Um disco indispensável: Acabou Chorare - Novos Baianos (Som Livre, 1972)

1970, os gurus tropicalistas Gil e Caetano estavam passando uma temporada fora do Brasil, sentindo as saudades de sua Bahia natal, da alegria de viver e do carnaval cheio de cores, mulatas e festa. Enquanto isso, os militares não seguiam de tentar acabar com o que fosse considerado "subversivo", "contra o poder" e que fosse considerado "careta", "ridículo" para o público conservador. Enquanto isso, frutos do movimento tropicalista como o grupo Os Mutantes, Jards Macalé, Gal Costa entre outros seguiam fazendo o papel de manterem o legado tropicalista vivo nas canções e nos trabalhos, embora não contassem mais com Gilberto Gil e Caetano Veloso por perto, que estavam em Londres no exílio (de julho de 1969 a abril de 1972), assim que as coisas seguissem no meio de um caos cultural em meio aos problemas causados pelos militares e que cada vez crescia mais o número de idas de políticos, artistas, jornalistas e de pessoas inocentes ao Departamento de Ordem Política Social, o temido DOPS aonde aconteceram
prisões, torturas e execuções e de onde muitos jamais voltariam possivelmente. A ditadura militar seguia cumprindo o seu papel de varrer qualquer coisa que fosse relacionada ao terriorismo, comunismo e censurava de vez aqueles que se manifestassem em forma de textos ou de músicas que estavam contra as palavras de ordem dos militares e isso iria se estender por mais quinze anos.
Enquanto isso, na época do governo de Emílio Garrastazu Médici, um conjunto de jovens talentosos, vindos de Salvador, capital da Bahia e berço de grandes cantores e compositores, seguia fazendo o mesmo som dos tropicalistas, reverenciando João Gilberto e Jimi Hendrix: estes eram os Novos Baianos, surgidos em 1967 enquanto o poeta Luiz Galvão estava preparando um espetáculo no Teatro Vila Velha chamado O Desembarque dos Bichos Depois do Dilúvio Universal, e um compositor das noites de Salvador chamado Antônio Carlos Morais Pires Moreira, ou melhor Moraes Moreira acaba sendo apresentado a Tom Zé e por meio deste, viria a conhecer Galvão e assim surge o núcleo poético dos Novos Baianos. Durante as férias, uma jovem chamada Bernadete Dinorah de Carvalho Cidade, que se chamaria mais tarde como Baby Consuelo (desde 1997 se chama Baby do Brasil), a única não-baiana (ela nasceu em Niterói) num bar e mais tarde Paulinho Boca de Cantor, um crooner da Orquestra Avanço: eis que se completa o quarteto definitivo. Eis que assim, o grupo acaba se juntando a mais alguns músicos que formariam a base, como Dadi Carvalho, o baixista e futuro A Cor do Som, além do baterista e percussionista Baixinho mais o guitarrista de um grupo chamado Os Leif's Pedro Aníbal de Oliveira Gomes, o futuro guitar hero Pepeu Gomes e que no meio do surgimento do gurpo, se casa com Baby. Em 1969, o grupo após rondar pelas noites de Salvador, acabam indo para São Paulo se inscrever no V Festival da Música Popular Brasileira, o último da TV Record, com a música De Vera, composta por Galvão e Moraes e que não passou no festival. O nome surgiu quando o grupo, já no festival concorrendo e sem um nome definido, eis que o coordenador do Festival Marcos Antônio Riso gritou "chama aí esses novos baianos!" e pronto, o nome de um dos grupos surgiu desse jeito, definindo assim o que se pode ser um dos maiores conjuntos que já se existiu na história da MPB e que sempre seguiu atravessando gerações.
Encarte do álbum com fotos da banda: um clima bem tranquilo e cheio de estilo,
todo trabalhado no próprio sítio do conjunto em Jacarepaguá, no Rio.
