Um disco indispensável: Gilberto Gil - Gilberto Gil (Philips/CBD, 1968)

Noite do dia 21 de outubro de 1967 em São Paulo, rua da Consolação, teatro Record: o apresentador Blota Júnior junto de Sônia Ribeiro anunciavam a próxima atração do III Festvial de Música Popular Brasileira, exibido ao vivo na televisão pela TV Record, que apostava em uma programação cheia de musicais e nesse momento de tensão, o festival tinha como intenção descobrir novos compositores da safra MPBística: um deles, era o próximo a subir no palco levando o 2º lugar, moreno, gordinho, de barba e cavanhaque com o violão a dedilhar, com arranjos feitos por Rogério Duprat e três jovens com instrumentos elétricos, sendo que a menina do trio tocava pratos, eis que a música surgia e o sujeito barbudinho era o baiano Gilberto Passos Gil Moreira, o trio eram os ainda desconhecidos Mutantes, vindos do bairro roqueiro da Pompeia atraíram multidões e foram ovacionados pelo público do teatro com Domingo no Parque, a vice-campeã daquela terceira edição do festival, com influências da sonoridade do álbum Pet Sounds, dos Beach Boys, misturado de baião, psicodelia da época e com ares cinematográficos nos versos e influências dos arranjos de George Martin, o chamado quinto beatle que falecera recentemente. Quem ganhara aquele festival seria Edu Lobo e Marília Medalha com a bucólica e genial Ponteio, do próprio Edu em parceria com o letrista baiano Capinam, futuro integrante do movimento tropicalista. Outros que despontaram nesse festival foram o também baiano Caetano Veloso e seu iêiêiê mais diferentão em Alegria, Alegria, seguidos de Chico Buarque com o MPB4 de acompanhamento entoando Roda-Viva e teve as vaias meio que constrangedoras para Sérgio Ricardo em Beto Bom de Bola e também outras vaias para Roberto Carlos, que passara despercebido em Maria, Carnaval e Cinzas que o trouxe para uma realidade super diferente do programa Jovem Guarda, onde ele trazia os astros do iêiêiê para as jovens tardes de domingo da Record, mas segurou a barra até o fim. Daquela noite no festival nascia o Tropicalismo, o movimento cultural que consagrou não somente Caetano, Gil, Gal Costa e Os Mutantes mas também o compositor baiano Tom Zé, os compositores José Carlos Capinam e Torquato Neto (1945-1972), os maestros Júlio Medaglia e o lendário Rogério Duprat (1932-2006) que foi comparado a George Martin entre outros maestros da época, com pé na eletrônica também. A partir daquele momento, o movimento se engrandeceria rendendo várias manifestações artísticas em outros festivais de música, programas de televisão e inclusive em um disco, intitulado Tropicália ou Panis Et Circensis, que foi o ápice definitivo e um dos grandes capítulos da MPB, e como todo e qualquer movimento cultural, o Tropicalismo sofreria seu fim após a prisão de Gil e de Caetano após um show na época de Natal, o movimento adormecia mas seguia mais vivo do que nunca: na música, na literatura, na poesia e na cultura pop brasileira em si. Naquele mesmo 1968, era lançado o segundo álbum de carreira de Gilberto Gil pela gravadora Philips onde estreara em um álbum completo intitulado Louvação, no ano anterior, meses antes de se converter num dos maiores figurões da MPB, apesar de ter gravados compactos pela JS Discos entre 1962 e 1963 e alguns registros em 78 RPM em 1965 pela RCA Victor, quando ainda era um funcionário da Gessy-Lever e que esse segundo trabalho seria o álbum de sua fase tropicalista.
Gil em ação no III Festival da Música Popular Brasileira em outubro de
1967 com Dirceu (de preto, tocando berimbau) e Os Mutantes tocando
"Domingo no Parque" de sua autoria e que levou o segundo lugar.
Produzido pelo grande cabeça da época Manoel Barenbein e arranjos de Duprat, o disco homônimo lançado no início de 1968 estampa na capa um Gil na fineza total, com um fardão de imperador ou de membro da Academia Brasileira de Letras com duas fotos nos lados: a primeira é a de um Gilberto Gil vestido de soldado do século XIX com espada e a outra ele está de chapéu, óculos e segurando o volante de um automóvel, fotos de David Drew Zingg com arte de Rogério Duarte e Antônio Dias. O disco já começa bem, com Frevo Rasgado, que já carrega um ar bem do Tropicalismo, e fala sobre a confusão armada dentro de um salão e traz aqui um arranjo de metais bem ao estilo do frevo com marchinha carnavalesca, que dá uma guia pelo que vamos ouvindo em frente; mais adiante, temos Coragem Pra Suportar, que soa como um relato sobre a vida no sertão nordestino, numa pegada que lembra bem as toadas, ao estilo mais gonzaguiano possível e com guitarras fazendo o papel da sanfona e flautas reinando na canção; com a faixa Domingou, o astral rock and roll traz os Mutantes nos vocais e uma poesia que parece captar uma cena cinematográfica, cheia de referências a uma rotina dominical e com vocais que lembram até She Loves You, dos Beatles pela sincronia e pelo tom, vale conferir direito; em seguida, com a faixa Marginália II, quem acha que este tema passaria batida, a levada meio samba-jazz com tons mais alucinantes puxados pela orquestra fariam este tema se tornar um dos grandes destaques, além da poesia que é pura Tropicália de verdade, traz influências da onda beat daqueles tempos nos arranjos; ainda temos outro grande destaque do álbum, que é Pega a Voga, Cabeludo - outra