Um disco indispensável: Quem é Quem - João Donato (Odeon, 1973)

No Natal de 1972, um sujeito chegava ao aeroporto do Rio de Janeiro com a sensação de que não seria um ano grande, meio triste e abalado com o fim de um casamento, o músico acreano João Donato retornava ao solo brasileiro após se aclamar 10 anos com uma carreira internacional aonde o fez morar em terras americanas, pôde conseguir beijar o chão de onde nasceu. Aliás, a carreira de Donato quase toda se consolidou fora do país, mesmo que ele já tenha gravado o álbum Chá Dançante (1956) produzido por um ainda desconhecido Antonio Carlos Jobim, e depois iniciava-se uma jornada que o trouxera para palcos do mundo afora, embora ainda gravara discos pela Polydor como Muito À Vontade (1962) e A Bossa Muito Moderna de Donato e Seu Trio (1963) os discos em que ele provara mesmo ser um pianista talentoso, acompanhado de um trio de peso, formado por Milton Banana na bateria, o baixista Tião Neto e o percussionista Amaury Rodrigues ajudando nesses trabalhos à época. E a vida nos Estados Unidos era algo que ajudava muito o pianista, pois ele formara junto de João Gilberto, do próprio Jobim, o saxofonista, compositor e produtor Moacir Santos, mais Eumir Deodato, Astrud Gilberto e de Sergio Mendes - este um nome mais popular que obteve algumas canções nas paradas da Billboard nos anos 1960, o time de brasileiros que propagavam América e mundo afora, a nossa música de chão tupiniquim. E esteve trabalhando muito ao lado de nomes, Donato estava muito bem-acompanhado de Bud Shank, Mongo Santamaría, Rosinha de Valença, Herbie Mann, Nelson Riddle: não é mole, não. E em 1969, ele se junta a Eumir Deodato e gravam por um simples selo estadunidense, o álbum-projeto Donato/Deodato, um trabalho que iniciaria uma parte dos materiais que viriam a inspirar o músico de Rio Branco nos próximos projetos, incluíra sintetizadores, inspirado no que os músicos californianos estavam mais aprochegados e foi com A Bad Donato que conseguiu instaurar uma aura da criatividade presente. O clássico e lendário álbum ajudou muito na união de elementos sonoros, que iam da bossa nova, passando pelo funk, pelo soul e até pela psicodelia - um resultado que impressiona mesmo os fãs deste cara. Porém, a vida lhe aplicara um grande golpe na sua vida em 1972: a sua esposa Patrícia pedira o divórcio e levara muitas coisas da casa, inclusive a pequena filha Jodel, deixou ele apenas com o piano, pois segundo ela, era isso que João Donato estava sempre procurando a vida toda. Ele encontrara uma garagem e botou seu piano à venda, e nem pensou em outra coisa: após anos se sentindo como um estranho no ninho, Donato nem olhou pra trás, decidiu voltar ao Brasil naquele caloroso Natal de 1972 e se pôs a superar toda a saudade da terra, largou o frio do American Dream e regressou ao País Tropical para ficar e refazer sua vida, e quem sabe, gravar algum disco interessante. Apareceu na casa de um velho conhecido, o pianista, cantor e compositor Marcos Valle, na época um jovenzão louro chegando aos seus 30 anos, barbudo, cabelos longos, e também estava lá o grande cantor Agostinho dos Santos - que veio a falecer em julho de 1973 no acidente aéreo com o avião da Varig, um Boeing 707 que fez um pouso de emergência a alguns quilômetros do principal aeroporto de Paris, além de terem morridos o jornalista Julio DeLamare e do senador Filinto Müller também naquele voo. Agostinho, celebrando a volta do pianista ao país, sugeriu a Donato que gravasse um disco letrando suas músicas e cantando, algo até então inédito. E dessa conversa nascia um dos seus melhores discos já feitos, estamos falando de Quem é Quem, seu décimo álbum editado em junho de 1973 pela gravadora Odeon, e que mantêm aquela pegada de A Bad Donato: totalmente experimental e também pop pelos arranjos, aqui o acreano toca piano elétrico Fender Rhodes e conta com Marcos Valle na coprodução, além de um super time de arranjadores: o maestero Lindolfo Gaya, Ian Guest, Dori Caymmi e Laércio de Freitas além do próprio Donato arranjando diversas de suas canções presentes no repertório.
