Um disco indispensável: "Heroes" - David Bowie (RCA Victor, 1977)

Em 1977, o artista britânico David Bowie estava aos poucos se recuperando da maré baixa que havia o deixado um pouco sem rumo antes, com o disco Station to Station que foi uma tremenda viagem e do qual ele sequer lembrou do processo e da divulgação, seguido do filme The Man Who Fell on Earth, aonde ele incorporava tanto no disco, quanto no filme, o Thin White Duke, com os cabelos um pouco alaranjados, um de seus tantos alter-egos criados pelo camaleão do rock, que na época estava mergulhado na cocaína e morando em Los Angeles - àquela época era uma das cidades aonde havia mais consumo de drogas nos EUA, ou seja: nada fácil para o nosso astro multifacetado da música. Para fugir desse desconforto pessoal, ele decidiu se autoexilar no Velho Continente, mais precisamente na Suíça primeiro - onde iniciou novas atividades, como a fotografia e a pintura, depois buscara contato com o experimentalismo e a música conceitual de John Cage e Philip Glass por meio da Brian Eno, que após ter dito que gostava de Station to Station foi contratado para trabalhar com ele no Château D'Hèrouville, na França, a produzir e conceberem juntos o álbum Low, a sua incrível volta por cima, totalmente eletrônico, futurístico e de outro mundo - assim como Bowie, e o resultado foi superando as expectativas, e iniciando assim, a sua mais brilhante fase - artística e discográfica - que ficou eternizada como Trilogia de Berlim, que rendeu este e mais dois álbuns. Bowie estava na Berlim Ocidental, e sempre ajudando como podia seus amigos e ídolos, assim foi com Iggy Pop, que o ajudou a lançar-se como artista solo através de The Idiot, seu primeiro álbum, e também com Lou Reed, além dele ter sido muito influenciado pelos dois conjuntos alemães de krautrock conhecidos, Kraftwerk e também Neu!, duas principais referências não só para a música eletrônica que se conceituaria e se expandiria ainda mais, mas também inovando a música em geral, indo além dos excessos de sintetizadores - e Bowie acabou adquirindo um pouco dessa sonoridade alemã em seus trabalhos mais adiante, com a ajuda de Eno e de seu produtor Tony Visconti, seu mais onipresente parceiro musical no decorrer da trajetória. Para o próximo disco, seguiria contando com Eno, e desta vez era o disco todo gravado em Berlim e, melhor, com uma ajuda de luxo, de um nome importante do rock progressivo: Robert Fripp, que havia se aposentado durante três anos, o lendário guitarrista do King Crimson e ganha presença forte no disco, e também dos mesmos músicos de sempre, como o guitarrista Carlos Alomar, o percussionista Dennis Davis e o baixista George Murray, parceiros sempre presentes nesta fase do músico, gravado totalmente no Hansa Tonstudios, que ficava perto do Muro de Berlim e vigiado por militares da antiga União Soviética por estar a alguns metros do mesmo. Lançado em 14 de outubro de 1977, o álbum intitulado "Heroes" (é assim que se escreve, com aspas) conseguiu levantar ainda mais a moral e mostrar que Bowie estava em voga e inspirado, é também considerado o mais popular e o predileto da trilogia para muitos fãs - assim como este que vos digita.
-Então Paul, vai dizer que só sua banda fez discos bons neste século?
-Que isso, Bowie! Eu gostei de todos os seus, em especial do "Heroes".
