Um disco indispensável: Clube da Esquina - Milton Nascimento & Lô Borges (Odeon, 1972)

Na década de 1970, o carioca criado na cidade mineira de Três Pontas, Milton Nascimento já era um cantor e compositor aclamado no cenário da Música Popular Brasileira e conseguindo se livrar aos poucos do peso que carregava até os primeiros anos de sua carreira por ter sido o compositor de Travessia, primeiro sucesso dele que foi vice-campeã no II FIC (Festival Internacional da Canção). Durante o ano de 1970, o cantor seguiu uma extensa turnê pelo Brasil acompanhado do grupo Som Imaginário, na qual contava com o tecladista, pianista e diretor musical Wagner Tiso além de Zé Rodrix como integrantes principais, mais Luiz Alves no baixo, Robertinho Silva na bateria e Tavito na guitarra e também tendo a presença de outros músicos, como o guitarrista Toninho Hortao saxofonista Nivaldo Ornellas dando uma canja especial nos shows de Bituca, como também é conhecido. Numa dessas passagens em Belo Horizonte, Milton acaba dando uma passada na casa dos Borges junto do amigo e compositor Fernando Brant, mais os donos do lar que eram seu Salomão e dona Maricotinha e no meio de uma macarronada, alguns dos filhos deles, como o outro Salomão e este que viria a se chamar Lô Borges, apresentou uma música feita com Brant e o irmão Márcio Borges chamada Para Lennon e McCartney, que entrou no disco Milton e outra faixa que surgiu chamava-se Clube da Esquina, feita pelos irmãos Márcio e Lô mais o próprio Bituca que acabou entrando no disco chamado somente Milton, lançado na época e originaria um futuro álbum. Esse futuro álbum, foi uma ambição máxima, pois Milton chegou ao diretor de elenco da Odeon e anunciou que gravaria um disco duplo e este, que era Adail Lessa acabou aprovando a ideia "Um disco com princípio, meio e fim, que não seja só um apanhado de canções. Um disco conceitual", completara Ronaldo Bastos, que seria o produtor responsável do disco.
A mineirada no ano de 1971, em Diamantina: Lô Borges (de rosa), Fernando Brant,
o ex-presidente Juscelino Kubistchek (de terno) e Milton Nascimento (ao violão)
Até aquele ano de 1971, ninguém havia pensado em mente por aqui no Brasil sobre a possibilidade de lançar um disco duplo, o que poderia até ser inédito, pois já era comum se saber da existência de Blonde On Blonde, lançado em 1966 por Bob Dylan, o Álbum Branco dos The Beatles de 1968, mesmo ano que o Cream botou na praça Wheels Of Fire e dois anos depois, o gênio do jazz Miles Davis lançava Bitches Brew, o disco que deu cara nova ao gênero naquela época. Milton anunciou aos diretores da gravadora que iria dividir o tal disco duplo com o jovem Lô Borges, de apenas 19 anos na época e que só veio ao Rio após ter sido dispensado do serviço militar e ter sido chamado de "comunistinha" pelo capitão encarregado pelo alistamento no Exército e junto deles, um time de músicos mineiros, como Toninho Horta na guitarra, Nelson Ângelo, Novelli, Beto Guedes mais Wagner Tiso, Robertinho Silva e Luiz Alves servindo como base musical principal. O nome do disco e da música surgiu devido às reuniões musicais na esquina das ruas Paraisópolis e Divinópolis na capital mineira, dona Maricota Borges sempre dizia "ah, mas vão se juntar o Clube da Esquina" tendo os irmãos Lô e Yé Borges e amigos. As gravações nos estúdios da Odeon tiveram a presença de Eumir Deodato e Paulo Moura para ajudarem nos arranjos e regência junto do maestro Tiso, que também não fazia só a sua parte no piano e órgão e correram durante todo o ano de 1971, e volta-e-meia descansavam ou numa praia do Rio ou em Diamantina, aonde o correspondente mineiro da revista O Cruzeiro e também letrista Fernando Brant cobria uma matéria daqueles músicos mineiros e tendo a presença de Juscelino Kubistchek, o lendário presidente bossa nova da década de 1950 até o ano de 1960, e o homem que fez de Brasília a nova Capital Federal, com quem a mineirada trocou ideia e fez um som com o pessoal e de onde surgiu várias canções de Clube da Esquina. Depois, era só colocar o disco pra lançar em abril daquele ano de 1972, botando de vez os nomes de Milton Nascimento e Lô Borges na história da Música Popular Brasileira. Trazendo uma inovação muiro diferente, com uma fusão de ritmos que iam da bossa nova ao jazz e do rock ao samba, agradando a figurões como Caetano Veloso, a própria Elis Regina e o saxofonista Wayne Shorter, da banda Weather Report com quem Milton viria a dividir um disco dois anos depois chamado Native Dancer, gravado nos EUA.
