ESPECIAL: A Trilogia "Re" de Gilberto Gil

Nos anos 70, o baiano Gilberto Gil se demonstrava um grande cantor e grande compositor, com 10 anos de carreira, cinco discos gravados e todos na Philips movidos a grandes sucessos como "Domingo no Parque", "Frevo Rasgado", "Pega A Voga Cabeludo", "Aquele Abraço", "Back in Bahia", "Expresso 2222" dentre outros. Mas, em 1975 ele começou a realizar um grande trabalho e que veio a ser um dos seus principais legados na Música Popular Brasileira e que teve origens ainda num álbum duplo jamais lançado naquela época e que só em 1998 a PolyGram (hoje Universal Music) colocou esse material à luz do sol, intitulado Cidade do Salvador com as faixas que antes lançadas como single "Eu Só Quero Um Xodó", "Meio de Campo" e "Maracatu Atômico" dentre outros. Daqueles registros feitos nos anos de 1973 e 1974, um forró ainda com piano e bateria chamada "Essa É Para Tocar no Rádio" e que só com um take 2 veio a ganhar o acordeom de Dominguinhos brevemente, a faixa ainda teve uma versão longa no álbum Gil & Jorge: Ogum Xangô, de 1975, um álbum longo e duplo, o único da parceria. 
Após esse projeto-disco, que surgiu através de uma performance feita quando a Phonogram promoveu uma festa com a presença de Robert Stigwood (presidente da gravadora RSO) e do guitarrista Eric Clapton, que acabou aproveitando bem a temporada carioca naqueles anos, mas não fez nenhum show na época, Gil iniciou as atividades de mais um álbum de sua carreira, em meio aos seus dez anos de carreira. A intenção desse disco também era mostrar que ainda tinha os seus dois pés no Nordeste e no sertão, assim como foi no anterior Expresso 2222 (1972) aonde tinha como intenção aproximar a sua música um pouco ao forró de Luiz Gonzaga (1912-1989) e pegando o mesmo embalo do pessoal que surgia naquela época, como Alceu Valença, Geraldo Azevedo e Zé Ramalho e contou com um super time apoiando ele, os irmãos Moacyr e Perinho Albuquerque - que já eram amigos de Gil e Caetano desde 1964, ainda quando faziam parte do espetáculo "Nós, Por Exemplo" junto dos gurus tropicalistas mais Tom Zé e Gal Costa -, tendo também Chiquinho Azevedo na bateria mais Rubão Sabino no baixo e também Dominguinhos, de quem Gil já interpretou "Eu Só Quero Um Xodó" e que de uma levada instrumental chamada "Forró do Dominguinhos", acabou ganhando uma letra chamada "Lamento Sertanejo" e a partir do lançamento do disco, mais uma obra de Gil se tornou eternizante, contando com a faixa-título, seguida das canções "Tenho Sede" da dupla Dominguinhos & Anastácia, "Pai e Mãe", "Jeca Total", além de "Essa É Pra Tocar no Rádio" e "Lamento Sertanejo (Forró do Dominguinhos)", gerando uma grande temporada de shows que teve uma breve parada em 1976, quando Gil se uniu a Gal, Bethânia e Caetano para o projeto-show Doces Bárbaros e que ainda lhe custou uma prisão por porte de maconha em agosto do mesmo ano.
Em 1979, à época do lançamento de seu disco "Realce"
Após os shows com os Doces Bárbaros, Gil acaba juntando mais uma série de músicas novas para a continuação de "Refazenda", mas antes uma paradinha em Lagos, na Nigéria no fim de janeiro de 1977 por onde participou como atração internacional de um festival de cultura negra mundial e ali Gil se encontrou com Fela Kuti e para a sonoridade de seu próximo trabalho ele foi do movimento Black Rio da época, que estava expandindo mais o funk americano no cenário musical brasileiro ao som do próprio Fela, passando pela linguagem da música afro e dos blocos afro na Bahia, e assim veio "Refavela", recheado de muita influência de música negra, note-se muito isso nas canções "Babala Apalá", "Nova Era" e que teve a sua tournée interrompida após a Phonogram não ter atendido o pedido de um ônibus para atender as vontades de Gil poder seguir em excursão, e aí foi quando se juntou a Rita Lee para uma tournée chamada Refestança, que gerou um disco lançado em fins daquele ano. Mas o Refestança, por ser um projeto paralelo a sua carreira, não entra nessa epopeia que veio a ser "Re", e no ano seguinte foi quando Gil acabou encerrando seus dez anos de contrato com a Phonogram/Philips, mas para isso, acabou encerrando o contrato lançando um disco chamado Antologia do Samba-Choro, ao lado de Germano Mathias, um de seus ídolos do samba e foi notificado que cinco anos depois do fim de seu contrato, poderia levar os discos da constância na época daquele contrato, e foi só assinar com a Warner para esperar uns anos e levar à sua nova casa boa parte do acervo discográfico.
Gil partiu para a cidade suíça Montreux aonde gravou um álbum ao vivo no tradicional Montreux Jazz Festival, que era rotina de alguns artistas contratados da casa então e tendo a presença de alguns músicos do conjunto A Cor do Som e com uma música inédita chamada "Chororô" e de lá foi para os EUA planejar um disco internacional chamado "Nightingale" com a produção luxuosa de Sergio Mendes, mas não foi lançado no Brasil. Nessa intenção de projetar um disco com uma sonoridade internacional, Gil vai para Los Angeles e com o produtor Marco Mazzola, que tinha muitos contatos com músicos e estúdios de lá, acabam partindo para o Westlake Studios, aonde veio a ser gravado mais tarde o clássico de Michael Jackson, Thriller (1982), e com a pegada pop da época, recheadas de influências da disco music e do funk, "Realce", tendo a presença dos músicos do Earth Wind & Fire e do guitarrista Steve Lukather, do Toto. Do Westlake Studios saiu Realce, um disco totalmente a cara daquela época, movido a sucessos como "Toda Menina Baiana", "Superhomem - A Canção" e releituras de "Tradição", feita originalmente em 1973 e "Sarará Miolo" lançada em 1977 em um disco de duetos de Nara Leão chamado Os Meus Amigos São Um Barato, além de uma interpretação totalmente funky para "Marina" de Dorival Caymmi, além de ter adaptado para o português o sucesso "No Woman No Cry" de Bob Marley. Com um imenso sucesso e após uma temporada de shows em 1980, acaba dando uma pausa até que voltasse para apresentar-se ao lado do reggaeman jamaicano Jimmy Cliff pelo Brasil e gerando um especial da Globo. Os três "Re"s de Gil são um exemplo de que sua música pode passar por várias fases, sejam do black ao forró e da bossa ao reggae sem ter que deixar de lado um pouco das suas raízes.

