Um disco indispensável: I Never Loved a Man The Way I Love You - Aretha Franklin (Atlantic Records, 1967)

Depois de surgir como um fenômeno de conquistar não somente a América, mas um mundo inteiro com sua voz precisa e impressionante, a cantora e pianista Aretha Franklin - nossa eterna Rainha do Soul que partiu na última quinta-feira (16) aos 76 anos - muda de casa. Não digo a casa onde a pessoa mora e tudo mais, refiro-me à casa fonográfica, gravadora. Ela, filha de um pregador batista criada num ambiente religioso, nascida em Memphis, aonde estavam nascendo gravadoras como a lendária Sun Records, mas que se mudou muito nova para a cidade de Buffalo em New York e depois no estado de Michigan, na cidade de Detroit - onde o pai, a mãe e os irmão se instalam e ali o senhor Clarence LaVaughn Franklin instala a New Bethel Baptist Church na cidade, e foi nesta igreja em que ela realmente mostrava seu talento não somente como cantora, mas também como pianista. Ali, ela já era notada por gente como Dinah Washington e também por Mahalia Jackson, pessoas que se tornaram grandes referências na sua bagagem musical, e também por um cantor e compositor chamado Sam Cooke, de quem ela viria a gravar algumas de suas canções. Ela tinha somente 14 anos quando gravou em 1956 seu álbum de estreia intitulado Songs of Faith - todo ambientado no gospel, e ainda com uma repercussão rara. Foi preciso que começasse a cantar músicas seculares (com o incentivo do pai) e ela se mudasse para a cidade onde tudo acontece instantaneamente - logo New York - e gravasse demos pra que as gravadoras começassem a notar seu talento e sua voz, e a primeira gravadora que notou isso era de Detroit, estava inovando no mercado com artistas afro-americanos como Diana Ross & The Supremes, Smokey Robinson & The Miracles, Marvin Gaye, Stevie Wonder, The Marvelettes - era a Motown, de Berry Gordy Jr., e estava iniciando uma rompida de barreiras preconceituosas contra os artistas negros que ainda existia nos Estados Unidos tão conservador e moralista, ainda com o racismo dominando vários lugares do país. Porém, foi para uma gravadora maior e que tinha um grande elenco, logo sediada em NY, a Columbia Records - e com o produtor John Hammond dando uma mãozinha na sua carreira. Seu primeiro álbum em uma grande casa fonográfica foi Aretha - In Person With The Ray Bryant Combo e logo em diante foram mais sete discos, um deles com um tributo a Dinah Washington (falecida em 1963) e fecha seu ciclo com Soul Sister em 1966, até que ela decide não renovar mais o contrato na gravadora.
O motivo dela deixar a Columbia foi porque ela não teria sua grande importância com suas raízes gospel e também o fato de não conseguir desenvolver ali dentro o seu potencial, embora seus discos migrem para algo mais aproximado do jazz a época. Então ela decide assinar com outra gravadora, desta vez era a gravadora dos irmãos Ertegun existente desde os anos 40, a Atlantic Records e por lá grava seu grande álbum, estamos falando é sobre I Never Loved a Man The Way I Love You - mas, antes de começarmos a fazer nosso tradicional faixa-a-faixa, vamos falar sobre os bastidores da gravação, ela foi com o então marido, o compositor e músico Ted White e o produtor Jerry Wexler para o Fame Studios na cidade de Muscle Shoals, no Alabama, porém, quase que o disco não acontece. Quando chegaram para gravar, os músicos estavam à vontade e não notaram a presença dos três, até que ela decide mostrar seu gênio no piano e os músicos se impressionaram muito - até que White não vê com bons olhos as sessões com a turma do Muscle Shoals e acha que um dos trompetistas estaria dando em cima dela, rolou pancadaria e ela sumiu por um tempo até que ela encerra as gravações nos estúdios da Atlantic em New York, por volta de fevereiro de 1967. Feito o disco, é lançado no dia 10 de março  1967 com um grande impacto não somente pela mudança, mas pelos sucessos que apresenta. Vamos abrindo a resenha com um dos clássicos imortalizados na sua voz, escrito por Otis Redding dois anos antes, Respect e que traz um belo arranjo, os naipes de metais, os backing vocals feito pelas irmãs de Aretha e o piano executado pela própria - que decidiu adaptar a letra de Redding na qual ele falava sobre um homem que pedia respeito à sua amada e Aretha mexeu na letra e transformou em um hino do empoderamento feminino, o ponto alto é quando ela soletra a palavra como um pedido aos homens, o sucesso dominou mundialmente mas Redding faleceu em acidente aéreo em dezembro daquele ano, mesmo assim viu a tempo sua música se transformar em uma canção mais feminina com nossa Lady Soul imortalizando total; em seguida nós temos aqui um tema clássico de Henry Glover aonde ela põe todo o peso emocional na hora de cantar, falo aqui sobre Drown in My Own Tears, que já havia sido gravada 11 anos antes por Ray Charles, mas que nesta versão ela mostra toda a tristeza e melancolia de se afogar nas suas próprias lágrimas e não deixando de destacar um piano marcante aonde ela toca (em quase todo o disco é ela que toca o piano); adiante, temos aqui outra música - a primeira a ser trabalhada em estúdio antes daquela confusão em Muscle Shoals, e que foi o primeiro tema a dominar o topo das paradas, alcançar o número 1 - falo aqui sobre I Never Loved a Man (The Way I Love You) e ela entrega com a alma a história de uma esposa que convive com um marido abusivo, sabe que ele a trai e mesmo com tudo isso, não consegue se desvencilhar - aqui, um arranjo excelente mostra uma onda totalmente soul e blues, este último mais presente na sonoridade pelo que escutamos; já na próxima música, temos aqui uma levada bem mais aproximada do soul total, e falo aqui sobre Soul Serenade - totalmente com ares gospel, mantendo-se fiel às raízes, o baixo e os metais ajudam muito a dar o brilho da canção e a voz dela atinge tons agudos ao ouvirmos; depois disso, ainda temos uma canção mais diferentona do repertório,  há um pouco de Brasil - mais precisamente de bossa nova - no arranjo de Don't Let Me Lose This Dream, que mostra esse jeito bossa-novista através do piano e do violão e que aqui ela parece falar sobre seu relacionamento que é aquele tipo de sonho do qual ela jamais quer acordar - como a de muita gente, pelo jeito; e fechando o lado A, temos outro grande tema deste disco, e um destaque total, Baby, Baby, Baby escrito por Aretha em parceria com a irmã Carolyn, na qual ela parece falar sobre um romance rápido e o poder do amor, com um piano elétrico, uma guitarra bem de blues total e também os agudos vocais da cantora que nos fascinam de cara.
