Um disco indispensável: Vivendo e Não Aprendendo - Ira! (WEA Music, 1986)

Se você tem mais de 30, 35 ou 40 e foi jovem nos anos 80, este post irá te ajudar em muita coisa sem sombra de dúvidas, pois no florescer do rock brasileiro havia bandas que estavam em voga e batendo ponto em tudo quanto era programa de televisão e estampavam revistas e jornais pelo país afora. A cena roqueira de São Paulo tinha como seus representantes a galera mais underground e punk rock, como os Inocentes, os Ratos de Porão, Cólera, Olho Seco, Anarkólatras e M-19, Fogo Cruzado, Lixomania e Suburbanos, depois tinha a galera do Ultraje a Rigor, que fazia canções no estilo mais bobeirol com uma dosagem de humor ácido e sonoridade que lembrasse o rock dos anos 60, o pessoal do Magazine que também tinha essa pegada de humor e cujo vocalista era um ruivo chamado Antônio Senefonte, vulgo Kid Vinil que segue sendo uma lenda viva do rock brasileiro e trabalhando em rádios espalhando a boa música, além de Cabine C, Akira S & As Garotas Que Erraram, Smack, Mercenárias e um bando de oito rapazes que faziam um som new-wave moderno com tons abrasileirados aí chamado Titãs que estavam cantando coisas como "Sonífera ilha, descansa meus olhos, sossega minha boca, me enche de luz.." e "Homem primata, capitalismo selvagem...", além de uma banda que tinha o estilo mais mod revival e fazia um som que cruzava com o rock alternativo, o pós-punk e uma pegada mais hardcore também e esta era o Ira!, que já havia causado furdúncio na mídia com o seu primeiro álbum chamado Mudança de Comportamento, que trazia uma série de canções que soavam como tudo o que um adolescente queria ouvir falar naqueles tempos. A banda já era mania nacional e precisavam ir mais além com suas músicas e essa proposta só aconteceria quando partiram em estúdio em maio de 1986 para lançar sua obra-prima da discografia, intitulada Vivendo e Não Aprendendo, lançada em 25 de agosto daquele mesmo ano, teve os trabalhos concebidos em solo carioca no estúdio Nas Nuvens, do produtor e baixista Liminha, aclamado no cenário da época, além de Pena Schmidt, o engenheiro de som e cabeça do Nas Nuvens, Victor Farias além de Paulo Junqueiro e a própria banda cuidou da produção do segundo disco. Mas, como nem tudo são flores para uma banda paulista que ainda estava com um disco só em voga, desavenças e brigas sempre acontecem em meio às gravações, a banda de Marcos "Nasi" Valadão (voz), Edgard Scandurra (guitarras e voz), Ricardo Gasparini (contrabaixo elétrico) e André Jung (bateria e percussão) sofrera um impasse com o produtor Liminha sobre a proposta de fazerem um som que soasse muito The Jam, uma das principais influências da banda, mas o produtor julgava a sonoridade como "desafinada" e depois voltariam a deixar tudo nas mãos de Pena Schmidt. O resultado seria algo que tivesse um grande impacto sonoro e tornando-se um dos álbuns mais influentes do rock brasileiro, e também o legado do Ira! no rock brasileiro e na MPB em especial.
Da esquerda para a direita: Gaspa, Jung, Scandurra e Nasi em 200 no
Memorial da América Latina à época da gravação do "MTV Ao Vivo"
(Divulgação/Deckdisc)
A faixa que abre o disco é um dos maiores sucessos da banda, e que tem uma pegada instrumental totalmente original e agradável, essa é Envelheço na Cidade, com o famoso "feliz aniversário" sendo utilizado no refrão e em trechos da música, e que se tornou de cara um clássico dos anos 80, do rock brasileiro e por que não da MPB também? Na sequência temos Casa de Papel, que assim como boa parte do disco, tem a assinatura de Edgard Scandurra, que traz um ar de existencialismo nos versos da canção, e que dá uma sensação de que traz todo o peso e a agressividade sonora do punk rock dos anos 70 e aqui a voz de Nasi mostra a potência pra entoar os versos desta canção; outro tema aqui essencial do disco para destacar é Dias de Luta, cheias de dúvidas "Só depois de muito tempo comecei a entender como será o meu futuro, como será o seu ?" e com uma pegada bem Smiths pela sonoridade, podemos ver que a banda não faz feio quando se trata da sonoridade da música; e se acha que a coisa parou por aqui, é porque você ainda não ouviu Tanto Quanto Eu, que parece ser um punk mais aceleradaço, e com uma guitarra mais crua e chapante e com mais de dois minutos dá pro gasto aqui no repertório; em seguida, com a faixa seguinte de nome Vitrine Viva, o baixo de Gaspa aqui faz uma boa forma de nos guiar ao rumo da canção, e com uma percussão que dá um gosto a mais que não deixa passar batido aqui; e, por diante, uma faixa em que vão deixando todo o peso de lado pra fazer algo mais suave e na faixa Flores em Você (que deve ter sido inspirada em Eleanor Rigby de uma banda aí chamada Beatles que todo mundo conhece), o duo de violinistas Bernardo e Michel Bessler e Jacques Morelembaum no violoncelo complementam o violão de Scandurra na canção mais linda do disco, carregada de tons bucólicos, que teve um episódio por trás da gravação desta música: Nasi foi botar a voz e após isto, Liminha perguntou como era botar a voz acompanhado de um conjunto afinado - a partir daí houve o rompimento da banda com o produtor de vez; e depois a banda retoma a todo gás na faixa Quinze Anos (Vivendo e Não Aprendendo), um lamento sobre alguém que retoma à adolescência em suas memórias e assume "Eis um home que se apanha chorando" e com um riff de guitarra que não decepciona a gente aqui; mais adiante, nós também temos Scandurra dando voz a uma de suas músicas feita para o disco, Nas Ruas, que faz a cruzada sonora Smiths-Ramones-Jam e não vemos aqui nenhum tropeço ao longo da música; e para completar o disco, uma performance ao vivo gravada no dia 3 de maio de 1986 na Broadway, casa de espetáculos paulista na qual a banda recria as faixas do primeiro compacto, lançado em 1984, estas faixas são Gritos na Multidão, e na sequência o disco fecha com uma crítica  às pessoas que apoiavam o governo militar e virou um quase-hino da Terra da Garoa, esta é Pobre Paulista, que acaba sendo um tapa na cara da elite governamental e segue a ser o clamor de uma juventude de São Paulo governada por gente que eles consideram de verdade, mas enquanto isso, esse segue sendo o sonho que um dia possa virar realidade.
