Um disco indispensável: Titanomaquia - Titãs (WEA Music, 1993)

Então chegamos ao ano de 1992. Sim, o emblemático ano de 1992 em que o sertanejo com sua quantia infinita de duplas ainda dominava as paradas, enquanto o rock e a MPB ficavam ainda saturados com críticas onde sempre detonavam as mudanças artísticas da carreira de um cantor ou de um grupo. O ano em que a era Collor ruía rapidamente com a entrevista de Pedro, irmão do presidente, para a revista VEJA mostrava o que ele sabia do esquema encabeçado por Fernando Collor e PC Farias - o Batman e Robin das Alagoas que tomaram o poder e perderam logo em seguida com o impeachment que derrubou Fernando Collor de Melo, o primeiro presidente eleito de forma direta em quase 30 anos. A novela sensação da época era Pedra Sobre Pedra, que misturava realismo fantástico com um pouco de literatura brasileira, e a irreverente Deus Nos Acuda, que unia um pouco da realidade brasileira da época com um pouco de humor e ficção, e ainda contamos com De Corpo e Alma - que sofreu um declínio e saturação com a morte da atriz Daniella Perez, filha da autora Glória Perez, vítima de um crime brutal cometido por um colega de novela preso e liberto anos adiante. E foi o ano em que duas bandas celebravam 10 anos de história, estrada e de muito rock and roll - os cariocas dos Paralamas do Sucesso, que começaram como um grupo que flertava com o estilo The Police e depois unificaram sons do mundo, cruzando com um estilo mais para world music, sem perder o primor roqueiro, e os Titãs, que começaram com clichês new-wavísticos, bregas e até vanguardistas, mas, a partir do terceiro álbum, a magnum opus Cabeça Dinossauro, começaram a ir além, cruzando entre vertentes do punk e do hardcore misturando elementos de reggae, techno e funk, universalizando também o cardápio de influências sonoras. O grupo, enfim, encontrou seu amadurecimento, e com isso foi mergulhando para um pop cada vez mais natural, mais condizente com a época, tendo sua aclamação no Rio de Janeiro em um show no Teatro Carlos Gomes que rendeu um prejuízo devido às cadeiras que foram massacradas pelo público, e olha que a banda havia sido integrada ao cast de artistas da Poladian Produções, a maior agência de artistas da época. Sucesso nacional, agora era hora de inovar sempre, ir mais além. Com o seu sucessor, de título sempre bem duvidoso, Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas onde o flerte com o techno, o pop experimental carregado excessivamente de synths e programações de instrumentos e novamente como em Cabeça Dinossauro, com a produção brilhanterríssimamente de um Liminha que era consolidado como o George Martin da geração Rock Brasil consolidada nos anos 1980. Seguido do ao vivo cheio de falhas, mesmo sendo um dos favoritos de alguns fãs, Go Back, segundo o baixista Nando Reis, uma das piores gravações da banda, no Montreux Jazz Festival, que sofreu retoques em estúdio. E a banda antecedeu até mesmo o manguebeat pernambucano ao gravar com a dupla de cantadores Mauro & Quitéria, habituées da praia de Boa Viagem em Recife, e ali em Õ Blésq Blom foi como unir um pouco do tropicalismo com a vanguarda contemporânea e elementos da época mais samba e reggae, e, segundo uma crítica da BIZZ à época (edição 53, dezembro de 1989), o disco era visto como um atestado de maioridade que o rock nacional vinha esperando durante o decorrer da década de 1980. A partir de 1991, começa uma desconstrução dos experimentos pop, da identidade sonora que vinham meio que descobrindo e a ruptura de uma parceria vindoura com Liminha que ajudou a render discos de ouro e ajudou a erguer a banda no mainstream definitivo. Por conta própria, eles começam a produzir de forma independente sem Liminha, que já estava de saída da WEA Music como diretor artístico e também produtor, assim como Pena Schmidt, que descobriu a banda ainda em 1984 e produziu o primeiro álbum, saía da WEA para outros projetos como o selo independente Tinitus. Com o totalmente explícito (nas letras) e cru Tudo Ao Mesmo Tempo Agora, mais hardcore, mais roqueiro e flertando com um som aproximado de bandas como Faith No More (que veio ao segundo Rock in Rio), Bad Brains, Dead Kennedys e com uma produção autoral. O problema é que o rock já não era mais o mesmo, havia perdido o espaço midiático de antes, você tinha artistas sertanejos e de axé mais o samba romântico/pagode em ascenção e poucas bandas dando sopa no mainstream.