E sem muito a falar, temos aqui em Dr. Feelgood (Love Is A Serious Business) um belo arranjo mais voltado mesmo ao blues, e na letra ela fala sobre como se sente na vida amorosa, mas quando encontra o tal Doctor Feelgood (Doutor Sinta-Se Bem), ela se sente mais realizada e melhor - uma possibilidade de denotação sobre sexo, algo que ajudava a segurar o relacionamento, talvez seja bem isso; e também sobra tempo para reverenciar amigos e ídolos, como no caso de Sam Cooke - de quem Franklin regravou Good Times, soando aqui como um soul mais pra cima e envolvente na levada, e que se trata de uma daquelas noites tão boas que não devem ter fim, que passassem devagar - e aqui ela canta cada vez melhor sem fugir da essência; ainda recordando o episódio no Fame Studios na qual houve um desentendimento e briga das pesadas, isso ajudou que Dan Penn e Chips Moman criassem um tema na linhagem de Respect, como podemos notar em Do Right Woman, Do Right Man aonde ela fala sobre o amor e o respeito que ela gostaria que tivesse e também que a mulher é um ser humano e merece ser tratada como tal numa das suas melhores interpretações com um tom mais melódico nos arranjos; mais adiante, ainda podemos contar aqui com uma parceria de Aretha e Carolyn mais Curtis Ousley na amarga Save Me, que apesar de ter uma pegada bem aproximada do soul e flertando com o rock de vez, na letra ela pede instantaneamente socorro, querendo sair daquele relacionamento que a mantém presa demais e é uma música com uma boa base sonora pelo que se nota; e fechando o disco com chave de ouro, novamente temos um tema do seu saudoso ídolo e amigo Cooke - assassinado em 1964 - em A Change Is Gonna Come, um tema que originalmente se trata sobre racismo, mas que aqui ela acrescenta algumas linhas falando sobre Cooke, na sua versão ela canta sobre a mudança que virá quando sair do relacionamento e também sobre dias melhores que hão de vir mais pra frente, e com um ambiente enraizado no gospel que ajuda mais no peso da interpretação terminando assim essa obra de arte.
Fazendo a conclusão definitiva, este álbum não é somente uma série de confissões da cantora, uma espécie de diário pessoal onde ela expõe de tudo um pouco - ele é isto e muito mais. Com este disco, ela conseguiu alcançar o topo das paradas com 3 faixas - inclusive Respect, que ajudou a levar para a casa duas estatuetas do Grammy - de Melhor Gravação de R&B e a de Melhor Performance Vocal de R&B Feminina, mostrando aonde as mulheres estavam chegando de vez, rompendo um forte tabu numa indústria fonográfica tão machista naqueles tempos. Em 2000 o aclamado jornal The New York Times decidiu fazer uma lista com os 25 discos mais significantes do século 20 e esse disco aparece lá, um ano depois a emissora televisiva VH1 coloca I Never Loved a Man... no 30° lugar dos 100 maiores discos de todos os tempos, mas as grandes honrarias para este disco estão: primeiro na célebre e sempre citada lista da Rolling Stone dos 500 Maiores Álbuns de Todos os Tempos, aparecendo no 83° lugar em 2003. O segundo é na revista TIME que a colocou como 17° nos 100 maiores álbuns da história e sem esquecer a lista dos 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer que destaca o grande salto de Aretha nesse disco.
Set do disco:
1 - Respect (Otis Redding)
2 - Drown in My Own Tears (Henry Glover)
3 - I Never Loved a Man (The Way I Love You) (Ronny Shanon)
4 - Soul Serenade (Curtis Ousley/Luther Dixon)
5 - Don't Let Me Lose This Dream (Aretha Franklin/Ted White)
6 - Baby, Baby, Baby (Aretha Franklin/Carolyn Franklin)
7 - Dr. Feelgood (Love Is A Serious Business)(Aretha Franklin/Ted White) 
8 - Good Times (Sam Cooke) 
9 - Do Right Woman, Do Right Man (Dan Penn/Chips Moman)
10 - Save Me (Curtis Ousley/Aretha Franklin/Carolyn Franklin)
11 - A Change Is Gonna Come (Sam Cooke)

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