Originalmente, o disco foi um dos primeiros a serem lançados pela WEA no formato de CD lá pelo finalzinho dos anos 80, mas com o passar dos anos, o processo de remasterização ficou mais sofistifcado e com recursos tecnológicos que podiam dar aos fãs um som totalmente de qualidade, não foi nem preciso esperar para que comprassem novas edições trazendo para o formato a arte original do vinil numa adaptação gráfica melhorada. O disco tivera sua segunda reedição em 2000 coordenada por Charles Gavin, que já como baterista dos Titãs e que fez parte da banda nos primórdios deu uma melhorada aqui no som e ajudou a colocar material inédito, como por exemplo uma faixa inédita intitulada Não Pague Pra Ver, que já foi apresentado em shows e presente só nesta edição bônus para CD, além das demos de faixas como Flores em Você - com a pegada mais rock antes de converter-se para uma coisa meio folk com orquestra, também Pobre Paulista que chega a lembrar a versão do compacto de 84, além de Nasci em 62, música composta nos primórdios da banda e reapresentada no LP de 1990 intitulada Clandestino e fecha com a demo de Tanto Quanto Eu a série de coisas inéditas da edição bônus, que reapareceram em um box de 30 anos lançado pela Warner Music em 2015 para a alegria de muitos fãs. O disco traz como capa uma série de pinturas feitas por Dora Longo Bahia, Ana Ciça, Paulo Monteiro e Camila Trajber retrataram artisticamente Scandurra, Jung, Gaspa e Nasi da forma como imaginam e na arte do disco há uma série de fotos da banda ao decorrer do período em que estavam fazendo o disco. Esse disco, já figura em listas importantes como a da revista Zero em 2002 estando entre os 20 melhores discos de rock brasileiro e cinco anos depois, a Rolling Stone aclamou a este disco como o 94º lugar da lista dos 100 melhores álbuns da música popular brasileira, e passados sete anos da separação da banda, Nasi e Scandurra voltaram com o Ira! a partir de fins do ano de 2013, sem Jung e Gaspa com uma turnê grandiosa e adivinhem qual era o repertório? Os discos da banda Mudança de Comportamento, Vivendo e Não Aprendendo e também o clássico Psicoacústica, de 1988, na íntegra e e unindo mais uma vez a multidão em seus shows como no verso de Envelheço na Cidade "Juventude se abraça, se une pra esquecer..." e os velhos fãs mataram a saudade de ver uma banda como o Ira! trazendo seu rock alternativo para várias massas que curtem música de qualidade sem sombra de dúvidas.
Set do disco:
1 - Envelheço na Cidade (Edgard Scandurra)
2 - Casa de Papel (Edgard Scandurra)
3 - Dias de Luta (Edgard Scandurra)
4 - Tanto Quanto Eu (Edgard Scandurra/Ricardo Gasparini)
5 - Vitrine Viva (Edgard Scandurra/Luís Arnaldo Braga)
6 - Flores em Você (Edgard Scandurra)
7 - Quinze Anos (Vivendo e Não Aprendendo) (Edgard Scandurra/Ricardo Gasparini)
8 - Nas Ruas (Edgard Scandurra)
9 - Gritos na Multidão (Edgard Scandurra) - gravado ao vivo na Broadway, São Paulo em 3 de maio de 1986
10 - Pobre Paulista (Edgard Scandurra) - gravado ao vivo na Broadway, São Paulo em 3 de maio de 1986
FAIXAS BÔNUS DA EDIÇÃO REMASTERIZADA (2000 E 2015):
11 - Não Pague Pra Ver (Edgard Scandurra) - faixa inédita, demo
12 - Flores em Você (Edgard Scandurra) - demo
13 - Pobre Paulista (Edgard Scandurra) - demo
14 - Nasci em 62 (Edgard Scandurra) - demo
15 - Tanto Quanto Eu (Edgard Scandurra/Ricardo Gasparini) - demo

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