Fotos: Antônio Luis Martins "Lula"/Reprodução
O álbum que marcou a história da MPB, é o segundo de carreira após uma estreia bem mirabolada e cheia de canções, É Ferro na Boneca que foi lançado em 1970 pela RGE Discos, com as faixas do primeiro compacto e depois de terem deixado São Paulo para voltarem ao Rio de Janeiro e se instalarem em um sítio perto de Jacarépaguá, o Cantinho do Vovô e tentarem fazer outro material, desta vez pela Philips, selo da Phonogram produzidos pelo Nelson Motta um compacto com 4 faixas chamado Novos Baianos + Baby Consuelo No Final do Juízo (1971), este compacto com faixas boas porém mal produzidos e eis que nesse ano, João Gilberto volta para o Brasil depois de anos numa carreira focada no público internacional e acaba se encontrando com esse grupo. Certa vez, num apartamento em Botafogo, aonde todos os baianos moravam, eis que aparecia um sujeito de terno, tocando a campainha e o baixista Dadi pensou que era algum policial ou do DOPS, quando abriram a porta: eis que surge a figura de Deus em forma de música, João Gilberto, o guru musical e espiritual do grupo e com as visitas frequentes de outro baiano (João nasceu em Juazeiro, assim como Galvão) e ensinando alguns segredos da batida bossa nova. O nome do disco, Acabou Chorare, surgiu devido à influência do portunhol da filha Bebel Gilberto, ainda criança que falava "acabou chorare, papai" e que ainda carregava um pouco do idioma espanhol devido o fato de João ter passado uma temporada no México. O álbum contou com a produção de Eustáquio Sena e de João Araújo, este que era pai de um jovem que viria a ser fã do conjunto de cabeludos baianos e que teve influência deles, Agenor Miranda de Araújo Neto, o próprio Cazuza, além de ser o dono da Som Livre, gravadora que ele fundou, e todo trabalhado no sítio do grupo em Jacarepaguá com a ajuda do técnico Paulo César Salomão, que transformou o galinheiro do sítio em um estúdio para as captações da guitarra de Pepeu Gomes com um aparelho de televisor que nunca foi utilizado, tirando os seus capacitores para melhorar o trabalho da Supersonic, além de ter sido responsável por colocar amplificadores e caixas de som nos galhos de árvores e com tudo já ensaiado devido o dia-a-dia do grupo, movido a futebol, uso de drogas e até um banho: hippies, porém limpinhos, segundo Galvão.
João Gilberto: ícone principal da bossa nova e referência
principal para o som dos Novos Baianos. Uma visita
mudaria o rumo do conjunto e dessa visita veio
algumas ideias para o disco "Acabou Chorare"
O tema que abre o disco, Brasil Pandeiro, foi composto por Assis Valente (1911-1958), sugestão de João um tema deste autor que fora rejeitado por Carmem Miranda, de quem já interpretou vários temas, trouxe essa pérola quase esquecida do samba de volta pra boca da galera e capricharam nos arranjos; já Preta Pretinha, com seis minutos e quarenta, com o início apenas no violão e Moraes cantando, a canção tem como a história uma moça chamada Socorro (uma namorada de Galvão na época), aí a frase "Só, somente só..." e que tem uma versão com apenas 3:24, a versão curta que encerra o disco, portanto há duas versões neste disco, a longa e a versão curta que foi feita para as rádios como bônus; aqui, as guitarras ganham de vez um peso total em Tinindo e Trincando, aonde Pepeu Gomes mostra que é um dos melhores guitarristas brasileiros da história e aqui uma mistura de xaxado e baião com rock e com Baby arrasando nos vocais, aliás, falando em Pepeu e Baby, esse casal viria a formar uma belíssima dupla depois do fim do grupo em 1979; aqui, Paulinho Boca de Cantor se supera no Swing de Campo Grande, de