Um disco indispensável: 88 - Xutos & Pontapés (Polydor/PolyGram, 1988)

O ano era 1988, dia 29 de julho. O local? Pavilhão do Clube de Futebol Os Belenenses, à noite. Um palco montado, uma plateia sedenta de barulho e de música boa que os fizessem tirar o pé do chão até não aguentarem mais. Quem iria subir naquele palco? Os Rolling Stones? Não! Prince? Também não! Michael Jackson? Um pavilhão pequeno para receber uma megaestrutura de grande porte... só se fosse no estádio do Alvalde ou Estádio da Luz, mas não é tão longe demais, ou seja, não! Os artistas que iriam subir àquele palco era uma banda portuguesa de rock que estavam dominando as paradas através de canções que os jovens se identificavam mais, eram os Xutos & Pontapés. Eles estavam a gravar um disco ao vivo naquele dia, mais os dias 30 e 31 de julho daquele mesmo ano e lançado no final do ano como um presente de Natal aos fãs e para Portugal, logo antes de fechar com tudo a década mais bizarra porém marcante e épica. O show fora gravado meses depois de seu quarto álbum de estúdio, que mantinha a fórmula que agradou multidões com Circo de Feras (1987), e a banda parecia realmente se manter no pique do álbum anterior. A voz e o baixo pulsante de Tim com a guitarra rítmica matadora de Zé Pedro e a guitarra principal cheia de solos do João Cabeleira mais a batida super-agitada e até agressiva de Kalú com o saxofone de Gui traziam uma sonoridade que ia muito além do punk tradicional que eles faziam desde o começo. 10 anos de fundação da banda, muitos shows no país natal, algumas apresentações Europa afora, era preciso voltar no tempo um pouco e rever toda essa jornada pra pensar: como passou muito rápido para eles, o rock e o pop portuga estavam em alta, desbancando os cantores de intervenção/protesto que ousaram manifestar-se através das belas músicas, e que se uniram contra o fim do Estado Novo, alguns deles se adaptaram, fizeram trabalhos excelentes. Quando o álbum Circo de Feras havia lançado, a banda iniciava shows para promovê-lo, e 21 dias depois, Portugal chorava a morte de José Afonso - compositor e professor, que durante os anos 60 e 70 teve obras censuradas e proibidas de serem executadas no rádio e na televisão, morrera em decorrência de uma esclerose lateral amiotrófica, doença que teve o acompanhado cinco anos antes, e que o obrigou a se afastar dos palcos e das atividades artísticas - e desde então Portugal se sentia meio órfão de um nome que fosse tão forte e significativo para a música de sua terra a partir de então. Pois bem, os Xutos seguiram com a responsabilidade de representar bem o país assim como Amália Rodrigues, como Sérgio Godinho, como Luís Represas, entre outros - eles agora eram grandes musicalmente e midiaticamente, os veículos o viam como um autêntico conjunto popular, e a legião de fãs aumentava mais e mais. Com o 7º single lançado após Circo, a banda se viu num papel maior, pois este mesmo single trouxe três temas que podem ter antecipado um estouro da boiada maior do que antes: um era o instrumental A Minha Aventura Homossexual Com o General Custer - título bem longo e bizarro por sinal, mais outra inédita que era Sou Bom e uma regravação de um tema lá dos anos 50, que fora muito popular por Milú (1926-2008): estamos falando de A Minha Casinha, um tema essencial para a carreira da banda e que se tornou um hino para o grupo e que na versão de Tim e companhia, ganhou mais popularidade do que antes.
Gravado ainda em 87, perto do final do ano, o disco 88 tinha um peso enorme de se manter como um sucessor fiel ao trabalho anterior, e tinha mesmo: mantendo temas que fizessem tanto sucesso, não tinham como decepcionar público e crítica mesmo. A produção ficou por conta de Ramón Galarza, baterista do grupo Tempo, depois trabalhou em 1978 na clássica ópera-rock de José Cid, o aclamado 10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte, e depois com o baixista Zé Nabo, que havia participado também do álbum de Cid, participou da Banda Sonora que acompanhou Rui Veloso nos primeiros anos e gravando o clássico Ar de Rock em 1980, e que com os Xutos também acompanhou em shows nos teclados e percussão, e também teve Paulo Junqueiro, ex-estagiário de assistente de estúdios em Lisboa que também tinha passagens históricas como assistente de estúdio no Nas Nuvens, estúdio do Rio de Janeiro de propriedade do produtor Liminha, e já adquiria uma experiência trabalhando com Ira!, Titãs, Ultraje a Rigor, Gilberto Gil, Kid Abelha, Blitz dentre outros, e que formou essa dupla produtora que esteve ao lado dos Xutos até Gritos Mudos (1990), o disco menos popular de todos os álbuns do quinteto. O álbum começa bem, temos As Torres da Cinciberlândia, um rock daqueles bem fiel ao que a banda faz, com o sax de Gui, e fala sobre um lugar muito diferente, e soa como um rock bem dançante, como aqueles dos 50 que tinham essa sincronia, mas com aquela pegada bem suja e massacrante que está presente na sonoridade do grupo sempre; na sequência, um riff de guitarra já nos apresenta a um dos principais sucessos deste álbum, estamos falando de À Minha Maneira, que traz uma energia bem rock e que não faz a gente se decepcionar, o que é excelente quando se ouve; o que esperar de uma canção narrando a história de um cara que pretende viajar de Bragança à Lisboa, com 9 horas de distância, mas que nada o possa impedir? Bom, se você ouviu a faixa da qual estávamos nos referindo que é Para Ti, Maria, pode acreditar, esse tema também consegue manter essa vibe de hit atrás de hit no lado A do disco, muito comum até; por diante, a gente não deixa aqui de falar sobre Nós Dois, com um pouquinho de sensualidade em alguns versos, o personagem começa a imaginar quando se encontra com sua amada e se pergunta "O que vai ser de nós dois?