Refazenda (Philips/Phonogram, 1975)*
O disco que inicia a trilogia marca também o início de uma fase de descobertas e redescobertas musicais na carreira de Gil, que estava mais afim de trabalhar com músicas que tivessem um pouco de referências ao som do Nordeste e foi com este disco também que serviu como base para sua aproximação de músicos como o acordeonista Dominguinhos, autor das canções "Tenho Sede" feita em parceria com Anastácia, e "Lamento Sertanejo (Forró do Dominguinhos)", o famoso relato sobre a situação dos nordestinos e que acabou sendo um grande sucesso tanto por Gil quanto pelo próprio acordeonista em 1979, no disco "Apôs Tá Certo". Além das faixas com Dominguinhos, que gravou acordeom em quase todas as faixas do disco, como "Refazenda", o chorinho "Pai E Mãe", "Essa É Pra Tocar no Rádio" (que foi gravada em 1973 e só teve mesmo o instrumento acrescentado em um take). Teve parceria com Jorge Mautner em "O Rouxinol", além de "Jeca Total", "Ê Povo Ê", a curta "Meditação" que são outras faixas essenciais deste disco, além de uma breve citação do sucesso de Celly Campello "Banho de Lua", na canção "Retiros Espirituais". O disco é também um dos mais valorizados de sua carreira, tendo algumas das 11 canções interpretadas por vários artistas ao longo dos anos e que segue sendo uma verdadeira obra-prima de sua carreira musical.


