Um disco indispensável: Disraeli Gears - Cream (Creation Records/ATCO/RSO/Polydor, 1967)

O conceito de supergrupo e também de power trio deve ter ganhado mais valor quando nos anos 60, três músicos de áreas distintas se juntaram e formaram uma das bandas que conseguiram protagonizar um dos momentos mais áureos do rock n' roll, esse power trio se chamava Cream e tinha uma potência musical enorme, surgido em 1966 e mesmo ter durado dois anos, fizeram algo impactante e grandioso que ficou pra sempre na história da música em quatro álbuns de estúdio e dois álbuns ao vivo lançados após a separação em 1968. Com o lendário e consagrado Eric Clapton na guitarra, o "Deus" teve a companhia de Jack Bruce no baixo e Ginger Baker na bateria e estrearam no Windsor Jazz & Blues Festival, mas antes disso Bruce e Clapton se cruzaram na época dos Bluesbreakers de John Mayall a partir desse encontro selou-se uma parceria. Com o baterista, o encontro de Eric foi totalmente diferente, ainda quando o próprio tocava era líder da Graham Bond Organisation e convidou o então Bluesbreaker e ex-Yadbirds, que ainda não era conhecido nos EUA antes de sair o single For Your Love, que adentrou o top 10 norte-americano, mas na Inglaterra era muito conhecido. E de uma conversa no carro de Ginger, que queria deixar o GBO, veio a ideia de formarem uma banda juntos e quase bateu o carro quando soube que aceitaria que Jack Bruce seria o vocalista da banda, o que o "mão lenta" não sabia é que ambos tinham muitas desavenças na época da GBO, e apesar de serem músicos de jazz respeitados, as volatilidades mostravam os extremos entre Baker e Bruce dentro e fora dos palcos, como troca de porrada dentro dos shows e sabotagens nos instrumentos um do outro. Após alguns shows, a banda acabaria lançando em dezembro seu primeiro LP intitulado Fresh Cream, onde mostrava o verdadeiro legado da banda: um rock and roll doce e ácido, além do elétrico, viajante e que desse uma sensação mais diferente e tinham como seu empresário o cabeça Robert Stigwood, que foi um dos mais importantes figurões do showbizz e responsável por promover a onda disco através do filme Os Embalos de Sábado à Noite (1977) além de ter criado a gravadora Reaction, da qual Cream fazia parte e que só teve poucos discos lançados e durado pouco. Stigwood, que faleceu em janeiro, abriu um novo selo desta vez com o pouco acervo da Reaction, agora como RSO (Robert Stigwood Organisation) que durou 10 anos e tendo o catálogo do Cream relançado após a separação. Após o fechamento em novembro de 1983, todo o acervo partira para a Polydor na qual permanece até os dias de hoje (com exceção de alguns artistas que decidiram colocar em outros selos musicais) e não se é difícil encontrar discos do Cream em edições tanto da Reaction quando da RSO no formato de vinil pelos sebos do mundo afora.
Clapton, Baker e Bruce em 1993 na época em que a banda se consagrara ao
Rock and Roll Hall of Fame e reunidos pela primeira vez em 25 anos.