Voltamos à 1992. Paralamas e Titãs juntos celebram 10 anos no palco do Hollywood Rock e ainda promovem seus álbuns - o primeiro conjunto com Os Grãos e o segundo com o já citado Tudo Ao Mesmo Tempo Agora - ambos massacrados em uma mesma crítica de André Forastieri na BIZZ em novembro de 1991, aliás, em um show no interior paulista patrocinado pela BIZZ, houve um boicote da banda à revista. Com poucas vendagens, estranhamentos com a crítica especializada (em especial com a BIZZ), mas sempre com uma agenda de shows favorável, ainda sobrava tempo para os oito criarem mais e, se preciso, absorverem feito esponjas mais novidades do rock, tudo parecia normal entre as oito cabeças - mas, nem tudo: depois de 10 anos ajudando a construir a história da banda, cantando, compondo e sempre dando o ar da graça em sua presença de palco, Arnaldo Antunes buscava alçar voos paralelos, sempre em direção contrária à do grupo. E acabou por deixar o grupo ainda em meio à criação de mais um álbum então inédito, mais um sem a produção magnificente de Liminha, o primeiro onde eles tiveram de go back to Sampa e, desta vez - com um produtor estrangeiro ligado ao grunge e a um selo alternativo famoso por ter lançado um grupo aí que uniu todas as tribos, um tal de Nirvana. Sim, os Titãs assumiam-se mais hardcores que nunca, sem fingirem vestir a carapuça para agradar o público - com a pré-produção realizada no estúdio Oásis em SP, assim como a gravação no Estúdio ArtMix nos dias 9 de março à 2 de abril e no RJ no velho conhecido QG do pop rock brasileiro, o Nas Nuvens nos dias 5 à 17 de abril de 1993 com Endino pilotando mesas de som e auxiliando a banda. Com o álbum pronto e masterizado em Los Angeles no estúdio Future Disc por Eddie Schreyer e pelo português Paulo Junqueiro, que esteve muito presente durante este período da carreira da banda desde 1986. O álbum, inicialmente chamado de A Volta dos Morto-Vivos baseado num filme de 1985, porém, levou um nome à altura da banda, Titanomaquia - na mitologia grega, a guerra entre os titãs, liderados por Cronos, contra os deuses liderada por Zeus. A guerra aqui era entre os Titãs e o mundo - e o som grosso e sujo era notório até no plástico que vinha com o logotipo do álbum que apresentava uma capa minimalista, quadrados e retângulos coloridos. A faixa de abertura, Será Que É Isso Que Eu Necessito? já traz logo na entrada, Charles Gavin matando a pau na bateria e Marcelo Fromer e Tony Bellotto arrasando nas guitarras enquanto Sérgio Britto arrasa entre um timbre comum e uma gutural, onde ele emenda "Ninguém fez nada, ninguém tem culpa, ninguém fez nada demais... FILHA DA PUTA!" soando hardcore pra valer do começo até o fim; na sequência, uma canção que soa três acordes de guitarra necessários: Nem Sempre Se Pode Ser Deus é um petardo ramônico, onde Branco Mello ameaça que "não é que eu vou fazer igual, eu vou fazer pior!" e lembrando às vezes a era Cabeça Dinossauro (vide faixas como Porrada e Igreja) de relance; pondo em pauta questões existencialistas e pessoais dentro das canções, chega o momento de uma das músicas mais acercadas do tema globalização, ou seja, baseado no conceito de globalização em Disneylândia onde vemos aqui uma nacionalidade tipo exportação, com Miklos dando voz sobre coisas como "lanternas japonesas e chicletes americanos nos bazares coreanos de São Paulo" em meio a uma pegada não tão