Um disco indispensável: Cantigas do Maio - José Afonso (Orfeu, 1971)

Meia-noite e vinte e dois minutos do dia 25 de abril de 1974, estúdios da Rádio Renascença, ao executar os primeiros segundos da canção Grândola, Vila Morena - escrita pelo cantor, compositor, professor e ativista político José Afonso, ou também conhecido como Zeca Afonso, como queiram - iniciava-se a senha para a nova revolução que se estourara naquele Portugal depois de seus 40 anos de regime salazarista, e foi assim... num toque, que o Movimento das Forças Armadas (MFA) iniciaram a deposição do regime estadista, iniciado no final da década de 1920 com Óscar Carmona sendo eleito para comandar o país, depois, em 1933, entra a figura António de Oliveira Salazar, que governara Portugal até 1970, ano em que falecera. No seu lugar entrara Marcello Caetano, já sabendo que não ia segurar este país, teve apenas quatro anos na administração, e no célebre 25 de abril, o MFA iniciou a tomada de lugares que estavam com forte presença, e em seguida, pessoas foram às ruas com cravos celebrar o fim do Estado Novo que ficou 48 anos nos nossos irmãos portugueses. E onde fica José Afonso mesmo nessa história mesmo? Ah sim, suas músicas até antes da Revolução dos Cravos foram todas proibidas suas execuções pela censura, seus discos estavam à venda, mas não poderia cantar em shows, programas de rádio e televisão na sua querida terra, então, fora de lá poderia cantar o que sentia por seu país, inclusive a Vila Morena, composta dez anos antes, quando fora convidado a participar do 52º aniversário da Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense (SMFOG) em 17 de maio de 1964, e se impressionara com o ambiente fraterno e solidário daquelas terras alentejanas, e de pronto, esperou um tempo para poder gravar. Na época, o músico estava vivendo em Moçambique, e por isso ficou um pouco distanciado do seu país com tanta repressão, e por lá lecionava como professor e iniciava seu ativismo, uma forma diferente de se sustentar além da música, para poder ajudar nas despesas da casa, com a esposa Zélia e os filhos José Manuel e Joana - nascida em 1965, um ano depois da passagem por Grândola, onde surgiu seu clássico. Voltara lecionando em Setúbal, mas devido à seu estado de saúde, fora expulso do ensino, mas não parava nunca de mostrar sua indignação àquele governo que atormentou por anos Portugal, fora preso diversas vezes pelo PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado) por seus vínculos a movimentos comunistas, outro motivo para censurarem seus discos, livros e poemas. No final dos anos 1960, já tinha se consagrado em discos por um selo português de Arnaldo Trindade chamado Orfeu, que tiveram relevância para o público, como Cantares do Andarilho (1968) mais Contos Velhos Rumos Novos (1969) gravados com um toque natural: acústico e acompanhado de um violão e de uma guitarra portuguesa. Na década seguinte, com Salazar morto, e o início de uma expansão do movimento pró-democracia portuguesa, após quase 5 décadas de um regime duro que balançava, só que ao invés de não cair, já sabia que um dia iria ser derrubado: Afonso teve que se afastar por várias vezes do país, deixou um álbum pronto para ser lançado: Traz Outro Amigo Também, editado no Natal de 1970, antecedendo o seu próximo trabalho convertendo-se em algo mais rítmico, mais harmonioso, e dando continuação a seu cancioneiro de protesto, batendo de frente contra a adminsitração de Marcello, e sofrendo a proibição de sua radiodifusão e execução pelos censores mesmo assim. Nas terras francesas, encontrara refúgio maior, e na cidade de Hérouville, havia um casarão que foi transformado em um estúdio onde gravara Elton John, David Bowie, Bee Gees, Pink Floyd dentre outros artistas: e ali nascia seu quinto álbum de estúdio e de carreira, o clássico Cantigas do Maio, responsável por abrir as mentes com seus versos fortes e críticos, que soa extremamente atual nos tempos de hoje.