A banda partira em turnê rumo aos EUA em março do ano seguinte após o sucesso de I Feel Free e também de I'm So Glad, ambas faixas do álbum de estreia que estariam promovendo durante uma temporada de nove datas no RKO Theatre em New York e dessa passagem em maio de 1967 foi realizada em apenas 5 dias nos estúdios da Atlantic Records com a produção de Felix Pappalardi (1939-1983) que decidiu ajudar a banda no que seria a maior viagem sonora concebida por este trio, logo estamos nos referindo a sua magnus opum Disraeli Gears, lançada apenas menos de seis meses depois, no dia 2 de novembro  quando o florescer do movimento hippie ganhava mais forças mundo afora. Durante o período em que estavam gravando, Pappalardi sugeriu aos três que conseguissem sair da imagem de serem apenas improvisadores de blues para poderem fazer algo mais delirante que eles pudessem imaginar e nessas sessões o engenheiro Tom Dowd conseguiu ajudara captar a lisergia enérgica que eles estavam concebendo e colocando para o público. Além disto, tem uma das capas mais viajandonas e psicodélicas que vocês possa imaginar, feita por um artista plástico australiano chamado Martin Sharp, que vivia no mesmo apartamento que Clapton em Chelsea, e nela mostra a banda sob enfeites florais e na contracapa uma colagem de fotos clicadas por Robert Whitaker, que trabalhou por um tempo com os Beatles e fez a polêmica foto da "capa do açougueiro" do álbum Yesterday and Today (1966) além de ter feito cliques para as fotos do álbum Revolver brevemente. A capa seria reutilizada em 1997 para um box intitulado Those Were The Days, três décadas depois. Tempos depois, passados 37 anos de lançamento, a Universal decidiu colocar uma edição deluxe com registros inéditos, outtakes de faixas como Lawdy Mama gravada por Ahmet Ertegun, executivo da Atlantic que esteve presente durante as sessões e uma versão alternativa de Blue Condition além de demos, versão estéreo no primeiro disco e no segundo a versão mono e registros da BBC entre maio e outubro de 1967 a janeiro de 1968 e um encarte especial com textos e imagens inéditas da banda e várias informações sobre o álbum.
Contracapa original do LP (Reprodução via internet)
O disco, ele tem a intenção de te fazer viajar numa acidez sonora e o resultado não seria outro: onze canções, 33 minutos de pura psicodelia. A guitarra de Clapton consegue trazer esse espírito completamente fiel ao blues, cheia de fuzzes, riffs, solos que transbordam e nos deixam impressionados pelo peso sonoro, mas não podemos deixar de destacar aqui as batidas de Baker e o groove alucinante do baixo de Jack Bruce, responsáveis também pela excelente cozinha e dando a Disraeli Gears uma linguagem sonora própria e onde eles puderam explorar instrumentalmente as faixas. O disco abre com a faixa Strange Brew, marcado pelo solo bem pegajoso e a voz de Eric Clapton entoando os versos e o refrão num tom melódico e quase aveludado "Strange brew - killin' what's inside of you" (Tradução: poção estranha - matando o que tem de dentro em você) e as batidas de Ginger marcam o ritmo certo da canção; a faixa seguinte e o principal destaque do disco, Sunshine of Your Love têm uma das melhores introduções de guitarra e aqui o baixista e Clapton dividem os versos nos vocais e há uma citação instrumental à faixa Blue Moon, standard dos anos 1940 em forma de solo de guitarra totalmente bluesy e encerra com uma agressividade acelerada na música - não é à toa que elegeram pela VH1 como uma das 100 maiores canções do hard rock, sendo o favorito de muitos e trilha sonora dos lisérgicos e coloridos anos 60 que seguem sendo muito bem revividos nos dias de hoje; na sequência temos a filosófica World of Pain, com dúvidas sobre a existência da razão por um hoje, e aqui Bruce e Eric seguem fazendo a dobradinha de vocais da faixa anterior, e tem uma pegada bem pop e de bom agrado por sinal; já na faixa Dance The Night Away, há um momento em que a guitarra chega a imitar uma cítara, instrumento indiano, e a sequência rítmica marcada pela bateria de Baker - pioneiro por utilizar dois bumbos na bateria, como no caso de Keith Moon do The Who - não faz a gente se decepcionar ao longo da canção; e falando aqui no próprio baterista, aqui ele contribui como autor de Blue Condition, uma canção 100% blues com os pés nas raízes e que aqui dá a voz a sua própria música e até que se destaca muito e deixando que os dois consigam criar melodias incríveis na guitarra e no baixo, aqui também seguido de