lenta e a música depois tornou-se uma questão do ENEM em 2013 ainda; no repertório do álbum, houve pouco espaço para Nando Reis dar a voz, talvez sentindo-se um pouco identificado com o clima do álbum, mas, ainda deixando seus rastros necessários, Hereditário é seu desabafo, e ainda mandou ver sem parecer exagerar, apesar de ter sido quase despercebida à época, ganha seu valor pela pegada puramente hard rocker aqui; sem forçar a barra demais, Branco ataca novamente através de Estados Alterados da Mente, sobre as sensações causadas pelos estados de consciência, com direito a passagens de sintetizadores, chegando a soar um pouco como hard rock setentista com ares dos anos 1990; a seguir, contamos com um hardcore puríssimo no repertório, Agonizado consegue bem ecoar entre um rock garageiro da época e um Ratos de Porão, talvez por Britto tentar simular um vocal estilo João Gordo no meio da levada grossa roqueira; e se no decorrer do disco, o som permanece pessado, mas não tão podre como se pode esperar, mas em De Olhos Fechados é como se a banda antecipasse a sonoridade de um tal Matanza aí emendando country com hardcore numa letra onde eles não se importam o que passa na cabeça de alguém quando dança de olhos fechados - tipo, tão nem aí e f...-se mesmo! Em seguida, a banda ainda emenda nessa salada outra pedrada que garante, no caso Fazer O Quê? em que as guitarras não precisam soar perfeitas e plenamente harmoniosas, é vômito sonoro mesmo onde o eu-lírico não deseja uma coisa senão outra e daí vai em diante; adiante, chutando verbalmente a tudo e a todos, eles não deixam passar batido os questionamentos pessoais em A Verdadeira Mary Poppins, onde evoca desde o Rei Salomão, John Kennedy, Raul Seixas, Jimi Hendrix, Bruce Lee, Bob Marley, Pete Sellers e a própria babá mágica da Disney de que eles e nós somos reciglagens, para compreender melhor a poesia da banda; não fazendo perder tempo, 
o hardcore e o grunge ainda são vigentes na sonoridade de Felizes São os Peixes, onde poucos versos são inseridos e terminado com muito "nada" para servir como negação, e as guitarras mais a batida nervosa de Gavin acertam em cheio - e a química entre a banda e Endino funciona mesmo; a próxima música ainda consegue manter esse elo de ligação sonoro entre Sampa e Seattle, e isso é bom, ouvindo direito Tempo Pra Gastar, a banda não deixa a desejar e o contra-ataque permanece como sempre: arrepiador, indestrutível e bom, fala sobre o tempo de sobra, a questão de desperdiçar da forma como se pode o tempo e não força a barra como se espera; em um disco tão pesado e tão hard, diferente do que estávamos acostumados a escutar da banda, ainda sobra tempo para mandar um metalzão profundo em cima da Dissertação do Papa Sobre o Crime Serguida de Orgia, na qual Branco decide recitar versos do livro homônimo do Marquês de Sade, poderia soar como um horrorcore ou algo do tipo Zé do Caixão mesclado com Black Sabbath - sabe-se lá como isso pode ser definido, mas às vezes deixa a desejar para alguns ouvintes (o que não é meu caso); o encerramento começa com algo bem heavy metal, com o baixo timidamente dando destaque na introdução de Taxidermia, uma das melhores faixas daqui, onde Miklos se surpreende até em versos como "não quero ser útil, quero ser utilizado" e termina destruindo de vez, explodindo o peso sonoro como se fosse um último berro antes de outra jornada.
