Um disco indispensável: Geraes - Milton Nascimento (EMI-Odeon, 1976)

Em 1976, o Brasil ainda estava num caminho incerto da história com tantas coisas acontecendo, mesmo que o "milagre econômico" tenha definhado anos antes, o regime militar vivia tentando se segurar como podia. A morte do jornalista Wladmir Herzog, no DOI-CODI durante outubro de 1975 em São Paulo deixava muitas dúvidas e o fato de que envolvia suicídio era o menos relevante, e até a Igreja Católica realizou as missas em memória dele e de Manuel Fiel Filho, operário metalúrgico também morto em janeiro de 76 no DOI-CODI, também considerado como suicídio na versão do então médico legista Harry Shibata, porém todas as mortes envolviam algo em comum que não era só o tal médico legista: tortura, violência extrema. Fora isso, o afastamento de Ednardo D'Ávila Melo resultou-se em uma das portas de saída desse governo militar que vivia administrando no país há 12 anos, ou seja: ainda havia sim uma luz no fim do túnel. Do lado político, agora vamos para um Brasil cultural: o país estava com os olhos antenados na história da babá Nice, interpretada por Susana Vieira em Anjo Mau, e na surreal cidade Bole-Bole com seus célebres personagens, desde Marcina (Sônia Braga) que vivia - literalmente - com o corpo em chamas, até o professor Aristóbulo (Ary Fontoura) que à meia-noite, na lua cheia, se transformava um lobisomem, o excesso de fome de Dona Redonda (Wilza Carla) que comia até uma hora se explodir no final, e também João Gibão (Juca de Oliveira) - todos eles no clássico de Dias Gomes, Saramandaia, cujo último capítulo foi exibido em 31 de dezembro. Na música? Ah, como não esquecermos de falar sobre a música em 1976: enquanto o mundo se embalava na onda disco, que só ganhou expansão maior no final do ano seguinte com o filme Saturday Night Fever, e durou até o início dos anos 80, quando todo mundo já estava de saco cheio daquilo tudo. Os baianos saíram em tournée, Caetano, Gil, Gal e Bethânia uniram-se com tudo e fizeram o show Doces Bárbaros, e acabou sendo interrompida com a prisão de Gil por porte de maconha em Florianópolis, o que rendeu um breve período sem tocar por lá. E o grande Milton Nascimento deixava a gente boquiaberto com seu mais recente lançamento, o álbum Geraes, editado em dezembro de 1976, visto como uma continuação de Minas (1975), e soa como uma segunda parte, realmente: por contar com quase o mesmo time de músicos - Beto Guedes, Novelli, Nelson Angelo, Robertinho Silva, Toninho Horta e Chico Batera, só que a mudança ficava no comando dos arranjos: de Wagner Tiso, para Francis Hime, tocando alguns temas no piano. Este disco trouxe uma amplitude da conexão entre a música da América Latina com a nossa, muito mais influenciado pelo canto de resistência dos países vizinhos que estavam sofrendo, cada um com seus golpes de estado e regimes militares: Chile, Uruguai, Argentina - que no 24 de março sofrera um grande golpe de estado, tirando do poder Isabelita Perón e passando o bastão para Jorge Rafael Videla, iniciando um dos períodos mais cruciais da história argentina, e durante esse período pré-golpe, houve-se uma tragédia: falecia em meio às preparativas da derrubada de Isabelita, o pianista Tenório Júnior aos 34 anos, torturado durante nove dias, e desaparecido após o fim de um show com Toquinho e Vinícius de Moraes, sequestrado pelos agentes do serviço secreto da Marinha, depois fora comprovado que ele não tinha nenhuma ligação com atividades políticas, era um brasileiro vítima daqueles absurdos. E após isto tudo, houve um encontro entre Milton e a argentina Mercedes Sosa, popular cantora argentina que se tornou um exemplo na luta contra a ditadura de lá, estava se apresentando em uma boate no Rio, e após um convite do Poetinha, ele aceitou conhecê-la, e dali nasceu uma outra grande amizade do cantor. Uma amizade que inspirou Geraes, e algumas das faixas presentes neste.
