Um disco indispensável: Sintetizamor - João Donato & Donatinho (Deckdisc, 2017)

Já cantava o Funkadelic "one nation under a groove", e essa nação segue sob os grooves, os balanços, os sintetizadores, os baixos pulsantes. O funk se espalhou pelo mundo, pegou carona na discothèque e segue aí vivão e vivendo (parafraseando Racionais), agitando as pistas de dança do mundo todo, não importa aonde e sempre será revivido com toda a força que há. Um exemplo dessa prova que o astral do funk está completamente vivo, está no novo projeto de João Donato, juntamente de seu filho Donatinho: duas gerações musicais familiares diferentes, cada um com suas experiências através dos tempos. Primeiro, vamos falar do pai, João Donato: hoje na casa dos 83 anos completados em agosto, vindo do Acre, começou pelo acordeom, e aos 10 anos, se muda com a família para o Rio de Janeiro após seu pai, um major da Aeronáutica, que tocava bandolim nas horas vagas, ser transferido, e aí sua história na música começa a acontecer. Depois de tentar a sorte no programa de Ary Barroso, o mesmo nem quis ouvi-lo pois não gostava de meninos-prodígio, foi fazendo jams e acompanhando músicos em gravações até chegar em 1956 com seu primeiro álbum intitulado Chá Dançante, produzido por Tom Jobim - um novo nome no cenário musical brasileiro, e depois só iria ter voos mais altos: fez turnês mundo afora, gravou diversos discos - inclusive no exterior, como o A Bad Donato (1970) aonde mistura um pouco de cada coisa: do jazz e da música caribenha até a psicodelia e o soul, e depois grava um disco com o maestro e produtor Eumir Deodato, mas sua esposa americana pede o divórcio e deixa ele só com o piano. Volta ao Brasil, se reaproxima mais da música do país sendo feita naquela época e grava o disco Quem é Quem (1973) um de seus melhores trabalhos já feitos, com a produção de Marcos Valle, e desta vez botando sua voz nas canções. Depois do álbum Lugar Comum, fica 20 anos sem gravar, mas há um intervalo nesse período com o ao vivo Leilíadas em 1986, e só dez anos depois desse ao vivo que volta com tudo. Com diversos trabalhos recentes, incluindo Bluchanga (2015) e também Donato Elétrico (2016), que o reaproxima da fase A Bad Donato, com os sintetizadores e uma bossa mais viajandona também. Agora vamos falar de Donatinho, que nasceu quando seu pai já era um monstro sagrado da bossa nova, já tinha feito diversos trabalhos e depois se viu num rumo diferente: trabalhando com nomes de peso também, como Caetano Veloso, Paralamas do Sucesso, Fernanda Abreu, Ivete Sangalo, Metrô (onde tocou por um breve período), Djavan, e inclusive com o próprio pai - com quem dividiu um projeto cheio de sintetizadores e de energia pop: que lembra tanto o Donatão de A Bad Donato e obviamente de Quem é Quem, quanto o que seu filho faz com outros artistas, inclusive registrado em um material próprio, intitulado Zambê (2014) - inclusive, recomendo muito para quem quiser conhecer mais sobre esse trabalho do filho do homem. O projeto deles, intitulado Sintetizamor foi totalmente gravado na casa de Donatinho e com os instrumentos todos analógicos, o que lembra um pouco o duo francês Daft Punk e também um pouco Herbie Hancock, influência principal de Donatinho. Aqui, os dois botam pra quebrar e não decepcionam a gente, bem-acompanhados de nomes como Davi Moraes, Julia Bosco e Gabriela Riley, uma vez que os dois fazem toda a parte musical do disco mesmo, e ajudam muito a engrossar esse caldo sintetizado.