um piano tocado por Jack Bruce que lembra um pouco o jazz e deixa um toque a mais pra esta faixa; e como o artista da capa também tinha um lado compositor, aqui Martin Sharp faz a sua colaboração como letrista ao lado de Clapton com a clássica Tales of Brave Ulysses, que soa aqui como uma viagem pela mitologia grega em termos de poesia seguido de um mar de wah-wah na guitarra, sendo uma das mais viajantes canções deste disco, além de ser outro tema essencial do dsico é claro; mais em diante nós temos aqui outro destaque principal do disco, que é SWLABR, que são as iniciais de She Was Like a Bearbed Rainbow (Ela Foi Como um Arco-Íris Barbado), que ainda carrega um pouco do beat sessentista nessa música, e aqui Jack Bruce canta com primor uma das mais psicodélicas canções deste disco e que parece ter sido feita após uma viagem de ácido longa e que pode ser entendida nas entrelinhas o que ele quis cantar nessa música; a seguir, temos a faixa We're Going Wrong, bem mais de leve e que parece deixar um gosto amargo, embora os riffs estejam conseguindo ajudar muito no som e Bruce mantêm o tom aveludado nos vocais da música, mas que consegue crescer e ganhar um peso indescritível no arranjo da faixa; em seguida, Clapton ressucita de Arthur "Blind Joe" Reynolds (1904-1968) uma pérola intitulada Outside Woman Blues e adapta aqui para algo bem hard rock com tons lisérgicos e completamente vibrantes que tornam deste outra peça-chave especial e que dá pro gasto pelo jeito; já com outro blues moderno aqui, intitulada Take it Back, o baixista consegue pegar o espírito e coloca aqui um solo de gaita capaz de deixar mestres do blues e instrumentistas orgulhosos e deixa mais uma boa contribuição para o disco que não nos decepcionou de vez aqui; o encerramento do álbum fica por conta de Mother's Lament, que começa com a pergunta "Are we rolling?" (Estamos gravando?), e começam a cantar a história de uma mãe pobre que lavava o mais novo de seus 10 filhos, e o final acaba acontecendo que ele caiu no ralo e teria ido brincar com os anjos lá em cima, ou seja - faleceu (FALECEU?????!!!! só quem é do Sul e conhece o programa Pretinho Básico sabe o que eu estou querendo dizer) mas que complementa toda a lisergia sonora deste disco, que ficou por semanas no topo das paradas e está em um lugar importante das listas e você sabe qual é, não é mesmo? Sim! A famosa e repetida lista dos 500 maiores álbuns de todos os tempos da revista Rolling Stone, ocupando a 114ª posição, e em várias listas relacionadas ao hard rock, blues, música psicodélica e anos 60 que você menos imaginar, além de figurar nos 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer, outra lista essencial. Mesmo as brigas terem seguido na época em que o disco estava rolando e a separação definitiva, a banda já chegou a se reunir em 1993 para a consagração no Hall da Fama do Rock and Roll e também em 2005 para uma série de shows no Royal Albert Hall em Londres e que teria continuação em New York no Madison Square Garden, mas devido as velhas diferenças e algumas mudanças de bilheteria, ficou só no desejo mesmo assim. Clapton seguiu sua carreira e bem aclamada com discos considerados best-sellers da música, Baker também apesar de ter trabalhado com o próprio guitarrista como em 1969 no caso do Blind Faith, e Bruce, morto em decorrência de problemas no fígado no dia 25 de outubro de 2014, teve também trabalhos excelentes como o BBM, que era uma espécie de "Cream sem Eric Clapton" e tinha além de Ginger, o lendário Gary Moore mas que durou menos de um ano. Enfim, o legado do Cream no rock pode ser muito ouvido e bem entendido através de Disraeli Gears, um dos grandes discos da era psicodélica onde o barato era curtir na paz e no amor e viajar de vez num universo paralelo diferente deste que vivemos.
Set do disco:
1 - Strange Brew (Eric Clapton/Felix Pappalardi/Gail Collins)
2 - Sunshine of Your Love (Jack Bruce/Pete Brown/Eric Clapton)
3 - World of Pain (Felix Pappalardi/Gail Collins)
4 - Dance The Night Away (Jack Bruce/Pete Brown
5 - Blue Condition (Ginger Baker)
6 - Tales of Brave Ulysses (Eric Clapton/Martin Sharp)
7 - SWLABR (She Was Like a Bearbed Rainbow) (Jack Bruce/Pete Brown
8 - We're Going Wrong (Jack Bruce
9 - Outside Woman Blues (Arthur "Blind Joe" Reynolds, adaptado por Eric Clapton)
10 - Take it Back (Jack Bruce/Pete Brown
11 - Mother's Lament (tradicional, adaptado por Jack Bruce, Ginger Baker e Eric Clapton)

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