Se precisássemos definir algo sobre este disco, diríamos que é uma metamorfose poética-musical de Bowie sobre a Berlim Ocidental, e talvez o ponto alto de sua carreira após os álbuns que o aclamaram definitivamente, também consegue ser o melhor álbum não somente da fase Berlim, mas de toda sua discografia em especial - digamos que 80% dos fãs colocam este disco em 1º lugar entre seus favoritos de todo o conjunto da sua obra, obviamente. Para começarmos a falar deste álbum, vamos falar de uma faixa em que a cozinha de Bowie, Eno, Alomar, Davis, Murray e Fripp deu muito certo sim, e é na faixa Beauty and the Beast que sentimos a energia vinda desta obra-prima da música, cheia de overdubs, e com um astral 100% potente logo de cara, a guitarra de Fripp mostra estar em astral com o restante da sonoridade da canção; já na faixa seguinte, que traz um título semelhante ao da primeira faixa por lembrar um conto infantil, Joe the Lion, mas aqui o negócio é pesado, e chega a imitar uma banda de hard rock na parte instrumental, mas também concentrada no ambiente do krautrock, e a guitarra consegue gritar muito aqui no decorrer da faixa, ou seja - Fripp fez um ótimo trabalho junto de Bowie aqui; e a grande faixa de destaque neste álbum aparece em seguida, e nós estamos falando de "Heroes" que imortalizou uma das frases do refrão "We can be heroes just one day" (Nós podemos ser herois apenas por um dia - tradução livre), feito em parceria com Eno, e que em 2003, revelou-se que foi baseado em um caso do produtor Tony Visconti com a vocalista de apoio Antonia Maass, e o verso "Standing by the wall (by the wall)/And the guns, shot above our heads (our heads)" (Andando pelo muro (pelo muro)/E as armas, atirando sobre nossas cabeças (nossas cabeças) - tradução livre) foi tirado durante uma passagem pelo Muro de Berlim,  enquanto eram vigiados pelos guardas da Alemanha Ocidental, e assim, uma simples letra, cheia de melodias concebidas totalmente por Eno, ganha o coração dos fãs e do mundo e a voz de outros nomes, como do Depeche Mode, do próprio King Crimson, além de uma versão do Motörhead, gravada meses antes de Lemmy Kilmister falecer em 26 de dezembro de 2015 ou seja: não importa quem cante, essa música acaba te pondo no chão de vez; a próxima faixa é algo próximo de uma suavidade, e Sons of the Silent Age, traz ainda Bowie mandando ver no saxofone, e o título - baseado nas pessoas que nasceram entre 1925 e 1942, fase da Grande Depressão, os chamados Filhos da Geração Silenciosa, para definir melhor - só surgiu apenas no estúdio quando o trio já tinha um conteúdo super pronto ali; fechando a primeira parte do disco, temos um som totalmente calcado e concentrado no rock industrial, com uma vibe que massacra nossos ouvidos logo de cara - e Blackout mostra isso e muito mais, um conjunto de efeitos e overdubs incríveis de Eno, uma guitarra alucinante tocada por Fripp e o ritmo de Dennis Davis dando um tom que combine com o restante, e o resultado? Excelente por sinal. 
O lado B do disco, totalmente instrumental - ou nem tanto - abre de cara com um conjunto de elementos sonoros que formam uma perfeita alquimia na canção intitulada V-2 Schneider, o título é uma homenagem a Florian Schneider, do Kraftwerk, e também coloca o V-2 no meio, que é nada mais do que o primeiro míssil desenvolvido pelo programa alemão nos tempos pesados da II Guerra Mundial, aqui você tem alguns trechos cantados, e o que realmente "grita" além dos sintetizadores e da guitarra é o saxofone executado pelo nosso camaleão, e por incrível que pareça, apesar de a canção ter apenas o título sendo cantado, fez sucesso na Alemanha após se tornar o lado B da canção-título deste álbum como single, para o nosso interesse; a faixa seguinte é um som-ambiente que lembra um pouco as alquimias instrumentais de Low, com sintetizadores imitando vento, cornetas, e tudo isso faz de Sense of Doubt o grande barato do lado B do álbum, ainda com ruídos e efeitos que parecem soar como tema