/O que virá depois?" sendo que esta segunda pergunta é acrescentada no final da canção; ainda que contamos também com Andarilhos no repertório, este tema já é um pouco lembrado às vezes, mas não deixa passar batido aqui com sua melodia e a voz de Tim entoando "E eis que chega o amanhã/É levantar, seguir viagem/Adeus, adeus/Toma coragem pr'o teu destino", e aqui lembra até um pouco as histórias de quem viaja por aí em busca do destino certo - bem poético demais; se ainda há música que se salva nesse disco de tão boa, esta é Carta Certa, que carrega uma pegada bem apegada ao country, uma levada que una Johnny Cash e Hank Williams com Ramones dando muito certo, não sendo uma das mais conhecidas do disco, têm um valor pelos fãs quando se trata deste tema; e por dante, ainda contamos também com Doçuras, um tema bem aperfeiçoado nos arranjos, não muito suave, com um baixo que chega a se destacar mais que as guitarras de costume, quase um tema morno, mas não tanto, quase não sentimos a ausência da bateria de Kalú aqui nesta faixa; com seus 4 minutos e 35 segundos de duração, e a mais longa do disco, podemos sentir o exagero das guitarras gritantes e de um riff que chega a durar com um só toque, vemos também que Enquanto A Noite Cai é um grande tema do álbum que se destaca, uma das mais lembradas deste disco nos concertos até hoje; em seguida, o próximo tema há um pouco do velho punk rock setentista, carregado de agressividade sonora (como sempre) em Botas, que deixa um gosto de "quero mais" até, mas não erra feio no som e na letra, para a felicidade dos fãs; e encerrando o disco, contamos aqui com Prisão em Si, um tema que vai crescendo aos poucos, traz ruídos de botas e portas, chega a ser quase instrumental e só aos 2:11 que ouvimos Tim cantando "E numa prisão em si, não saindo do que é seu, foi esquecido e adormeceu", como se fosse um sujeito refletindo sobre a vida na prisão, e termina assim o disco, sem muito do que reclamar; mas, quem tem as edições em CD, sabe que são 2 faixas a mais que estendem um pouco o repertório do disco, com estas duas das três faixas do popular 7º Single, abrimos aqui com Sou Bom, um punk mais ou menos que dá um pouco pro gasto, apesar da letra parecer redundante e com algumas frases que escapam dos clichês do tipo "sou do Brasil" que ajudam a dar um escape no que lembra até as canções influenciadas pela poesia concreta, com repetições de palavras e tudo mais; e fechando mesmo o disco no CD ou no digital, temos aqui o clássico A Minha Casinha, gravado há mais de quarenta anos pela atriz já citada Milú e que com o grupo se tornou de vez um hino para eles e para os fãs, jamais deixando de ser ignorada nos shows que eles fazem.
O disco vendeu muito bem, por sinal, sendo até hoje um dos maiores álbuns de sucesso do grupo, seguiram o ano estampando diversas capas de revistas, fazendo muitos programas televisivos, e surpreendendo aos fãs no Natal com um álbum ao vivo triplo, captado das 3 noites no Pavilhão d'Os Belenenses toda a energia da banda e do público. E pensar que Zé Pedro, antes de nos deixar em 30 de novembro de 2017 não tenha pensado: tudo isso que obteve através do sucesso com a banda que ele criou não foi em vão realmente, que ele merece mesmo todo o respeito não só pelos fãs do rock português, mas por toda a música portuguesa em geral. E esse respeito pode ser notado na lista feita em 2009 pela revista Blitz unindo os 40 melhores álbuns portugueses dos anos 1980, dando a 88 o merecido 17º lugar, 10 posições atrás de Circo de Feras, e também de Cerco (1985) com apenas 3 posições de diferença, já que este mini-LP está no 14º lugar, mostrando todo o papel da banda para não só uma, mas para várias gerações.
Set do disco:
1 - As Torres da Cinciberlândia (Tim/Zé Pedro/João Cabeleira/Kalú Ferreira/Gui)
2 - À Minha Maneira (Tim/Zé Pedro/João Cabeleira/Kalú Ferreira/Gui)
3 - Para Ti, Maria (Tim/Zé Pedro/João Cabeleira/Kalú Ferreira/Gui)
4 - Nós Dois (Tim/Zé Pedro/João Cabeleira/Kalú Ferreira/Gui)
5 - Andarilhos(Tim/Zé Pedro/João Cabeleira/Kalú Ferreira/Gui)
6 - Carta Certa (Tim/Zé Pedro/João Cabeleira/Kalú Ferreira/Gui)
7 - Doçuras (Tim/Zé Pedro/João Cabeleira/Kalú Ferreira/Gui)
8 - Enquanto a Noite Cai (Tim/Zé Pedro/João Cabeleira/Kalú Ferreira/Gui)
9 - Botas (Tim/Zé Pedro/João Cabeleira/Kalú Ferreira/Gui)
10 - Prisão em Si (Tim/Zé Pedro/João Cabeleira/Kalú Ferreira/Gui)
FAIXAS BÔNUS EM CD, EXTRAÍDAS DO "7º SINGLE" (1987)
11 - Sou Bom (Tim/Zé Pedro/João Cabeleira/Kalú Ferreira/Gui)
12 - A Minha Casinha (Silva Tavares/António Melo)

Comentários

Mais vistos no blog