Refavela* (Philips/Phonogram, 1977)
O disco que mostrava um Gil mais pro black do que simplesmente pra MPB em geral e pro forró já mostrava um vestígio muito mais além do que já era acostumado a ouvir nos seus discos anteriores já da fase pós-tropicalista. Após uma viagem para a cidade de Lagos, na Nigéria aonde se encontrou com Fela Kuti em um festival mundial de cultura negra e dali buscou um pouco de inspiração em seu próximo disco, e que veio a ser mais um disco que começasse com "Re", só que desta vez, o disco se chamaria Refavela. Com a faixa-título já nos introduzindo um pouco ao que seria o disco adiante, com fortes influências de sons africanos, também é a primeira vez que Gil fala de blocos afro como o "Ilê Ayê", de autoria de Paulinho Camafeu, "Era Nova" feita na época da prisão por porte de maconha na cidade de Florianópolis em meio a tournée dos Doces Bárbaros (1976), "Babá Alapalá", "Aqui e Agora", "Balafon", além de ter feito com Moacyr Albuquerque e Perinho Santana "No Norte da Saudade" e ainda aproveitou reverenciar outro bloco afro do qual até hoje participa "Patuscada de Gandhi (Afoxé Filhos de Gandhi)" que são os Filhos de Gandhi. Ainda sobrou tempo para uma releitura da música "Samba do Avião" de Tom Jobim, na qual a pegada soa mais balançada, e também num estilo gilberto-gílico de reinterpretações, vamos dizer assim também a canção "Sandra", feita para sua esposa com quem foi casado até o início de 1980. O disco, por motivos de falta de apoio da gravadora para divulgar e por não aceitarem de Gil a ideia de um ônibus monobloco, acabou cancelando de vez e partindo para uma breve temporada de shows com Rita Lee (também presa por porte de maconha no mesmo ano que Gil), que se resultaram no disco ao vivo Refestança, mas que não faz parte da saga "Re" por não ser somente o cantor baiano mas sim um projeto paralelo.