de um filme de ação ou terror logo de cara, sem perder a essência, o piano aqui arrepia os nossos ouvidos logo a cada acorde, totalmente impressionante até aqui, o mais profundo dos temas desse disco; e a continuação de temas instrumentais com diversos elementos sonoros diferentes vai acontecendo em Moss Garden, um tema onde Bowie aparece tocando um koto, instrumento de corda muito utilizado no Japão, e que acaba fazendo uma boa combinação com o restante da parte instrumental, que traz sons de passarinhos e lembra um pouco a new age - aliás, já falamos sobre essa fase de Berlim ter sido pioneira no estilo lá na análise de Low (confira no post), o que já garante o disco inteiro a viagem sonora proporcionada; para fechar a sequência instrumental, ainda temos aqui da dobradinha Bowie & Eno uma música que transborda todo esse experimentalismo, todo esse conceito de uma viagem mais além do que se imagina dentro do álbum, e Neuköln soa como um tema cinematográfico também - poderia ser executada num remake/reboot de Metropolis (1927), clássico da ficção científica dirigido pelo alemão Fritz Lang, ou em qualquer filme do gênero - porque ele têm essa combinação com os ruídos, e o título foi baseado em um bairro de Berlim, para quem não sabe, e encerra com uma guitarra estridente e gritante ao mesmo tempo; o encerramento fica por conta da faixa que transborda um pouco desse experimentalismo, e que é todo cantado, estou falando de The Secret Life of Arabia, tem aqui uma veia poética mais cômica, diferente das faixas anteriores mais sérias e pesadas, e aqui a dupla chama Alomar para colaborar, tanto na parte musical quanto na guitarra - basicamente, o trio consegue fechar esse disco com tudo. Para um bom fã de Bowie, apenas uma reflexão do que ele nos ensinou na terceira faixas, de podermos ser herois, mesmo que só por um dia, ele consegue ser um eterno heroi da nossa música que acertou em cheio ao fazer esse disco.
Vale destacar aqui a capa do álbum, que fora concebida sob as fotos feitas com o japonês Masayoshi Sukita teve como inspiração a pintura Roquairol, do alemão Erich Heckel (1883-1970), inclusive, também inspirou Iggy Pop a fazer sua icônica pose para a foto da capa de The Idiot, seu primeiro LP solo. Influenciando diversos sons da época, como o próprio Joy Division, The Mission, Sisters of Mercy e parte das bandas góticas dos anos 80 (inclusive o Damned quando partiu para uma vertente mais sombria), grupos alemães surgidos naquela época como o próprio Trio, do lendário hit oitentista Da Da Da (Ich Liebe Dicht Nicht Du Liebst Micht Nicht), toda a música pop em geral, inclusive o próprio europop (que ainda tinha aquelas músicas pra cima cheia de cordas e sopros, meio nonsense até), mais nomes como o próprio New Order (nascido da costela do JD), a própria Grace Jones, a cena roqueira do Brasil no comecinho dos 80 pegou um pouco dessa fase, Radiohead, Pixies, enfim - um monte de gente pegou carona nessa fase berlinesca dele (e desse disco em especial) e decidiu colocar em seus sons, tornando essa a fase que mais inspirou a música contemporânea do final do século XX e início do século XXI, sem sombra de dúvidas. O disco, como eu disse, estaria entre os primeiros na lista de favoritos, e está presente em diversas listas dedicadas aos melhores álbuns dos anos 70, e ele está presente na famosa lista dos 1001 Álbuns Para Ouvir Antes de Morrer, antes que alguém esqueça de dizer que não citei sua importância do disco nessa lista.
Set do disco:
1 - Beauty and the Beast (David Bowie)
2 - Joe the Lion (David Bowie)
3 - "Heroes" (David Bowie/Brian Eno)
4 - Sons of the Silent Age (David Bowie)
5 - Blackout (David Bowie)
6 - V-2 Schneider (David Bowie) - instrumental
7 - Sense of Doubt (David Bowie) - instrumental
8 - Moss Garden (David Bowie/Brian Eno) - instrumental
9 - Neuköln (David Bowie/Brian Eno) - instrumental
10 - The Secret Life of Arabia (David Bowie/Brian Eno/Carlos Alomar)

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