grande presença da criatividade de Duprat na concepção musical, aqui Gil deixa a coisa fluir bem na onda de embolada e mais uma vez contamos com o trio Dias, Baptista & Lee nos vocais deste álbum e há uma brincadeira nos versos "Hey Manuel, pára de encher" como se fosse dirigida ao produtor Manoel Barenbein, ou pode ser qualquer um sujeito com o mesmo nome, vai saber; mais adiante, outro clássico da geleia geral de Gil, intitulada Ele Falava Nisso Todo Dia, com o violão mais eletrificado, meio folk e que ganha um ar bem ao estilo pop barroco, mas também com o astral mais psicodélico possível; em seguida temos uma nova versão do tema Procissão, lançada antes no disco Louvação, mas aqui, com a presença de guitarras, dando uma pegada bem de baião psicodélico e que acaba agradando a todos essa reciclagem feita para o disco; na sequência, com Luzia Luluza, apresentando ruídos que simulam uma chuva no começo acabam nos trazendo uma história de dois jovens pobres que vivem a se encontrar, ele num curso de teatro e ela na bilheteria de cinema, e tentando sobreviver ao engarrafamento - bem típico de qualquer história de amor que passe em São Paulo, para quem notar nome de bairros e ruas paulistas ao longo da faixa; com a próxima faixa, a pegada bossa nova da brilhante Pé da Roseira acaba deixando um gosto não tão amargo, muito pelo contrário, aqui o conceito da música nos remete ao João Gilberto do álbum Chega de Saudade (1959) mas com uma pegada bem elétrica e boa de verdade, sem decepcionar a gente; mais adiante, o disco encerra com o clássico que o consagrara em festivais nos anos 60: Domingo no Parque, que tem o pop barroco, os arranjos de Duprat, o berimbau marcando o ritmo e os Mutantes aqui dando uma canja sensacional, a letra soa como se fosse o roteiro de um filme sendo cantado e que nos impressiona de cara, fechando assim com chave de ouro a obra-prima de Gil no ano tropicalista.
Mas, como nem tudo encerra de um momento pro outro, aqui temos uma espécie de "bis" do álbum que podemos apreciar na reedição em CD feita no ano de 1998 para o box Ensaio Geral, com todos os álbuns de Gil feitos na gravadora PolyGram, são faixas inéditas e apenas lançadas anteriormente em compactos e nunca divulgados em coletâneas até então. A começar por Barca Grande, que era lado B da faixa Pega a Voga, Cabeludo e tinha ainda uma pegada mais entre o baião e a bossa, a letra é boa e soa como pré-tropicalista até; em seguida, temos um clássico da parceria do baiano com Torquato Neto, intitulada A Coisa Mais Linda Que Existe, que chega a trazer uma pegada meio country, mas que lembra um pouco os arranjos de canções feitos na primeira metade do século XX - e que teria uma regravação feita por Gal Costa em seu disco lançado em princípios de 1969, que levava seu próprio nome; na sequência, temos uma música injustiçada dos festivais, Questão de Ordem, feita na época para o III Festival Internacional da Canção, onde Gil é acompanhado pelos Beat Boys e que, apesar do arranjo e das letras, não teve uma boa aprovação e que fez Caetano soltar a raiva em uma das eliminatórias em São Paulo no Teatro TUCA, onde pedia junto o seu desclassificamento até, um momento apoteótico do movimento tropicalista e que deixou o público boquiaberto e sem compreender o guru de Santo Amaro, que partiria para o exílio no ano seguinte; o bis do disco encerra com um registro do lado B de Bat-Macumba em um compacto, e o nome da faixa é bem impressionante, que é A Luta Contra a Lata ou A Falência do Café e com a pegada meio sambinha, onde aqui a canção deixa soar como uma espécie de crítica e com uma excelente levada rítmica, com destaque até para os ruídos de latas, navios que complementam a faixa, dando assim um encerramento digno de um álbum do mestre baiano. Trinta e nove anos depois, o disco ganhara seu reconhecimento em uma lista, a dos 100 maiores discos da música popular brasileira da revista Rolling Stone, figurando na 78ª posição provando que foi uma grande influência para a MPB e para o que viria mais adiante, e hoje cultuado por uma nova geração que se inspira na fase que engrandeceu e eletrificou a MPB total.
Set do disco:
1 - Frevo Rasgado (Gilberto Gil/Bruno Ferreira)
2 - Coragem Pra Suportar (Gilberto Gil)
3 - Domingou (Gilberto Gil/Torquato Neto)
4 - Marginália II (Gilberto Gil/Torquato Neto)
5 - Pega a Voga, Cabeludo (Gilberto Gil/Juan Arcon)
6 - Ele Falava Nisso Todo Dia (Gilberto Gil)
7 - Procissão - 2ª versão (Gilberto Gil)
8 - Luzia Luluza (Gilberto Gil)
9 - Pé da Roseira (Gilberto Gil)
10 - Domingo no Parque (Gilberto Gil)
FAIXAS BÔNUS DA REEDIÇÃO DE 1998 PARA O BOX "ENSAIO GERAL":
11 - Barca Grande (Gilberto Gil)
12 - A Coisa Mais Linda Que Existe (Gilberto Gil/Torquato Neto)
13 - Questão de Ordem (Gilberto Gil)
14 - A Luta Contra a Lata ou A Falência do Café (Gilberto Gil)

Comentários

  1. Bacana, Malcom!! Disco realmente indispensável para quem quer conhecer a discografia de Gil. Nos remete a uma fase criativa da carreira do artista e contém músicas realmente inesquecíveis.

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    1. Pois é, mano, foi um dos discos mais bem-elaborados da fase tropicalistas, não que eu esteje ignorando o álbum seguinte (sem título, 1969), mas ele mostrava que Gil era puro rock aí.

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