Realce (Elektra/Warner Music, 1979)
Em 1978, Gil decide romper seu contrato com a Phonogram, do qual seu antigo presidente André Midani já havia saído em fins de 1976 para instalar a Warner Bros. Music e suas filiais Elektra e Atlantic em princípios de 1977. Mas antes de sair da gravadora, Gil acabou gravando um disco chamado Antologia do Samba-Choro, jamais lançado em CD e tendo também um de seus ídolos do samba, Germano Mathias, sendo que alguns dos registros deste segundo são de fins da década de 1950 e início dos anos 1960, e após esse disco, enfim, Gil pôde migrar para a nova casa de Midani, aonde já estavam Raul Seixas e Belchior (Elis Regina ainda tinha que cumprir seu contrato por mais um disco na época, e no ano seguinte já estava na Warner) e a sua estreia na gravadora foi em um disco ao vivo gravado no Montreux Jazz Festival em 14 de julho, e um mês depois era lançado o seu disco ao vivo. Após o disco de Montreux, Gil decidiu trabalhar em um material para o público estrangeiro, e este disco seria Nightingale, com a produção de Sergio Mendes e tendo imensa divulgação, apesar de não ter sido lançado no Brasil na época. Com base nesse trabalho, Gil decidiu fazer um disco com a onda disco e com o produtor Marco Mazzola, partem para Los Angeles conceberem o disco Realce, nos mesmos estúdios Westlake aonde Michael Jackson e Quincy Jones elaborariam mais tarde o clássico Thriller (1982). Tendo o suporte de Jerry Hey, tecladista do Earth, Wind and Fire e alguns músicos desta banda ajudando Gil, teve também algumas canções já concebidas antes de trabalhar em solo americano, como "Superhomem - A Canção", feita após ouvir relatos de Caetano Veloso sobre o filme de 1978 com Christopher Reeve, "Toda Menina Baiana" (um dos maiores sucessos deste disco e da sua carreira) feita para sua filha Nara, que entrava na adolescência, "Não Chores Mais", uma versão de "No Woman No Cry" que antes feita para Ricardo Graça Mello gravar na época e que foi feita ainda no Brasil com Liminha no baixo e Sérgio Dias na guitarra (logo 2/5 da antiga formação dos Mutantes) além do arranjo de Lincoln Olivetti. Além de "Logunedé", "Sarará Miolo" que esteve no disco Os Meus Amigos São Um Barato (1977) de Nara Leão, aonde também divide os vocais. Releituras não faltaram nesse disco, como a de "Tradição", feita em 1973 para o tal álbum duplo que anos depois veio a ser Cidade do Salvador (1998), "Rebento" que foi gravada por Elis Regina em 1977 e que chegou a ser o principal título do disco, além de uma versão funky de "Marina" do compositor Dorival Caymmi. A faixa-título merece muito destaque mesmo, não só pelo super arranjo de qualidade e pela forte pegada de pop americano, mas também pela introdução com solo de guitarra executada pelo Steve Lukather, do Toto e que virou um tremendo sucesso mesmo. O disco foi bem nas paradas, levou Gil a fazer shows inclusive como convidado do EWF quando estiveram no Brasil em 1980 e por pouco ele chega a largar a música devido a uma crise pessoal. Mas nada que abalesse mesmo o mundo pessoal e artístico desse grande cantor e compositor baiano, que tem uma carreira cheia de Realces.



NOTAS DO BLOG (via site do artista).
*Pelo que rezava no último contrato assinado com a Phonogram (atual Universal Music) nos anos 70, quando o artista se desligasse ele poderia resgatar – após cinco anos – os discos gravados na constância daquele contrato. Em assim sendo, em 1983 – após ter saído da antiga gravadora em 1978 – Gil recuperou, dentre outros produtos, os masters dos LPs Refazenda e Refavela e do compacto Sítio do Pica-Pau-Amarelo, que uma vez vendidos à Warner passaram a constar do acervo e do catálogo desta companhia.

Sobre o Realce: na reedição em CD do "Realce" especialmente para a caixa Palco as gravações de Gil para o LP "Antologia do Samba-Choro" – gravada para a Philips no verão de 1978. "Eu tinha que fazer um disco para pagar o contrato com a Phonogram e poder assinar com a WEA, e eu gostava muito do Germano Mathias desde jovem. Ele era uma espécie de Zeca Pagodinho, pois juntava as diversas vertentes do samba e transitava pelo samba-de-breque. Ele não era da comunidade do samba, corria por fora, e isso me agradava. As letras daqueles sambas hoje podem soar politicamente incorretas, mas são anteriores à contestação que começou a rolar com o movimento black – que àquela altura ainda não havia por aqui. As músicas também revelam um machismo típico do malandro, que é sempre democrático porém conservador com relação à mulher e à amante. Elas têm uma jocosidade típica de Monsueto e Wilson Batista", comenta hoje Gil.

Fonte: http://www.gilbertogil.com.br
Encartes da caixa "Palco", Marcelo Fróes, Warner Music, 2002

Comentários

  1. samaram.santos93@gmail.com24 de outubro de 2017 às 20:30

    Parabéns pelo blog! tô me deliciando aqui <3

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    1. Muito obrigado por curtir meu trabalho, continue atenta aos posts novos que saem no blog. ABS, Malcom!

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