Canción Animal - Soda Stereo (Discos CBS, 1990)

Depois que o rock tomou de assalto o mundo, fazendo a cabeça de diversos jovens e influindo pelos quatro cantos gerando uma nova faceta rebelde sem causa, o gênero nunca deixou de revolucionar mesmo ainda depois dos anos 80. Foi nos anos 80 que, em alguns cantos do mundo, a América começava a desbravar o rock como a trilha sonora da juventude cantando no idioma nativo de boa parte do território latino: o espanhol. Mesmo no Brasil onde o idioma é português, o restante da América hispânica estava começando a romper barreiras com os regimes militares em ruínas como no caso do Equador (1979), Peru (1980), Argentina (1983), Uruguai (1984), e claro, aqui no Brasil (1985) e mais adiante Chile, Panamá e Paraguai começariam a se livrar dos militares nas administrações presidenciais. Foi no meio das situações de declíno dos militares no poder que nasciam revoluções culturais e sociais pela América - no Brasil a rapaziada começou a levantar uma bandeira que desvinculava de qualquer ideal tropicalista, mas influenciado pela new wave e pelo humor, mas começava a desbravar-se por uma cena com representantes diferenciados em cada estado - dos punks e alternativos aos vanguardistas (mais precisamente em São Paulo) e os ecléticos que deram certo. A Argentina sofria agonizadamente o regime militar - o quarto ao longo de cinco décadas - e começava a sair de um capítulo sangrento da história timidamente ainda em 1982 quando eclodiu a Guerra das Malvinas - e ali emergia uma nova identidade sonora na música argentina, enquanto medalhões do tango e folklore mantinham suas tradições, em Punta del Este, cidade uruguaia, dois jovens amantes da música e aspirantes a publicitários se encontravam e iniciavam ali uma nova amizade - estes dois seriam Héctor Pedro Juan Bosio, o Zeta, e Gustavo Cerati (1959-2014) com suas bandas, Bosio com The Morgan, que contava dentre seus integrantes o tecladista Andrés Calamaro, e Cerati com Sauvage - curioso é que os dois mais Calamaro, já chegaram a montar o Proyecto Erekto, e, depois de ensaiarem muito apenas os dois, eles buscam um baterista - que, por incrível que pareça, foi uma coisa do acaso, pois Charly Alberti estava desde que encontrou-se com Laura, irmã de Gustavo - Charly Alberti, cujo pai era baterista de jazz, perdeu a chance de ser cunhado de Cerati e parece que gelou na vez em que tentava ligar para ela, e dali veio a oportunidade certa: de quase-ex-cunhado para parceiro de banda. Pronto, nascia ali o que inicialmente chegou a se chamar Aerosol, e que teve inicialmente Richard Coleman nas guitarras, e Ulises Butrón no mesmo instrumento do anterior citado, e Daniel Melero nos teclados (Coleman e Melero dariam diversas canjas em trabalhos futuros) -  de Aerosol para Side Car, e quase tornam-se Los Estereótipos, mas o nome definitivo surgiu da fusão de duas opções - Soda e Estéreo, misturando isso com Soda Stereo resultou-se numa das maiores bandas aclamadas do rock argentino.
Dos ensaios e demos até a primeira apresentação em 19 de dezembro de 1982 durante o aniversário de um colega de curso chamado Alfredo Lois, que cuidaria por um bom tempo do audiovisual da banda até vir a falecer em 1998, foi uma longa jornada. Shows em casas noturnas, sucesso no boca-a-boca, até serem descobertos no Café Einstein por um empresário, o contrato com a CBS Discos, para em diante gravarem o primeiro disco que ajudaria a marcar um antes e depois no rock argentino: com Soda Stereo (1984), o rock argentino ganhou mais forças somando-se a nomes como Suéter, Virus, G.I.T., Viuda e Hijas de Roque Enroll e também Sumo, Los Twist e Riff - este último, já nascido em 1981, e com os lendários Spinetta e Charly na ativa. A partir do primeiro disco do Soda, o sucesso se expandiria para os quatro cantos da América Latina e graças ao sucesso gigantesco de Signos (1986) o terceiro LP e o primeiro a catalizar o grupo como uma das maiores referências no rock em espanhol dos anos 1980 - seus discos são editados em países como Uruguai, Peru, Venezuela, Chile, Bolívia, México, Colômbia e inclusive Brasil - embora não houvesse tanta forma de promover a banda por aqui. Com o ao vivo Ruido Blanco (1987), a prova de que a banda soava perfeitamente ao vivo com registros em diversos cantos da América mostra o eclodir da Sodamania, e vendo bem é possível enxergar isso quase ao fenômeno de artistas como o franco-argentino Carlos Gardel (1890-1935), Mercedes Sosa (1935-2009), os próprios Spinetta e Charly mais Fito Páez e Andrés Calamaro durante este período. Com o sucesso invadindo