Um disco indispensável: 10000 Anos Depois Entre Vénus e Marte - José Cid (Orfeu, 1978)

É estranho quando ouvimos um certo burburinho de que lá nas terras do pastel de Belém, do Sporting e do Benfica, do 25 de abril e do fado - sem esquecer as azeitonas e os vinhos - existe um tesouro tão cultivado pelos portugueses que merece seu devido valor através dos tempos, e não falo somente dos fados de Coimbra, ou o conjunto da obra de Amália Rodrigues ou de José Afonso não. Estou a falar de um álbum de rock progressivo nos moldes da sonoridade do Yes e do Pink Floyd à portuguesa com certeza, pá! Tás louco? Jamais soubeste da existência disto? Ou pensa que lá só faziam baladas românticas, alguns rockzinhos, etc. e tal? Calma, calma que vou explicando bem sobre o que falaremos aqui neste blog, desanimem não! O que quero trazer a vocês aqui é a história e uma resenha sobre um dos álbuns mais importantes do rock português e da música portuguesa em todo. Ah, Portugal! Tu que exportastes Amália, Zeca, Carminho, Godinho, Abrunhosa, Xutos e o Quim Barreiros, viestes a exportar para o mundo também o José Cid. Só pra resumir um tanto a história deste gênio, o multi-instrumentista José Albano Salter Cid Ferreira Tavares nasceu em 4 de fevereiro de 1942 na cidade de Chamusca, no distrito de Santarém e se mudou quando pequeno para o distrito de Aveiro, na cidade de Mogofores, aos 11 anos com os pais e as irmãs. Inicia-se uma jornada musical quando já morava em Coimbra lá por volta de 1955, um jovem ao piano, fazia parte do conjunto Os Babies, que, segundo muitos, consideram uma das primeiras bandas portuguesas de rock que fazia interpretação de versões, ao lado de António Portela no acordeom, Rui Nazareth na guitarra elétrica, António Igrejas Bastos no contrabaixo e vocais e Luiz Cabeleira na bateria, e vindo a durar até o ano de 1960, com a saída de Igrejas que foi para Lisboa viver com sua família. No mesmo ano de 1960, inicia o curso de Direito ainda residindo em Coimbra e ao mesmo tempo, paralelamente ao curso, tocava no Conjunto Orfeão e no Trio Los Dos, além de ter feito parte da banda de surf rock Os Claves, que também faziam alguns covers em português. Abandona o curso de Direito em Coimbra sem ter concluído o primeiro ano e decide partir para outro curso, o de Educação Física, e lá conhece um irmão de Michel Silveira, que tocava bateria em uma banda chamada Conjunto Mistério, e junto dele os irmãos António e Jorge Moniz Pereira, e foi só preciso Cid entrar em 1967 para que nascia ali uma das maiores bandas do rock português, o Quarteto 1111 - o número deve-se ao fato de ter sido o telefone do endereço de ensaio da banda. E logo de cara, eles lançam um EP intitulado A Lenda de El Rei D. Sebastião, que repercute de cara, e logo no ano seguinte a banda acaba se tornando uma atividade paralela à de oficial miliciano da Força Aérea Portuguesa, situada no Centro de Formação Militar e Técnica, por 4 anos ele exerce o cargo e dá aulas de ginástica. Após mais três EPs e alguns singles gravados inclusive, eles editam no ano de 1970 o álbum homônimo, mas sem nenhuma promoção devido à proibição da censura forte e vigente naquela época.
No ano seguinte ele lança seu disco solo de estreia, com uma boa repercussão e ao mesmo tempo trabalha com os 1111 em uma investida mais comercial para a banda com um nome em inglês, e nascem os Green Windows em 1972 com Tozé Brito já também no 1111, depois ele e Silveira são substituídos por Vitor Mamede e um escocês chamado Mike Sergeant, um guitarrista residente há cinco anos no país. Cid ainda chega a emplacar canções em festivais, ora com os dois conjuntos, ora solista e concebe em 1975 um álbum experimental que acabou sendo algo super elaborado até então, estou me referindo à Onde, Quando, Como, Porquê Cantamos Pessoas Vivas na qual faz um reflexo sobre o contexto de uma Portugal pós-25 de Abril, onde se abordam os sentimentos de alegria e esperança após a queda do Estado Novo, com uma sonoridade aproximada do rock sinfônico e do progressivo, fazendo soar como um King Crimson lusitano se formos comprar bem. O álbum se torna uma grande raridade em vinil, mas têm reaparecido nos mais modernos formatos, como em CD e em digital, reaproximando jovens da obra de um dos maiores conjuntos portugueses de rock daquela época e de sempre. Ao mesmo tempo em que se dividia entre projetos paralelos como músico, produtor, arranjador e, como dito antes, também participando em festivais de música, ele ainda marcava presença desde os 70 até uma parte dos anos 90 nesses festivais. Com quase 10 compactos de singles gravados, 5 EPs e até então um álbum completo, ele decide investir nos experimentos sonoros do rock progressivo, e isso acabou ajudando a criar uma de suas magum opus de sua carreira.Com os Green Windows e também o Quarteto 1111 de atividades encerradas - embora fizessem breves retornos gravando algumas coisas inéditas ou participando de eventos, ele pôde se dedicar mais ainda à sua carreira solo, e entre fins do ano 1977 e começo de 1978 - quando ele entra em estúdio com uma ideia mais do que brilhante na cabeça: a história de um casal que volta para um planeta de origem azul e totalmente desabitado, carregado de sintetizadores, dentre eles o Mellotron, com uma sensação de soar a nível de King Crimson, Genesis, Yes, Pink Floyd, Moody Blues entre outros figurões do rock progressivo - gênero que tinha perdido seu espaço para o vômito do punk de Ramones, Sex Pistols e Clash, e para o luxo e suingue da discothèque de Donna Summer, Bee Gees e também Chic - para os punks, o progressivo era coisa de quadrado, dinossauro - gente vieja pero ni tanto, muchach@s, o termo era e ainda é designado para gente cujo gosto musical é ultrapassado.