Da esquerda para a direita: Milton Nascimento, Lô Borges e Beto Guedes em 1971
trabalhando nas ideias para a gravação de "Clube da Esquina".
A faixa que abre o disco é Tudo O Que Podia Ser, em que Milton começa a cantar "Com sol e chuva, você sonhava que iria ser melhor depois, você queria ser o grande herói das estradas, tudo o que você queria ser", além de um solo de violão marcante e uma levada marcante; na sequência temos Cais, também na voz de Bituca e que faz bonito até com uma coisa mais calma, com um violão, baixo e um piano complementando um belo arranjo; na sequência conhecemos a voz de Lô por meio de O Trem Azul, com uma pegada viajante, tanto em termos de base sonora quanto de versos sobre "coisas que a gente se esquece de dizer..." e na pegada psicodélica da MPB; na sequência a primeira parte de Saídas e Bandeiras na voz dos dois, que serve como uma prévia do que segue mais à frente; de cara, acordes de violão soando bucolicamente nos trazem de cara a canção Nuvem Cigana, com Bituca cantando e tendo uma belíssima orquestração complementando mais a base sonora; e depois, surge um samba chamado Cravo e Canela, com referências bem ao samba - logo uma pegada que viria a antecipar até mesmo a axé music - mas sem perder o ritmo como sempre; e também há o lado hispânico do disco, a música Dos Cruces, composta por Carmelo Larrea e que ganha potência em certos momentos da canção, tendo uma ligação muito forte entre a música hispânica e a voz de Milton; e logo na introdução de piano da faixa seguinte, é quando Lô segue ganhando voz e vez em Um Girassol da Cor do Seu Cabelo, uma das melhores canções do álbum; já a letra de San Vicente, o próprio Milton une aqui a sua poesia com a sonoridade latina em uma canção maravilhosa e que nos toca ao mesmo tempo; em menos de trinta segundos, Lô acompanhado de Tiso, Beto Guedes, Milton, Gonzaguinha, Toninho Horta e Robertinho Silva, entoa o verso "Poeira da noite/A festa, da noite/Guerreira, estrela da morte/Festa negra, amor/Mas é tarde" que faz parte de Estrelas, antecipando o que encerraria a primeira parte do disco; já a canção Clube da Esquina Nº 2, que conta com a letra de Milton e dos irmãos Márcio e Lô, só apareceu anos mais tarde e aqui só há a parte instrumental e a voz de Milton improvisando em cima, nem por isso o próprio deixou de dar voz a mais uma canção do disco; a faixa que abre o disco dois é Paisagem da Janela, na voz de Lô e trazendo um quê de Beatles na canção, até pelo fato de tanto ele quanto Beto Guedes já terem feito uma banda de cover dos Beatles antes do Clube da Esquina chamada The Beavers durante anos 60; uma música que não faz parte do repertório autoral do pessoal do Clube é um samba de Monsueto Menezes e Ayrton Amorim chamado Me Deixe em Paz, na qual Milton canta ao lado de Alaíde Costa resultando-se numa bela interpretação já sendo algo mais Brasil do repertório do álbum; já Os Povos acabou entrando no disco e soando emotiva na voz de Milton e com uma letra maravilhosa por demais, feita para a juventude consciente da Venezuela na época e com uma linha poética que soava histórica; a segunda parte de Saídas e Bandeiras é também o esquema de anteciparo que teremos pela frente no disco, tudo normal como sempre; um piano é o principal instrumento de base para Um Gosto de Sol, com uma suavidade nos arranjos e também sendo um dos melhores momentos do álbum, pra dizer a verdade; já na sequência temos Pelo Amor de Deus, uma canção feita por Bituca e Brant já nos trazem um pouquinho mais da poesia de ambos pra engrossar mais o caldo deste repertório do álbum; outra canção sem letra se chama Lília, e só com os vocais de Milton já se entende bem melhor o que pode ser a música que leva o nome de sua mãe adotiva que o criou e que veio a falecer em fim dos anos 90; já de cara, surge novamente Lô Borges que ainda consegue colocar o seu melhor no álbum e Trem de Doido é prova disto, uma canção de pegada bem beatle recheada de versos maravilhosos e já partindo mais pro rock mesmo; de sonoridade e poesia folk, a canção Nada Será Como Antes traz um espírito poético-musical totalmente pra cima e tendo Beto Guedes dividindo os vocais ao lado de Milton, mostrando mesmo ser uma grande canção; o final fica mesmo é por conta de Ao Que Vai Nascer, que até um certo momento é bem suave, um arranjo bem bucólico mas que só ganha ares quando vai terminando a música e fechando definitivamente o álbum com chave de ouro.