O álbum dividiu opiniões, muito se foi bem falado, ora se foi criticado - André Barcinski que o diga, já que na BIZZ ele esculhambou com o álbum fazendo referências até da produção de Endino, mas há quem tenha gostado mesmo. O recital de apresentação na lendária casa de espetáculos Olympia na cidade da banda foi um megaespetáculo a nível de banda internacional, como sempre, com um megacenário. Ao mesmo tempo, conseguiram ajudar Carlos Eduardo Miranda (1962-2018), músico gaúcho, produtor, agitador cultural e jornalista da BIZZ a fundar um selo alternativo, a Banguela Records - sim, a Banguela que chegou a ser chamada como "a gravadora dos Titãs" embora Branco e Britto tenham editado um material com o conjunto Kleiderman, um projeto paralelo à época. Mesmo com o renascer do pop rock brasileiro depois de um curto período de ostracismo, pois a Banguela não chegou a durar tanto e fechando em 1995, ano em que a banda lançou Domingo, visto por alguns como um dos últimos grandes lançamentos da banda, mas aí é outra história. Demorou muito para que a banda chegasse a lançar um trabalho considerado pesado e grosso na sonoridade - 21 anos - o tão louvado Nheengatu (2014), mas aí já seriam poucas cabeças envolvidas dentro da banda.
Set do disco:
1 - Será Que É Isso Que Eu Necessito? (Branco Mello/Charles Gavin/Marcelo Fromer/Nando Reis/Paulo Miklos/Sérgio Britto/Tony Bellotto)
2 - Nem Sempre Se Pode Ser Deus (Branco Mello/Charles Gavin/Marcelo Fromer/Nando Reis/Paulo Miklos/Sérgio Britto/Tony Bellotto)
3 - Disneylândia (Arnaldo Antunes/Branco Mello/Charles Gavin/Marcelo Fromer/Nando Reis/Paulo Miklos/Sérgio Britto/Tony Bellotto)
4 - Hereditário (Arnaldo Antunes/Branco Mello/Charles Gavin/Marcelo Fromer/Nando Reis/Paulo Miklos/Sérgio Britto/Tony Bellotto)
5 - Estados Alterados da Mente (Branco Mello/Charles Gavin/Marcelo Fromer/Nando Reis/Paulo Miklos/Sérgio Britto/Tony Bellotto)
6 - Agonizado (Branco Mello/Charles Gavin/Marcelo Fromer/Nando Reis/Paulo Miklos/Sérgio Britto/Tony Bellotto)
7 - De Olhos Fechados (Arnaldo Antunes/Branco Mello/Charles Gavin/Marcelo Fromer/Nando Reis/Paulo Miklos/Sérgio Britto/Tony Bellotto)
8 - Fazer O Quê? (Branco Mello/Charles Gavin/Marcelo Fromer/Nando Reis/Paulo Miklos/Sérgio Britto/Tony Bellotto)
9 - A Verdadeira Mary Poppins (Branco Mello/Charles Gavin/Marcelo Fromer/Nando Reis/Paulo Miklos/Sérgio Britto/Tony Bellotto)
10 - Felizes São os Peixes (Branco Mello/Charles Gavin/Marcelo Fromer/Nando Reis/Paulo Miklos/Sérgio Britto/Tony Bellotto)
11 - Tempo Pra Gastar (Branco Mello/Charles Gavin/Marcelo Fromer/Nando Reis/Paulo Miklos/Sérgio Britto/Tony Bellotto)
12 - Dissertação do Papa Sobre o Crime Serguida de Orgia (Branco Mello/Charles Gavin/Marcelo Fromer/Nando Reis/Paulo Miklos/Sérgio Britto/Tony Bellotto)
13 - Taxidermia (Branco Mello/Charles Gavin/Marcelo Fromer/Nando Reis/Paulo Miklos/Sérgio Britto/Tony Bellotto)

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