O disco, com a produção de Ronaldo Bastos, mostram algumas letras trazem aquele ambiente parecido com o do outro disco, mas com um pouco das terras mineiras de Três Pontas. O disco foi muito esperado, esperava-se por ele durante todo o ano, e quando saiu, o resultado impressionou mesmo, desde o repertório até na capa, que eram as mesmas montanhas e o mesmo trem estampado no encarte de Minas, ilustrado por Bituca, com detalhes da ilustração em prata, no CD não manteve-se o conceito original apresentado na arte do vinil, que era um papel que tinha mais facilidade de amolecer, por lembrar um papelão mais fino e utilizado para pastas de arquivo, e o encarte têm aquela cara de envelope, ou seja, é mesmo um item de luxo para os fãs de vinil mundo afora. O álbum já inicia-se com um trecho do final de Simples, faixa que encerrava Minas, e esse trecho é a abertura também de Fazenda, composta por Nelson Angelo e carregada de arranjos orquestrais que dão esse tom mais nostálgico, belo e colorido, um grande tema mesmo; na seguida, um tema religioso, vindo do folclore mineiro e adaptado por Tavinho Moura, o clássico Calix Bento traz também um pouco de sertanejo raiz e o acordeom de Dominguinhos, num tom de toada que encanta os mais fiéis e aos fãs do nosso carioca mineiro também; de um simples encontro, veio a nascer uma amizade entre Milton e a argentina Mercedes Sosa, e essa amizade se mostrou presente no dueto promovendo a união entre povos vizinhos em Volver a los 17, canção da chilena Violeta Parra (1917-1967), um canto que conseguiu tirar o desânimo dos revolucionários latino-americanos e poderem se unir, cada um em seu país, a clamar por liberdade e democracia, e as duas vozes ao cantarem juntos, abalam todas as estruturas que vocês imaginam; um dos temas que ganha sua relevância através de tons politizados é a emocionante Menino, feita em parceria com Bastos, relembra a morte do jovem Edson Luís, morto em um confronto de militares contra estudantes no restaurante Calabouço em março de 1968, e pede nos versos "quem grita vive comigo", tem João Donato no órgão e a guitarra de Toninho Horta mandando altos solos viajantes, e depois fora regravado por Elis Regina em seu duplo Saudade do Brasil em 1980, como um hino de uma nova era do País após a Anistia, uma versão marcante mesmo; um outro grande encontro presente aqui neste disco, é o de Milton com Chico Buarque na versão À Flor da Pele da música O Que Será, e esta versão que ganhou notoriedade ao ser tema do filme Dona Flor & Seus Dois Maridos (1976) dirigido por Bruno Barreto, com Sonia Braga, Mauro Mendonça e José Wilker no elenco, e também um grande campeão de bilheteria, mas aí já é uma outra história; no fechar do lado A do disco, temos um tema de Maurício Tapajós e Cacaso, intitulado Carro de Boi - que lembra um pouco a vida do trabalhador na roça, numa jornada que traz "barro, pedra, pó e nunca mais" inspirado na longa caminhada do carreteiro nordestino e nas longas horas estrada afora; a forte presença da música latina é tão forte no disco que ainda há os chilenos do grupo Agua dando uma canja em 3 faixas do disco, a primeira é a instrumental Caldera, um tema completamente bem andino, com Milton ao piano nos vocais também; e a outra faixa que traz essa música andina vinda de terras chilenas na levada é Promessas do Sol, a única parceria com Fernando Brant no disco, um grande sucesso do disco, e que mostra um Milton a desabafar em alguns versos, é de arrepiar os arranjos; ainda há um pouco dos amigos Toninho e Ronaldo colaborando com músicas maravilhosas no repertório, é o caso da faixa Viver de Amor, que tem uma pegada que una soul e jazz, mais agitada e traz aquele ar meio de fossa nos versos; outro tema que ganhou realmente um forte destaque foi A Lua Girou, tema do folclore baiano que ganhou uma bela adaptação por Bituca, com um toquezinho de música africana, bem aprofundada, suave e que encanta a gente; o samba ainda há de reinar nas faixas do Geraes, e prova disto é o encontro de Milton com a grande lenda Clementina de Jesus, que se resultou em Circo Marimbondo, todo embalado, com um violão bem suingado que não passa batido; e o final é por conta de um tema que acaba conectando um tanto com o que se estava sendo ouvido nas faixas do disco todo,e converte-se em Minas Geraes, da autoria de Novelli e de Ronaldo Bastos,e que traz o pessoal do Agua e deixa um verso que mostra o poder da voz de Milton "Todas as canções inutilmente/Todas as canções eternamente/Jogos de criar sorte e azar..." e deixa a magia do disco permanecer pra sempre na gente.
Na reedição em CD feita no ano de 1994, há faixas bônus que apresenta dois temas que até então eram conhecidos por aparecerem em compacto, aliás, um compacto feito em 1977 com Chico: uma é Primeiro de Maio, a narrativa que põe aqui o trabalhador e sua situação, e também traz referência aos militares em alguns trechos; a vida labutária do homem no campo acaba sendo retratada no tema Cio da Terra - um tema maravilhoso e que fora adotado por outras vertentes musicais, ficou popular na versão de Pena Branca & Xavantinho, que dividiram o palco com Milton nove anos depois no palco do programa Chico & Caetano, exibido mensalmente pela Rede Globo em 1986, unindo o sertanejo mais puro e de raiz com um dos deuses vivos do Olimpo da nossa música brasileira. Sem ignorar as versões de Sérgio Reis e de Mercedes Sosa, que gravara duas vezes: a primeira em 1977 também, e em 1984 para o show Corazón Americano, que uniu no estádio do Vélez Sarsfield (Buenos Aires) três nomes de peso do cancioneiro latino, ela, mais Milton e outro argentino, León Gieco, e lançado em disco dois anos depois. O disco se tornou uma peça excelente na discografia do cantor e também na música popular brasileira, responsável por seguir com a essência de misturar sons e unir povos através das canções, o que sempre foi indispensável nas fórmulas dos seus trabalhos.
Set do disco:
1 - Fazenda (Nelson Angelo)
2 - Calix Bento (tema folclórico da Folia de Reis mineira, adaptado por Tavinho Moura)
3 - Volver a los 17 (Violeta Parra)
4 - Menino (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos)
5 - O Que Será (À Flor da Pele) (Chico Buarque)
6 - Carro de Boi (Maurício Tapajós/Cacaso)
7 - Caldera (Nelson Araya)
8 - Promessas do Sol (Milton Nascimento/Fernando Brant)
9 - Viver de Amor (Toninho Horta/Ronaldo Bastos)
10 - A Lua Girou (tema folclórico baiano, adaptado por Milton Nascimento)
11 - Circo Marimbondo (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos)
12 - Minas Geraes (Novelli/Ronaldo Bastos)
FAIXAS BÔNUS DA EDIÇÃO REMASTERIZADA EM CD (1994):
13 - Primeiro de Maio (Milton Nascimento/Chico Buarque)
14 - Cio da Terra (Milton Nascimento/Chico Buarque)

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