até o berço ianque, os Estados Unidos, onde a banda inclusive gravou o álbum Doble Vida na cidade de New York nos estúdios Sorcerer Sound com a produção de Carlos Alomar, portorriquenho aclamado pela trajetória de guitarrista de estúdio e que acompanhou o lendário David Bowie, além de ter acompanhado também Iggy Pop, Paul McCartney e Mick Jagger - este disco ajudou mais na Sodamania que invadira de vez a América (leia-se EUA) e influenciando bandas pela América Latina afora e possivelmnte na própria Espanha - abrindo novas portas para o mercado pop latino quase desconhecido para alguns. Em 1989 eles editam um EP com remixes e faixa inédita, Languis marca de vez o fim de uma era que marcou os primeiros álbuns do power trio e uma nova fase para a carreira da banda. Influenciados pela pegada do rock setentista de bandas locais como Aquelarre, Vox Dei, Color Humano e Pescado Rabioso, fora liderada pelo lendário Luis Alberto Spinetta (1950-2012), um dos heróis da música de Cerati com quem dividira o palco várias vezes, o próximo álbum seria um pouco mais cru com toques pop e Gustavo mais Bosio assumiriam a produção do álbum que teve suas gravações realizadas nos EUA - mais precisamente em Miami no Criteria Studios com Mariano López como engenheiro de gravação e mixagem mais Roger Hughes na assistência de estúdio e a masterização de Michael Fuller no estúdio Fullersound, e, além de Bosio, Alberti e Cerati, este trabalho contou com a presença de Tweety González nos teclados e violão, Daniel Melero também nos teclados e Andrea Alvarez na percussão. Para entender sobre a capa, esta foi uma ideia de Cerati e Bosio, como bons publicitários, buscaram um conceito bem ousado e com a ajuda de Alfredo Lois, eles estamparam objetos de arte mais uma imagem de um casal de leões e na contracapa um retrato da banda quadrado. 
Esse é o conceito de Canción Animal, sexto álbum de carreira e quinto de estúdio, tão roqueiro quanto nunca, é um verdadeiro clássico à parte. 
O disco já começa bem com (En)El Séptimo Día, que soa como uma bomba em explosão logo no começo, marcada pela levada de 7x4 quase tão difícil de tocar, carrega nos versos uma das personalidades de Cerati, que sempre esteve em movimento até o fim - por isso seu lado hater no primeiro verso "Odio este domingo híbrido de siempre", e com
 uma forte ligação aos ares de prog e hard dos anos 70 pela melodia, aqui os instrumentos soam afinados sem perder o tom; a seguir, o power trio emenda outro petardo através de Un Millón de Años Luz, criação de Bosio e Cerati que contêm a presença de Melero nos sintetizadores, carrega uma ligação com a épica Bolero de Ravel, e também com Tempted de Squeeze - há um elo entre o que é poético com a vida real, pois trata-se do que acontecia entre Cerati e Paola , o riff soa épico dentro da atmosfera sonora proporcionada pelo trio; em seguida, a banda emenda mais outra pedrada , que envolve os integrantes de corpo e alma nas melodias tocadas por eles, Canción Animal é densa e conta com a presença de Melero na composição - baseada no que Cerati estava vivendo em seu namoro daqueles tempos com Paola Antonucci, e realmente é algo tão animal - no sentido poético e musical; para a continuação deste repertório, o trabalho aposta em canções retrô com ares do fim dos anos 1960/início dos 1970 tal como a emblemática 1990 (Mil Nueve Noventa) contando com a presença de Pedro Aznar nos arranjos vocais, com influências que remetem Beatles e Zeppelin em uma letra brincalhona onde possa haver referências à Argentina da era Menem que estava começando, e da crise que ruía no país - uma crise quase infindável; e o repertório do álbum continua a soar influída de elementos únicos dentro de uma mesma canção - com uma agressividade extrema, Sueles Dejarme Sólo carrega aqui ares sonoros de Almendra com uma agressividade sonora densa que lembra um pouco o grunge (teria o Soda antecedido o som de Seattle propagado por Nirvana que aconteceria no ano seguinte?) tratando da sensação de terminar um namoro, da solidão, e a bateria nervosa de Alberti com o baixo de Bosio dão essa sensação de raiva junto da guitarra de Don Gustavo, que termina do nada; com um encerramento anterior à la I Want You (She's So Heavy), temos adiante um fraseado de guitarra que dá a deixa para a faixa a seguir - de acordo com Zeta, nascida de improviso durante um soundcheck de um concerto no México, a perfeitíssima De Música Ligera tornou-se instantaneamente um hit logo de cara, a sensação de um amor quase indesejado, de não lhes enviar cinzas de rosas ajudou e muito a tornar-se um dos maiores