos discos de duo mais marcantes da década e um dos clássicos da Motown - Diana & Marvin, ao lado da ex-Supreme que estava a colher frutos da sua nova jornada como solo, e assim como Let's Get It On, teve gravações realizadas neste período, mais precisamente em 1971 - mas sem muito tempo para promoverem o LP juntos, uma vez que em seguida Marvin subiria ao palco em janeiro de 1974 em Oakland o seu segundo LP ao vivo intitulado Marvin Gaye Live! na crista do sucesso do álbum falado nesta resenha. Passados mais de 45 anos de seu lançamento, Gaye manteria sua marca registrada para sempre na história da música pop em geral por um estilo aberto e ajudar a Motown permanecer-se como uma gravadora atemporal e moderna na música negra, o que é verdade. Prova disto é que este LP figura em listas importantes como a da Rolling Stone, aquela famosa dos 500 maiores álbuns ocupando uma digna posição de 165° lugar, e em 1985 a NME deu o 46° lugar na lista dos 100 Melhores Álbuns de Sempre, e até mesmo Elvis Costello indicou em uma lista da Vanity Fair chamada 500 Discos Que Precisa, e, óbvio, segue presente na lista dos 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer - e vamos deixando rolar o amor e o som sem preocupar com absolutamente nada.
Set do disco:
1 - Let's Get It On (Marvin Gaye/Ed Townsend)
2 - Please Stay (Once You Go Away) (Marvin Gaye/Ed Townsend)
3 - If I Should Die Tonight (Marvin Gaye/Ed Townsend)
4 - Keep Gettin' It On (Marvin Gaye/Ed Townsend)
5 - Come Get to This (Marvin Gaye)
6 - Distant Lover (Marvin Gaye/Gwen Gordy/Sandra Greene)
7 - You Sure Love to Ball (Marvin Gaye)
8 - Just to Keep You Satisfied (Marvin Gaye/Anna Gordy Gaye/Elgie Stover)

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