Um disco indispensável: Krig-ha, Bandolo! - Raul Seixas (Philips/CBD Phonogram, 1973)

Houve uma vez, em que a música brasileira estava sofrendo ameaças de censura, perseguições - mais pelas suas visões políticas do que apenas pelas suas canções que mostravam a realidade de um País que estava preso a um regime/ditadura militar que já ia completando uma década, o clima tendia a piorar ainda mais ainda. Porém, havia seres que orientariam-nos até a luz no fim do túnel e que pudessem ajudar a manter a essência da MPB mais viva, forte e poderosa do que nunca, e uma dessas luzes guiava a um caminho mais mágico e cheio de surpresas. Quem nos orientava a essa luz? Um sujeito magrinho, barbudo, cabelos crespos e que usava uma capa com motivos de uma chave unindo uma cruz, estrelas, sem camisa, uma calça brilhante e botas, além de usar um casaco lilás: este era Raul Seixas, baiano de Salvador nascido no dia 28 de junho de 1945, experiente em repetir de ano, que ajudou a difundir o rock na Bahia através do seu conjunto musical Os Relâmpagos do Rock, depois The Panthers - mais tarde Os Panteras, e na época era conhecido como Raulzito, conseguiu levar o papel de propagador do rock e da música de Elvis Presley, Chuck Berry, Little Richard, Bill Haley dentre outros desde jovem até o fim. Após acompanharem nomes da Jovem Guarda, o grupo consegue ir para o Rio de Janeiro e tentam a sorte grande até assinarem um contrato com a gravadora Odeon, que tinha em seu cast nomes como Wilson Simonal, Clara Nunes, Golden Boys e Sérgio Reis dentre outros nomes. Em 1968 eles lançam seu primeiro e único disco, que apesar de soar excelente e ter boas letras, não andou pra frente, Raulzito e Os Panteras, e com isso o fim da banda. Raul permanece na Bahia e começa a ler intensamente e mergulha no mundo da filosofia, porém, a chance de trabalhar na área musical reaparece quando Jerry Adriani o indica a Evandro Ribeiro a contratá-lo para trabalhar como produtor da gravadora CBS Discos (hoje Sony Music) e lá se responsabiliza pela produção de trabalhos de artistas como do próprio Jerry, da banda Renato & Seus Blue Caps, Tony & Frankye, Diana, Leno - este com quem dividiu os vocais no célebre álbum Vida e Obra de Johnny McCartney, e a vontade de poder fazer um disco seu estava batendo desde sempre, até que decidiu levar sua aposta, um capixaba chamado Sérgio Sampaio, mais a sambista Miriam Batucada e o cantor pioneiro do androginismo Edy Star, para fazerem um material coletivo na CBS sem a presença dos executivos, e assim nasceu o álbum Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10, um disco raro, que era visto como uma nova versão do movimento tropicalista inspirado em Frank Zappa, que também não rendeu. O disco não foi um grande sucesso nem nas lojas, o projeto acabou não surpreendendo a muitos nem mesmo aos executivos da CBS, que ao saberem da existência desse disco, decidiram chutar Raul pra fora da gravadora, além de Sampaio, que era considerada por ele uma das melhores revelações para o selo, mas não foi para a frente.
Com Sérgio Sampaio em 1972 trabalhando já na Philips
Em 1972, desempregado mas sem motivos para desistir, viu num conselho de Sampaio a oportunidade de se consagrar através de festivais - tal como Caetano, Gil, Edu, Milton, Chico, e escreveu um tema que misturava o rock de Elvis Presley com o forró e a música nordestina de Luiz Gonzaga, e foi na última edição do FIC (Festival Internacional da Canção), que trouxe nomes como Maria Alcina, Raimundo Fagner, Alceu Valença e Geraldo Azevedo, com esse forrock cabra da peste que é Let Me Sing, Let Me Sing feito com Nadine Wisner, irmã de sua esposa Edith, e com essa música levantou o Maracanãzinho à loucura com seu topete, roupa de couro que lembrava o Elvis de 68 pelo seu estilo. Com essa música, não ganhou o prêmio, mas sim o sucesso de vez e um contrato com a Philips e levara seu parceiro Sampaio para o elenco, trabalhando com um jovem produtor, um carioca chamado Marco Mazzola, que estava atuando fazendo trabalhos com Elis Regina, MPB-4 e depois nomes como Jair Rodrigues, Rita Lee, Gilberto Gil dentre outros naquele elenco. No mesmo momento, ali surgia também uma das grandes amizades na história do roqueiro baiano com um escritor e representante do movimento hippie chamado Paulo Coelho, que escrevia para revistas underground como A Pomba e 2001, e sequer tinha muita experiência como compositor, e descobriram muita coisa em comum: o gosto por discos voadores, filosofia e ocultismo, e nasceu ali uma parceria místico-poético-musical que renderia canções e aventuras com as drogas, em especial cocaína e ácidos, mesmo que Raul já fosse um cara que tomava remédio para aguentar a pressão de trabalhar como produtor nos seus anos de CBS, e fumava