O álbum do nosso personagem desta review têm suas gravações iniciadas em outubro de 1971 e foi até novembro, quando na época, até na América do Sul havia ameaças a artistas por seus posicionamentos políticos que não agradavam os militares, que governavam alguns países - exceção do Chile, que era governado pelo comunista Salvador Allende até ser deposto pelo general Augusto Pinochet em 1973. Mas, com Afonso, houve também muitas ameaças e perseguições, em Paris o negócio foi outro, tendo ali um estúdio muito em alta, utilizado por nomes do pop, Zeca não estava só, além de Carlos Correia - conhecido também como Boris - nas guitarras e vocais, o time contava com Francisco Fanhais na percussão, os franceses Michel Delaport na percussão, Christian Padovan no baixo, Tony Branis no trompete e Jacques Granier na flauta, com a direção musical e os arranjos de um ainda desconhecido José Mário Branco no órgão Hammond, piano elétrico Fender e acordeom, este, que vivia por lá, pois estava exilado desde o fim da década anterior e terminara seu álbum de estreia Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades - também engajado politicamente nas canções, mas pela então gravadora novata Guilda da Música à época. Com o disco pronto, Cantigas do Maio veio a aparecer como um presente de Natal para as massas de esquerda e também aos opressores, avisando que ele não estava sozinho e muito menos calado, com um toque mais experimentalista e um pouquinho psicodélico até, falando a verdade, não tão viajante quanto um Sgt. Pepper's tampouco como um Electric Ladyland à moda portuguesa, com certeza. Ao iniciarmos a escuta, tempos uma tentativa de iniciar a música e um sujeito em francês comunicando-se com os músicos, a entrada começa novamente e Senhor Arcanjo inicia-se, uma cantiga bem fácil, com uma pegada bem tradicional das cantigas lusitanas, com uma batida bem África pelo que se nota no ritmo; na faixa seguinte, temos um som de uma sanfona bem chorada, executada por Zé Mário e que abre logo Cantigas do Maio, aonde ele lamenta no refrão "Minha mãe, quando eu morrer/Ai, chore por quem muito amargou/Para então dizer ao mundo/Ai Deus, ai Deus, ai Deus 'mo' levou" como se narrasse a dor de uma mãe que perdeu um filho para os militares, só que esta é uma hipótese sobre o significado, não é que seja, mas... cada um entende à sua forma este clássico; continuando a análise do repertório deste álbum, ainda temos aqui um tema do folclore, que nos créditos do álbum, a adaptação foi feita pelo produtor (Branco) em Milho Verde, bem fiel ao tema, sem muita modificação na letra - o que já é bom por sinal; e na sequência, a história de uma moça chamada Catarina, que segundo o autor - logo o próprio Zeca, o Alentejo a viu nascer e morreu esquecida - tudo isso formam os versos de Cantar Alentejano, que lembra um pouco os fados coimbrãs tradicionais, com direito a "ooooooo" de tom operista como se estivesse num ambiente mais de arrepiar a gente; e abrindo o lado B deste álbum, nós temos o clássico importante, o hino e senha para a Revolução dos Cravos, lógico que estamos falando da já citada Grândola, Vila Morena - que começa com sons de passos, frases invertidas nos versos com direito a um coro potente, como se fosse o povo que estivesse cantando, vale destacar a frase "Em cada esquina um amigo, em cada rosto igualdade" que simboliza uma Portugal unida pelo fim do Estado novo àqueles tempos, e que soa mais atual do que nunca e também fora regravada por Amália Rodrigues, musa e eterna voz do fado, logo mais tarde; outro tema de protesto importante neste disco que sucede a faixa anterior é Maio Maduro Maio, que imaginava uma celebração mais democrática do 1º de maio, o Dia do Trabalho, com um solo de flauta que parece encantar os nossos ouvidos com uma forma que marca a gente; já a próxima faixa, narra a história de uma moça já mais velha que sai a vender erva, com um ambiente surreal, aqui conhecemos a tal Mulher da Erva, com uma sonoridade mais profunda no arranjo que chega a passar batido, mas que vale a pena; em seguida, podemos contar com outro personagem célebre das canções: o Arlindo Coveiro dos versos de Ronda das Mafarricas, que tem sons de mola e também uma viola bem tocada aqui, sem errar feio nos acordes; e para fechar este disco, mais um tema de protesto, encerrando com peso aqui, o Coro da Primavera é visto aqui como um aviso aos estadistas que administravam Portugal com um refrão marcante "Ergue-te, ó sol de verão!/Somos nós os teus cantores/Da matinal canção/Ouvem-se já os teus rumores/Ouvem-se já os teus clamores/Ouvem-se já os teus tambores" como se fosse um aviso final antes de acontecer um caos revolucionário, e com um coral que ajuda a crescer este refrão de forma potente, arrepiante do primeiro até o último segundo sim.
Este disco se tornou peça essencial para a música portuguesa, não apenas para aqueles que vivenciaram o fim dos tempos obscuros para o país, mas também como um despertar da nova era que estava por vir. Zeca interpretou muitas das canções deste disco em seus shows até 1983, quando se afastara após a sua doença que o acompanhava desde sempre, estar mais forte e o impossibilitando de seguir ativo cantando e compondo, vindo a falecer em 23 de setembro de 1987, vítima de uma esclerose lateral amiotrófica. Menos de sete anos depois do lançamento (1978), o jornal Sete, através de 28 especialistas, decidira fazer uma lista elegendo os melhores discos de sempre já feitos em Portugal, e ele figura no primeiro lugar, depois, em fins de 2009, a revista portuguesa de música Blitz fizera uma lista com os melhores álbuns de música portuguesa dos anos 70, e Cantigas do Maio está plenamente na pole position soberanamente, mostrando seu papel cultural e político ao mesmo tempo para a história dos nossos irmãos. Zeca, saiba que teu legado não morreu, pois "Em cada esquina um amigo, em cada rosto igualdade" quando lembramos do que fizestes pelo teu país e pelo direito de uma Portugal mais democrática.
Set do disco:
1 - Senhor Arcanjo (José Afonso)
2 - Cantigas do Maio (José Afonso, sobre refrão popular tradicional)
3 - Milho Verde (tradicional do folclore português, adaptado por José Mário Branco)
4 - Cantar Alentejano (José Afonso)
5 - Grândola, Vila Morena (José Afonso)
6 - Maio Maduro Maio (José Afonso)
7 - Mulher da Erva (José Afonso)
8 - Ronda das Mafarricas (António Quadros)
9 - Coro da Primavera (José Afonso)



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