Quem é Quem realmente mostra ser um grande trabalho da carreira de Donato, talvez o único disco com mais cara de comercial, e mostra que ele não está sozinho, a galera que participa das canjas nas 12 faixas também é um time de peso: a banda que colabora traz Hélio Delmiro na guitarra, Novelli no baixo de algumas músicas, Bebeto Castilho mandando ver com seu baixo em certas faixas e também no piano, Maurício Einhorn na gaita e ocarina, Naná Vasconcelos na percussão e Lula Nascimento na bateria, não foram fazer feio com os monstros sagrados Donato e Marcos, que também tocou piano em algumas faixas, fora o papel de produtor deste brilhante trabalho. O álbum mostra na capa, um Donato com a cara coberta sob um chapéu tipo de pescador, que lembra até o do personagem Seu Madruga, da série mexicana de humor Chaves - popular em toda a América naqueles anos e no Brasil só viemos a conhecer em 1984 - com os braços cruzados numa blusa salmão e traz um fundo todo verde, chega a lembras suas origens, um músico nascido na região da Amazônia que volta para sua terra. E tem um pouco disto: das origens, do universo do Amazonas e do Acre dentro das canções que alguns parceiros botaram letras nas faixas, e que foi um corre-corre para achar os parceiros certos, e ele achou mesmo asim. A começar pela vibração soul-pop que ambienta na primeira faixa, estreando o cantor João Donato: logo Chorou, Chorou faz a gente se sentir como o músico ao deixar os EUA "quem partiu, partiu chorando mas o que passou, passou..." e conta com um solo de piano elétrico que não faz feio nesta música; com aquela sensação de que o disco tá ficando agradável logo após a primeira faixa, temos aqui Terremoto, que assim como a primeira faixa, teve a letra de Paulo César Pinheiro, com um refrão bem familiar "ê mamãe com pé na terra, ê meu pai com pé no chão", e traz os arranjos orquestrados de Laércio de Freitas, uma bosa-soul bem agradável por sinal; a próxima faixa que nos oferecem este álbum é algo mais cheio de suingue, com a suavidade de sempre que figura no disco, Amazonas é um tema instrumental que chegou a ganhar letra mais adiante, e conta com a harmônica de Einhorn, que também tocara ocarina no disco, e que é o tema de grande destaque no repertório; na seguida, traz uma calma e uma leveza onipresente nos arranjos, e Fim de Sonho - escrita com João Carlos Pádua - é um dos tantos nomes que entregam as poesias para Donato cantar, o arranjo foi escrito por Ian Guest, e o resultado é excelente de verdade; e durante um encontro de pianistas amigos, ele e Sergio Mendes, onde o acreano mostrou uma música que se tornou uma homenagem a Stan Getz, e assim surgia A Rã, que fora gravado antes como The Frog, e aqui é uma bossa mais acelerada, com pegada de samba e totalmente suingante, e para os fãs deste disco, o melhor tema, embora seja só repleto de termos onomatopeicos como "gorogodá gazainguê", e a letra só ganhou corpo através de Caetano Veloso e foi apresentada no álbum Cantar (1974) da Gal Costa, mas a versão deste álbum também vale muito a pena de verdade; nascido ainda no solo americano, Ahiê - título oriundo do vocabulário indígena, fecha a série de parcerias com Pinheiro, e traz uma levada do jazz afrolatino - anos dividindo palco com Mongo Santamaría e Willie Bobo - remete um pouco também do soul mais romântico, suave e fecha com algumas coisas ditas como "o negócio é beber água", "aquele bar é uma vergonha" dando algumas risadas inclusive, para complementar; já para abrir o lado B, tem uma percussão da hora que antecipa um som mais voltado pro afro-cubano, misturando música brasileira inclusive e dando uma deixa para o próprio Bebeto Castilho cantar também em Cala Boca Menino, de Dorival Caymmi - aliás, a história por trás dessa música é realmente engraçada: antes, a música se chamava Vietnã e Coca-Cola, e ao ouvir a cantora Nana Caymmi falando "cala boca menino que seu pai logo vem" e perguntou de quem era a música, Nana disse que era de seu pai, eis que o velho Dorival respondeu a João "que minha não é, mas