Moraes e Galvão, um samba recheado de percussão e de violão e de craviola, instrumento de 12 cordas inventada por um brasileiro chamado Paulinho Nogueira e que acabou sendo instrumento muito utilizado por músicos nos anos 70 e até hoje existe quem toca, e muito utilizado por Pepeu Gomes no grupo; o portunhol herdado por Bebel enquanto ela, mais os pais, a cantora Miúcha e o ídolo da bossa nova João Gilberto, a música Acabou Chorare mostra ter um quê de João e de bossa nova nessa música, e a voz de Moraes suavizante, com versos impressionantes feitos por Moraes e Galvão; Boca de Cantor ainda mostra também outro tema do grupo que marcou pra sempre, Mistério do Planeta, que conta com a guitarra de Pepeu abalando as estruturas em uma das melhores canções do disco e do conjunto; em A Menina Dança, aqui Baby consegue mostrar de novo sua belíssima voz aqui no voz-e-violão (há um solo de guitarra no final) e falando sobre cantoras bombando num estilo particular "quando cheguei tudo, tudo, tudo estava virado (...) num tempo regulamentar" ou seja: sobre a vinda de Baby ao mundo das grandes cantoras brasileiras estourando, como Elis Regina, Wanderléa, Nara Leão, Gal Costa; o samba volta a ganhar vez total com Besta É Tu, da dupla de compositores neobaiana (Moraes & Galvão) mais Pepeu na colaboração com uma batucada bem brasileira, um estilo bem alegre e típico das canções do grupo; aqui os instrumentais abrem espaço em Um Bilhete Para Didi, de Jorginho Gomes, baterista e irmão de Pepeu e Didi Gomes, o primeiro aqui mostra uma verdadeira aula de como arrasar na guitarra e não é à toa que ele carrega fortes influências de Jimi Hendrix; o final mesmo, foi como eu disse antes, é apenas uma versão curta de Preta Pretinha feita para execução nas rádios com apenas 3:24, diferente da original que conta com 6:40 e é mais longa.
O disco influenciou gerações que viriam depois deste disco e cultuado por um monte de artistas no Brasil, desde pelos próprios Gil e Caetano, até mesmo João Gilberto, Lulu Santos e Marisa Monte, uma entusiasta do trabalho do grupo que os convenceu a voltar depois de participarem dos shows da cantora em 1996 e que no ano seguinte lançaram um duplo ao vivo chamado Infinito Particular, mas durou pouco tempo a reunião. Uma mistura de sons, ritmos que se pode ver nesse disco e que segue nos ouvidos de gente que viveu essa época e de gente que ainda segue valorizando essa obra-prima, que não é à toa que elegeram como o 1º lugar na lista dos 100 Maiores Discos da Música Popular Brasileira, da Rolling Stone tupininquim. A capa e toda a árte do álbum foi feita por Antônio Luis Martins, o Lula, aonde na capa se mostrava uma mesa de madeira feita por Pepeu com objetos do tipo copos e panelas dando uma visão definitiva do que era a mistura musical e espiritual do grupo no sítio Cantinho do Vovô. Ah, João, como não esquecer do seu papel na história desse grupo que segue marcando gerações hein?
Set do disco:
1 - Brasil Pandeiro (Assis Valente)
2 - Preta Pretinha (Moraes Moreira/Luiz Galvão)
3 - Tinindo e Trincando (Moraes Moreira/Luiz Galvão)
4 - Swing de Campo Grande (Moraes Moreira/Paulinho Boca de Cantor/Luiz Galvão)
5 - Acabou Chorare (Moraes Moreira/Luiz Galvão)
6 - Mistério do Planeta (Moraes Moreira/Luiz Galvão)
7 - A Menina Dança (Moraes Moreira/Luiz Galvão)
8 - Besta é Tu (Moraes Moreira/Pepeu Gomes/Luiz Galvão)
9 - Um Bilhete Para Didi (instrumental) (Jorginho Gomes)
10 - Preta Pretinha (versão curta) (Moraes Moreira/Luiz Galvão)


Comentários

  1. Melhor disco já feito na MPB desde sempre! Show de bola esse texto.

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