Os dois protagonistas, 40 anos depois, em uma turnê de meio-século
de carreira de Milton Nascimento (à direita, de xadrez e óculos)
O disco acabou sendo uma grande influência para a MPB e sendo um dos tantos discos que marcaram a década de 70, junto de Acabou Chorare (Novos Baianos), Krig-ha, Bandolo! (Raul Seixas), o disco homônimo de estreia do Secos & Molhados, Expresso 2222 e os discos da trilogia Re (Gilberto Gil) e que acabou ganhando uma continuação mais de cinco anos depois, com o mesmo pessoal, porém creditado apenas o nome de Milton e tendo convidados que vão de Elis Regina e Chico Buarque a Simone e os uruguaios do Grupo Tacuabé se juntando a "mineirada". A capa é uma foto meio estranha, pois muitos achavam que os garotos em uma beira da estrada na cidade de Friburgo, no Rio de Janeiro eram mesmo Milton e Lô quando pequenos, mas 40 anos depois do disco foi feita uma investigação e a equipe do jornal O Estado de Minas descobriu que o garoto moreno se chamava Cacau e o menino descalço se chamava Tonho, eles já haviam se reconhecido na capa mas nunca fizeram alarde ou deram explicações à imprensa, são considerados quase "sócios anônimos" do Clube. Vale lembrar que, por questões de meses, não pôde ser o primeiro disco duplo feito na MPB pois Gal Costa havia lançado Fa-Tal: Gal A Todo Vapor, duplo e ao vivo naquela época, mas veio a ser um disco muito cultuado pela geração de hoje, estando na 7ª posição dos 100 Maiores Álbuns de Música Brasileira da revista Rolling Stone e na lista dos 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer que Robert Dimery organizou, e 40 anos depois do lançamento, Lô e Wagner Tiso participaram da turnê de 5 décadas de carreira de Milton Nascimento tocando o álbum na íntegra. A linguagem sonora de Minas, com um quê de Beatles, jazz, música latina e até samba, ganhava enfim, voz e vez ao redor do mundo graças ao disco que um jovem de 17 anos (Lô) e um já aclamado nome da MPB (Milton) conceberam e deixaram o legado mais vivo com o passar dos tempos.
Set do disco:
DISCO 1
1 - Tudo O Que Você Podia Ser (Lô Borges/Márcio Borges) - Milton Nascimento
2 - Cais (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos) - Milton Nascimento
3 - O Trem Azul (Lô Borges/Ronaldo Bastos) - Lô Borges
4 - Saídas e Bandeiras Nº 1 (Milton Nascimento/Fernando Brant) - Milton Nascimento e Beto Guedes
5 - Nuvem Cigana (Lô Borges/Ronaldo Bastos) - Milton Nascimento
6 - Cravo e Canela (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos) - Milton Nascimento
7 - Dos Cruces (Carmelo Larrea) - Milton Nascimento
8 - Um Girassol da Cor do Seu Cabelo (Lô Borges/Márcio Borges) - Lô Borges
9 - San Vicente  (Milton Nascimento/Fernando Brant) - Milton Nascimento
10 - Estrelas (Lô Borges/Márcio Borges) - Lô Borges e coro
11 - Clube da Esquina Nº 2* (Lô Borges/Márcio Borges/Milton Nascimento) - instrumental
DISCO 2
12 - Paisagem da Janela (Lô Borges/Fernando Brant) - Lô Borges
13 - Me Deixa em Paz (Monsueto Menezes/Ayrton Amorim) - Milton Nascimento e Alaíde Costa
14 - Os Povos (Milton Nascimento/Márcio Borges) - Milton Nascimento 
15 - Saídas e Bandeiras Nº 2 (Milton Nascimento/Fernando Brant) - Milton Nascimento e Beto Guedes
16 - Um Gosto de Sol (Milton Nascimento/Fernando Brant) - Milton Nascimento
17 - Pelo Amor de Deus (Milton Nascimento/Fernando Brant) - Milton Nascimento
18 - Lília (Milton Nascimento) - instrumental 
19 - Trem de Doido (Lô Borges/Márcio Borges) - Lô Borges
20 - Nada Será Como Antes (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos) - Milton Nascimento e Beto Guedes
21 - Ao Que Vai Nascer (Milton Nascimento/Fernando Brant) - Milton Nascimento



Comentários

  1. Coisa mais linda de singela que sempre foi esse Beto Guedes!

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