Para a gravação deste álbum, que viria a se chamar 10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte - nome bem-elaborado, Cid não estava sozinho: na guitarra e no baixo estava Zé Nabo, na outra guitarra estava Mike Sergeant e na bateria um jovem músico filho do maestro basco Shegundo Galarza, este era Ramón Galarza ainda em um de seus primeiros grandes trabalhos - pronto, o time de músicos acompanhantes agora estava 100% escalado! Além do próprio Cid pilotando uma nave de sintetizadores para Rick Wakeman ou Tony Banks nenhum botar defeito, o portuga ainda assumiu os arranjos e a produção do álbum. Vamos à primeira faixa, que abre o disco soando como uma pegada bem de prog mesmo, O Último Dia na Terra - que fala da jornada de um homem e de uma mulher ainda no planeta antes de que acontecesse coisa pior, sintam a vibe do arranjo e viajam nessa sonzeira que nos sintoniza com uma dimensão intergalática através da imaginação; na sequência ainda temos um tema que já aponta para um rumo mais pesado, e começa aí a mudança do rumo da história: em O Caos, mostra um conflito entre os próprios humanos ainda, e o peso sonoro chega a migrar para um hard rock, mas sem deixar a essência do progressivo de lado, só pra lembrar os ouvintes/leitores aqui; já mais adiante é que temos o momento em que Cid narra a saída dos dois para outros cantos das galáxias em Fuga Para o Espaço, na qual eles partem de uma nave espacial e aqui temos o grande momento que são os instrumentais nessa balada alucicrazy nos seus oito minutos, como se narrasse num tom mais emocionante e dramático pela narrativa durante esta que é a mais longa faixa do álbum; o lado B do disco sofreu um erro grave durante as sessões de gravação: o álbum estava todo gravado e quando algum membro da equipe acabou por descuido a desmagnetizar as cabeças do gravador - à época, feito no modo analógico - se apagaram as quatro faixas seguintes e tudo teve de ser regravado como se nada tivesse acontecido, e em Mellotron, O Planeta Fantástico a sonoridade permanece, a vibe mostra a jornada dos dois, já distantes da Terra viajando e desbravando mundos fora na galáxia, com destaque para os sintetizadores e o ritmo de Galarza na bateria, ouçam cada segundo da música e sintam a bateria arregaçando total - não é à toa que ele é um dos mais renomados bateristas e produtores de Portugal anos depois de ter participado deste álbum; na próxima música, um sintetizador parece imitar sopros e começa uma sequência instrumental viajante que impressiona qualquer estrangeiro fã de prog, e 10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte se destaca e muito no álbum pela cozinha instrumental e pela narrativa, como se eles decidissem voltar e recomeçar a civilização, os sintetizadores chapantes ajudam muito no brilho; adiante no repertório, a canção que vêm a seguir é mais instrumental, ainda que com um pequeno verso em A Partir do Zero, uma música em que Cid desperta seu Richard Wright interior numa faixa onde o casal decide de vez retornar ao planeta para civilizarem e assim renascer a esperança com novas gerações - mais ou menos isso; já o encerramento do disco fica por conta de um tema instrumental, o único que não passa de 4 minutos de duração, estou falando de Memos - que faz parecer uma banda inglesa que está tocando, mas é Sergeant, Zé Nabo, Galarza e Cid inspiradíssimos em 2 minutos que fazem sentir o recomeço da humanidade na Terra e encerra de vez uma das óperas-rock que entrou para a história.
É engraçado como o mundo dá voltas nessa vida, pois quando foi lançado há 40 anos atrás, o disco não foi totalmente visto pela crítica como um grande disco e vendendo aproximadamente 950 (!!!) cópias, ficou fadado ao esquecimento até que uma gravadora americana chamada Art Sublime viese a editar o álbum em meados dos anos 1990 e na virada do milênio a Movieplay editasse em CD reaproximando um público jovem da sua obra. O álbum conseguiu entrar em listas de grande reconhecimento do progressivo, por exemplo, a revista estadunidense Billboard elegeu como o melhor álbum de rock progressivo e a revista do país natal Blitz elegeu entre os 40 melhores álbuns portugueses dos anos 70 como o 11° - sempre à frente do nosso tempo. Dois anos depois, Zé Nabo e Ramón Galarza participaram de um dos grandes álbuns de rock português que inovou o gênero no país em 1980, o clássico Ar de Rock, do Rui Veloso e também creditado à Banda Sonora, e que também já falamos aqui no blog. Com a redescoberta do álbum através dos anos, inicia-se uma série de concertos que vêm realizando tocando este disco e também dando entrevistas e renovando-se em seus últimos álbuns, provando que a ficção científica de Portugal não ganhou somente o país, mas o mundo todo, 40 anos depois, se tornando uma viagem sonora incrível. 
Set do disco:
1 - O Último Dia na Terra (José Cid) 
2 - O Caos (Mike Sergeant/Miguel Lamas)
3 -  Fuga Para o Espaço (José Cid)
4 - Mellotron, O Planeta Fantástico (José Cid)
5 - 10.000 Anos Depois Entre Vénus e Marte (José Cid/Zé Nabo)
6 - A Partir do Zero (José Cid/Ramón Galarza)
7 - Memos (José Cid)

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