clássicos da carreira da banda e da história do rock argentino, que já foi versionada por nomes brasileiros como Os Paralamas do Sucesso e Capital Inicial (se alguém achava que À Sua Maneira fosse original, melhor reouvir e buscar saber antes) e ajudou a marcar momentos da banda como o concerto de despedida (estádio River Plate, 20 de setembro de 1997) onde Cerati agradecia os fãs pelos 15 anos de trajetória e fechava com "Gracias... totales!", e até mesmo o Coldplay já interpretou e gravou durante uma passagem do conjunto em Buenos Aires em 2016 - mas aí já é outro papo; adiante, a banda não perde a essência sonora e continua a desfilar temas impressionantes e que nos agradam sem precisar forçar a barra - Hombre Al Agua é uma daquelas canções onde a letra pode ser vinculada tanto sobre navegação quanto sobre deixar um relacionamento para trás e o arranjo não soa minimalista, porém conquista com seu estilo mais cru e sem perfeições, embora muito bem executada; em seguida, os Stereo evitam driblar a fórmula (disco bom + faixas incríveis = nenhum defeito) e Entre Caníbales, um tema mais denso, com a sensação de que o eu-lírico tenha sua carne humana devorada - estaria Cerati fazendo antropofagia? O que importa também é o arranjo, com um clima desplugadão e livre, onde eles tocam bem mais à vontade; existem momentos em que o disco ganha um tom mais melódico, onde o violão bem folky reina soberanamente na melodia da profundíssima Té Para Tres, onde Cerati relata emocionadamente sobre quando recebeu a notícia de quando Juan José Cerati, seu pai, estava diagnosticado com câncer enquanto tomava chá com ele e Lilian Clark - mãe do músico, uma das músicas na qual Alberti não faz presença; o disco encerra-se com um astral positivo, pois é depois da tempestade que vem a bonança - Cae el Sol traz essa impressão profunda, carregada de duplo sentido pois pode falar sobre uma história de amor perdido quanto da situação de muitas pessoas na Argentina, visto como um reflexo do sofrimento de muitas pessoas que ainda buscam seus entes queridos, a vibe desta música é bem new-wavística com ares psicodélicos, bem retrô e dá essa sensação de ouvirmos uma coisa que faça nosso coração sentir-se bem quando terminamos de escutar esse som (o álbum) que é puramente animal.
Graças a este disco, o Soda - que já era popular na América Latina e nos EUA em especial, conseguiu conquistar em definitivo o país da língua-mãe deles, a Espanha - mas, sem antes de conseguir rodar pela Argentina onde em dezembro de 1990 levaram multidões para o estádio do Vélez Sarsfield, e em seguida durante o período de junho e julho de 1991 eles conseguiram render 14 noites sucessivas no Teatro Gran Rex, e em dezembro do mesmo ano fecharam temporada daquele ano da Gira Animal com um mega-espetáculo na Avenida 9 de Julio para um público estimado entre 250 mil até 400 mil pessoas - prova de seu gigantismo e popularidade. E aí sim em maio de 1992  é que eles fecharam a tournée na Espanha em shows realizados nas cidades de Sevilla, Valencia, Barcelona e Madrid - o país das paellas, do flamenco e de Julio Iglesias se rendia a um dos maiores grupos do rock latino, que fechou essa tour celebrando 10 anos de trajetória que ainda rendeu aos fãs mais um presente, o álbum Dynamo - mas aí, já é uma outra história. O disco é considerado por muitos como uma porta definitiva para os novos rumos da sonoridade da banda, abandonando algumas características comuns dos 80 e assumindo uma maturidade definitiva na cara dura, era o Soda Stereo de leque aberto e com os limites rompidos para qualquer sonoridade, a revista Al Borde na sua lista dos 250 Melhores Álbuns de Rock Iberoamericano concedeu medalha de prata, o merecido 2° lugar, enquanto a Rolling Stone dos hermanos na lista dos 100 Melhores Discos de Rock Argentino concedeu o 9° lugar e na época do lançamento foi aclamado como o disco do ano pelas revistas Rock & Pop e a lendária Pelo além do suplemento Sí! do jornal Clarín - provando que os rugidos dessa canção (o disco) mostravam Bosio, Alberti e Cerati mais animais do que nunca.
Set do disco:
1 - (En)El Séptimo Día (Gustavo Cerati)
2 - Un Millón de Años Luz (Gustavo Cerati)
3 - Canción Animal (Gustavo Cerati/Daniel Melero)
4 - 1990 (Mil Nueve Noventa) (Gustavo Cerati)
5 - Sueles Dejarme Sólo (Gustavo Cerati)
6 - De Música Ligera (Gustavo Cerati/Héctor "Zeta" Bosio)
7 - Hombre Al Agua (Gustavo Cerati)
8 - Entre Caníbales (Gustavo Cerati)
9 - Té Para Tres (Gustavo Cerati)
10 - Cae el Sol (Gustavo Cerati/Daniel Melero)

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