eu assumo" e nasceu esse funk cheio de bossa que ambienta na faixa; o pianinho carrega uma atmosfera bem voltada pro Nordeste, e logo dá a deixa para Nanã das Águas, um forrozinho elétrico do bom - mesmo que sem aquele quê de nordestinidade raiz, traz os versos de Geraldo Carneiro nesta canção, com cara de hit realmente, bem pop, que acaba dando pro gasto aqui; outro tema que também tem a assinatura de Carneiro aqui é Me Deixa, mas que é instrumental, dá um tom mais profundo e com um naipe de metais que dá aquele toque mágico nos arranjos, uma música que fala realmente por si só; porém, outro tema também que realmente nasceu com cara de hit no disco é Até Quem Sabe? com a letra de Lysias Ênio, seu irmão, e que traz algo lindamente perfeito - desde na letras até os arranjos, feito por Dori Caymmi, e que fecha com os versos que iniciam a música "até um dia, até talvez, até quem sabe...", como se fosse um aviso de que haverá algum dia o reencontro entre duas pessoas, sem soar como uma despedida, como se imaginava; em seguida, há a menos elétrica de todas as canções e a que mais apresenta suavidade no arranjo, logo a faixa Mentiras - feita também com Lysias, e que traz Nana Caymmi interpretando o tema, algo que soa como uma sinfonia dos deuses gregos do Olimpo, perfeito - mesmo sem Donatão cantando, é um tema que se salva; para encerrar o disco, um tema que envolve a mão de Valle nas letras em um tema que remete saudades demais, estamos falando de Cadê Jodel?, surgida como The Beautiful Ones, ainda no A Bad Donato, e mesmo se referindo como "minha namorada", é como se ele estivesse com vontade de rever a filha, que se foi com a mãe após o divórcio - mas faz um belo sentido, e com um brilhante arranjo de Donato para encerrar com tudo este álbum maravilhoso.
Donato tinha terminado o álbum, porém, ao chegar para discutir com a Odeon sobre a forma como promoveriam o disco, ouviu do diretor que não haveria lançamento e nem promoção, e chegou a um amigo desabafando, este amigo era J. Canseira, um sambista, e que sugeriu a ele uma fórmula mirabolante de promover o álbum: lançar uma caixa cheia de discos do alto do outeiro da Igreja da Glória, e com a ajuda da jornalista Paula Saldanha - à época, trabalhando na Globo, e registraram os "disco voadores" e isso atraiu um pessoal quando viu discos de João Donato caírem do céu, de forma um pouco suspeita até. Influenciou diversos artistas e foi referência principal para o já citado álbum Cantar (1974), de Gal Costa, com quem trabalhou tocando e nos arranjos musicais de algumas faixas. Em 2002, um milagre para quem já conhecia Quem é Quem: através de um projeto idealizado por Charles Gavin (ex-Titãs) em parceria com a EMI Music, de ressuscitar grandes álbuns lançados em vinil pela Odeon para celebrar o centenário da gravadora, adivinhem se este álbum não estava lá em CD? Estava e com uma remasterização de qualidade, embora tenha sido feito mais para colecionadores e em edições limitadas, ainda há alguns exemplares desta reedição a bons preços na internet. Em 2007, o disco ganhou um status de botar respeito, levou o 90º lugar na lista célebre dos 100 Maiores Álbuns da Música Brasileira, organizada pela revista Rolling Stone, e isto é só uma das provas de que é um clássico de peso feito por um acreano, que jamais o público imaginava que cantava, e canta ainda (ele tem 83 anos) muito bem para quem já ouviu este e outros registros de João Donato soltando a voz que encanta a todos nós.
Set do disco:
1 - Chorou, Chorou(João Donato/Paulo César Pinheiro)
2 - Terremoto (João Donato/Paulo César Pinheiro)
3 - Amazonas (João Donato)
4 - Fim de Sonho (João Donato/João Carlos Pádua)
5 - A Rã (João Donato)
6 - Ahiê (João Donato/Paulo César Pinheiro)
7 - Cala Boca Menino (Dorival Caymmi)
8 - Nanã das Águas (João Donato/Geraldo Carneiro)
9 - Me Deixa (João Donato/Geraldo Carneiro)
10 - Me Deixa (João Donato/Lysias Ênio)
11 - Mentiras (João Donato/Lysias Ênio)
12 - Cadê Jodel? (João Donato/Marcos Valle)

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