Família unida pra mandar o povo dançar a noite inteira (Divulgação)
O estúdio Synth Pop, situado na casa de Donatinho, traz quase todos os populares sintetizadores que marcaram os ouvidos principalmente da galera dos anos 70 e 80, agora, pense numa nave espacial. Pensou? É como se Donatinho tivesse uma série de aparelhos para pilotar uma nave, e nem vem com esse papo de que seu pai é co-piloto: aqui são os dois comandando esses sintetizadores, e essa sensação de pilotar uma nave de sintetizadores pode ser comprovada até na capa, feita pelo artista Allan Jefferson, que também trabalhou para a DC Comics e para a Marvel: uma conexão e tanto. Vamos abrindo aqui a análise das faixas com um convite para a galera da pista de dança "Em instantes, dancem!" e a levada bem eletrizante e que contagia a gente já nos apresenta De Toda Maneira, parceria dos dois com Davi Moraes, e que imaginamos os dois em um videoclipe iniciando a festa saindo de uma nave espacial - prontos para levantarem o astral sem medo de ser feliz; em seguida, temos aqui um tema bem oitentista, mas que lembra um pouco o DP também: Surreal, com Donatinho cantando com efeito de talkbox (aquele que você enfia uma mangueira na boca - sem piadas maliciosas - e sai um efeito da hora), transpirando ao título da canção, soaria uma coisa bem retrô para Alok, o grande DJ do momento, mas lembra mais é I Thought It Was You, tema disco de Hancock presente no álbum Sunlight (1978) - mas aí já é outra história; e quando a gente falou no álbum de 1973, parece que a sonoridade daquele clássico permanece e com a voz do Donato pai na faixa Quem é Quem, um tema de grande destaque no decorrer do álbum, parece que os anos 70 não acabaram; na sequência, uma canção em inglês parece lembrar um pouco DP e Bruno Mars ou algum convidado de David Guetta ou Calvin Harris, mas é Gabriela Riley dando uma canja com Donatinho e Donatão em Interstellar, um pop que parece ser de outro planeta, e lembra até algum hit internacional do momento quando se escuta; a faixa que realmente se destaca totalmente neste disco é Lei do Amor, que parece ter sido feita exclusivamente para as rádios, e aqui os dois cantam e pilotam com muito cuidado a nave do planeta Sintetizamor e faz a pista tremer, tem cara de AOR (Album/Adult Oriented Rock) que Ed Motta cultua tanto, aliás, o mesmo (Ed) enalteceu muito o álbum dos dois quando foi lançado; e ainda tem um momento bem no nível Barry White ou Isaac Hayes em Clima de Paquera: uma mensagem na caixa postal, um encontro, e a paquera do Donatão é Julia Bosco, e faz a gente imaginar uma esquete de cinema assim com Donato mandando um "oi sumida" e aí encerra com ela agradecendo por sempre se encontrar com ele, nada mal; o peso de baile volta com tudo em Luz Negra, com voz sintetizada e um batidão de deixar a gente se arrepiar e ir pra pista curtir numa boa, sem problemas - aqui seu astral não perde brilho de jeito nenhum; outro momento amorzinho também é o de Donato numa tecno-bossa (dá pra definir assim?) convidando alguém pra um rolê de fininho em Vamos Sair à Francesa, um suingue bem pop, meio fofo por demais eu diria, mas sem deixar perder o rumo neste trabalho; ainda podemos contar também com outro momento bem soft pop, e com uma letra bem elaborada, Ilusão de Nós carrega elementos de progressivo e new age - sem estragar o ambiente do disco, apenas sinta-se nessa vibe mais tranquilona que nos oferecem; o encerramento do disco fica por conta de uma música que soa quase instrumental, intitulado Hao Chi - um poema em chinês escrito por Julia Bosco e lido por Fernanda Sung, encerra com o mesmo clima da faixa anterior, uma senhora viagem sonora made in Brazil e um dos melhores álbuns nacionais feitos nesta década, concluo também que os Donatos conseguem unir forças para botarem um disco totalmente dançante na praça e fazerem algo pra Dennis, Boss in Drama ou Alok nenhum botar defeito.
Set do disco:
1 - De toda Maneira (Donatinho/João Donato/Davi Moraes)
2 - Surreal (Donatinho/João Donato/Domenico Lancelotti/Julia Bosco)
3 - Quem é Quem (Donatinho/João Donato/Jean Kuperman)
4 - Interstellar (Donatinho/João Donato/Davi Moraes/Gabriela Riley)
5 - Lei do Amor (Donatinho/João Donato/Rogê)
6 - Clima de Paquera (Donatinho/João Donato)
7 - Luz Negra (Donatinho/João Donato/Jonas Sá)
8 - Vamos Sair à Francesa (Donatinho/João Donato/Ronaldo Bastos)
9 - Ilusão de Nós (Donatinho/João Donato/João Capdeville)
10 - Hao Chi (Donatinho/João Donato)


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