desde jovem, formando assim uma parte do ciclo sex, drugs and rock 'n' roll que começava a se manter mais em voga a partir dos anos 70 direto. Com isso, juntou um monte de canções, algumas compostas na juventude, outras ainda no tempo da CBS mais algumas coisas recentes à época - inclusive temas com Paulo, preparou o material, chamou Mazzola para produzir, e chamou uma banda de peso: além de tocar guitarra e violão, chamou o amigo músico americano Jay Anthony Vaquer pra fazer a maioria das guitarras e um amigo americano também tocou, o baterista Bill French e ainda chamou o trio Azymuth para fazer a canja: José Roberto Bertrami no piano, Alexandre Malheiros no baixo e Ivan "Mamão" Conti na bateria presentes em quase todo o trabalho, que contou ainda com Paulo Cezar Barros, dos Blue Caps com quem o baiano trabalhou na CBS, o baterista Pedrinho, além do pianista argentino Miguel Cidras também fazia arranjos e regência, além de contar com Luiz Paulo Simas nos pianos e sintetizadores - pronto, a banda que iria participar desse disco estava formada. O disco, que seria lançado em 21 de julho de 1973, se chamaria Krig-ha, Bandolo! - inspirado em um grito do personagem de quadrinhos Tarzan, que significava "cuidado, aí vem o inimigo!" e quem seriam esses inimigos? Os militares, óbvio. Apesar de vivermos tempos difíceis, não havia um jeito de se permanecer calado, o negócio mesmo era falar na cara mesmo. A capa mostra uma imagem de Raul sem camisa, com um medalhão no peito e uma cruz - a de Ankh, que com uns degrauzinhos embaixo, vira uma chave - e esta chave se tornou o símbolo da Sociedade Alternativa, na contracapa uma imagem dele emoldurada com a letra de uma das músicas presentes com um lugar todo abandonado no fundo e o encarte apresenta as letras com títulos no estilo gótico e todo desenhado, lembrando um pouco referências de histórias em quadrinhos e um agradecimento ao pai "Dedico este disco ao meu pai, para ouvir tomando uma cervejinha" modesto e humilde até, e o projeto gráfico teve toda a mão do baiano e do mago mais Edith e Adalgisa Rios com Aldo Luiz que ajudaram nesse brilhante design.
E, vamos falando das faixas de Krig-ha, Bandolo! por aqui, a começar pela vinheta de introdução, que é uma gravação de Raul aos nove anos cantando o que soa Good Rockin' Tonight, da autoria de Roy Brown e no final, o irmão Plínio anuncia o intérprete e confunde o nome dele com o do pai, como se fosse um ponto de partida de toda essa viagem; na sequência, temos uma voz em off abaianada anunciando que o show tá começando, é Mosca na Sopa o cartão de visita do baiano, que traz uma pegada de candomblé, capoeira e misturada com o rock, e soando como um aviso aos militares, e com um efeito de mosca feito no sintetizador, algo novo para aqueles tempos; já mais em diante, temos aqui um blues triste pela melodia, com uma das primeiras composições de Raul feita ainda aos 12 anos chamada Metamorfose Ambulante, que fez rascunhada na parede de seu quarto e soa autobiográfica e fala sobre a gente rever os conceitos, as mudanças que acontecem nas nossas vida volta-e-meia, uma das melhores canções da sua carreira; já a próxima faixa, curtinha demais com apenas 1:32, ela faz uma alusão ao governo militar e fala sobre o que pode cair, subir, sair - Dentadura Postiça têm uma atmosfera country/bluegrass que acaba nos agradando e muda o tom, não passa batido mas também soa como positivista pra quem quer ver sair "o Sol outra vez" num amanhã, mesmo que distante; mais seguida, na próxima faixa, temos ainda As Minas do Rei Salomão, com um toque de aventura nos versos e composta em parceria com o Mago, traz duas referências literárias: a primeira é a do livro que também têm o mesmo nome da música, escrita por Henry Rider Haggard, e também o clássico literário Dom Quixote, do espanhol Miguel de Cervantes, já cruza com uma atmosfera de country americano puxada para um folk elétrico também na levada; o que dizer quando Raul decide cantar suave com um piano e violão no fundo de A Hora do Trem Passar que soa baladista até, mas fala sobre a morte, o significado de "trem" em quase todos os títulos de suas canções ainda nesta fase mais mística e tudo mais, ela só cresce no final e a música morre ali; em seguida, temos aqui um dos grandes sucessos de sua carreira, que surgiu após pedir a Paulo uma letra sobre um dos maiores gângsters da história, logo Al Capone, que nasceu como um textão e depois aprimorou e fez um rock com influências dos anos 50, porém com uma levada à la Rolling Stones, excelente por sinal, ele cita nomes que vão de Jesus a Hendrix como se estivesse avisando que aqui no Brasil o negócio tava brabo de segurar, e que a solução era dar o fora enquanto fosse tempo - isso é o que podemos ler nas entrelinhas, e ainda contamos com um verso de Paulo assumindo "Eu sou astrólogo, vocês precisam acreditar em mim..." meio que ficando de fora do contexto, porém soando debochante ao nosso ouvir; no disco ainda sobra um bom espaço para romances em inglês, e esta música Raul chegou a compor como Love Was to Go e pensou até em mandar a canção para Elvis gravar, o que não aconteceu - daí ele decide refazê-la e é rebatizada de How Could I Know, e até que não faz feio no repertório - muito bem elaborado, não perde a essência nem com esse perfeccionismo dos arranjos, e dizendo para o ouvinte fazer sua revolução e não ficar pra baixo em meio ao caos que era; mais em diante, ouvimos o baixo de Paulo Cezar e podemos sentir que coisa boa ainda segue a vir neste disco, e Rockixe é uma delas, fala da forma como os jovens se impressionam e que refazem a jornada "aprendi a ficar quieto e começar tudo de novo", com uma pegada bem próxima ao soul, tanto pela levada quanto pelos metais fortemente presentes neste tema; e também como era muito comum nos anos 70, havia letras com sinais de derrota nos versos, e esse exemplo está bem presente na faixa Cachorro Urubu havia disto "todo jornal que eu leio me diz que a gente já era" como se mostrasse o fim da luta meio que inspirado no emblema "The dream is over" (O sonho acabou) de John Lennon, e cheia de versos driblando os censores de vez trazendo alusões às manifestações na França em 68, o que soa como uma goleada de primeira do maluco beleza, é claro; o final do disco acaba sendo algo épico, marcante e simbólico: primeiro porque encerra com um sucesso que sacaneava o Milagre Econômico no país e a insatisfação de um sujeito com bom emprego, vivendo bem e tudo: essa era Ouro de Tolo, aonde o baiano agradecia nos primeiros versos, e que lembra um pouco A Montanha, tema de Roberto Carlos do álbum de 1972, e que ganhou repercussão maior depois que ele passeou pelas ruas do Rio de Janeiro em 7 de junho de 1973 e rendendo uma reportagem no Jornal Nacional: pronto, aí estava algo que ele conseguiu instantaneamente, o reconhecimento em cadeia nacional e que o botou para sempre na história da nossa MPB, apenas isso.
Achou que o disco termina aí? Achou errado, embora no meio do que seria o final haja um silêncio sucedido por um "tá gravando?" nós somos surpreendidos por uma hidden track, uma faixa escondida aonde ele fala "meu nome é Raul Santos Seixas" e ele se diverte com os efeitos de voz que deixam ele falando meio zuado, e assim que fecha o disco, nas primeiras edições em vinil e posteriormente na reedição em CD de 2002 com uma remasterização melhorada. Nesta citada edição de 2002 em CD, que foi para um box chamado Maluco Beleza - como poucos lembram, há 3 faixas bônus: a primeira é um tema intitulado Caroço de Manga, com uma onda bem funk nos arranjos, foi feita para o filme A Volta de Beto Rockfeller, a segunda era a versão ao vivo original de Loteria da Babilônia extraída das apresentações do Phono 73, célebre momento de sua carreira onde ele pinta a chave da Sociedade Alternativa com batom vermelho no palco, e a última da rodada é uma versão inédita da canção Ouro de Tolo em que ele troca o "Corcel 73" pelo "carrão 73" e sem comentários, um pouco de coisa inédita pra quem esperava. O disco trouxe um papel simbólico em sua carreira e na história da MPB e do rock nacional em todo, pois é a sua consagração definitiva e a realização como cantor e compositor que o manteve através dos tempos. O disco merece estar sempre em todas as listas de álbuns de rock e de MPB, e não é à toa que ele é o nosso pai do rock nacional, e uma lista que prova a importância de Krig-ha, Bandolo! no rock, na MPB, no folk brasileiro (SIM!) está na lista dos 100 Maiores Discos da Música Brasileira, organizada pela Rolling Stone o destacando em 12º lugar, dando prova de que sua música influenciou e ainda influencia gerações que compreendem seu papel dentro do âmbito poético-musical do nosso país desde sempre.
Set do disco:
1 - Introdução: Good Rockin' Tonight (Roy Brown) - Raul cantando aos nove anos
2 - Mosca na Sopa (Raul Seixas)
3 - Metamorfose Ambulante (Raul Seixas)
4 - Dentadura Postiça (Raul Seixas)
5 - As Minas do Rei Salomão (Raul Seixas/Paulo Coelho)
6 - A Hora do Trem Passar (Raul Seixas/Paulo Coelho)
7 - Al Capone (Raul Seixas/Paulo Coelho)
8 - How Could I Know (Love Was to Go) (Raul Seixas)
9 - Rockixe (Raul Seixas/Paulo Coelho)
10 - Cachorro-Urubu (Raul Seixas/Paulo Coelho)
11 - Ouro de Tolo (Raul Seixas)
FAIXAS BÔNUS DA REEDIÇÃO EM CD PARA O BOX "MALUCO BELEZA" (2002):
12 - Caroço de Manga (Raul Seixas/Paulo Coelho)
13 - Loteria da Babilônia (Raul Seixas/Paulo Coelho) - gravado ao vivo no Phono 73
14 - Ouro de Tolo - versão "Carrão 73" (Raul Seixas)

Comentários

Mais vistos no blog