Um disco indispensável: Songs in the Key of Life - Stevie Wonder (Tamla/Motown, 1976)

No decorrer dos anos 1970, o músico Stevie Wonder em mais de dez anos de carreira conseguira se renovar botando a sua aura criativa para conceber discos e canções que embalariam e seguem embalando gerações até hoje: começando lá em Music Of My Mind (leia a resenha aqui), que seguido de Talking Book - o disco que nos apresentou seu clássico Superstition, antecipando de vez a era disco que surgiria adiante no final da década. Ainda, seguido de Innervisions, nada que fizesse o soulman cego perder essa aura para fazer músicas como Higher Ground, o hino dos movimentos sociais naqueles tempos e segue sendo até hoje, ainda pôde manter todo esse seu gás em Fulfillingness' First Finale, que aproveitou o momento do reggae e ainda lhes rendeu indicações ao Grammy nesses dois discos. Porém, a forma como os EUA estava sendo governado e a queda do governo Nixon deixaram o músico decepcionado e com vontade de abandonar tudo, desde a música até o próprio país e poder ajudar crianças deficientes nas terras do continente africano, mais especialmente em Gana, longe dos holofotes e até um concerto de despedida havia sido anunciado para essa ocasião. Mas, a inversão dos papeis acabou fazendo com que ele tivesse que voltar atrás quando a Motown lhes dera um novo contrato para assinar no dia 5 de agosto de 1975 e definido como um negócio de US$37 milhões lhes dando o total controle artístico, e sendo o maior negócio feito com uma estrela da música até esse ponto. E como já era de costume, era hora de lançar mais outro disco, e, desde 1974 trabalhando em mais um material, o momento era de botar sua criatividade em estúdio e conceber um trabalho que pudesse soar muito diferente do que já havia feito até então e foi preciso que, desse período que estava se decidindo entre deixar a carreira e se manter ativo, surgisse aquela que seria considerada por muitos a maior obra-prima de sua carreira e o seu legado maior na música. Sim, esse disco cujas sessões ainda levavam o título provisório de Let's See Life The Way It Is e já não havia mais os parceiros dos quatro álbuns anteriores Robert Margoulef e Malcolm Cecil que estavam com ele desde Music of My Mind, agora era ele quem tocava os seus próprios projetos e comandava todo o seu trabalho, mas contando com uma grande equipe para ajudá-lo em uma missão possível e cujas sessões realizadas em vários estúdios norte-americanos como o Crystal Sound em Hollywood, o Record Plant em Los Angeles e em Sausalito além de passagens pelo The Hit Factory, em New York e com o repertório que ele concebera ao longo do tempo, ele poderia juntar o dobro do número canções que ele colocava em seus discos e também pegaria um pouco mais a onda do jazz e seguindo a linhagem de seus discos anteriores, e que viria a ser não um disco simples, mas um disco duplo, e o interesse de público e crítica acabaria ficando tão enorme que, meses depois, era lançado Songs In the Key of Life no dia 28 de setembro de 1976 e este álbum duplo continha um livreto de 24 páginas com as letras e ficha técnica mais um compacto bônus com 4 faixas intitulado A Something's Extra, que ficou como parte do repertório principal do disco e segue sendo um dos discos mais influentes não somente do soul e da black music, mas também do pop e da música em si, sendo um dos melhores álbuns já feitos na Motown, junto de What's Going On (Marvin Gaye) e também citando trabalhos de The Temptations, Jackson 5, Diana Ross & The Supremes, Smokey Robinson dentre outros que passaram por uma das casas fonográficas da soul music ao longo destes anos todos.
"Amigo, eu não sei o que está escrito na minha camiseta,
mas eu sei que o meu disco está quase terminado."
Stevie Wonder com a camiseta anunciando que seu disco
estava terminado e este seria "Songs in the Key of Life"
(Reprodução)
Muita gente da indústria fonográfica aconselhou o próprio soulman a não fazer um disco duplo devido ao custo e também poderia não dar o retorno desejado, mas ele preferiu ignorar e explicou o porquê de um disco duplo "ainda havia muita coisa que precisava ser dita", em uma entrevista ao canal BBC e ele não estava enganado de jeito nenhum. Tendo uma imensa série de canções para apresentar ao público, Wonder já tinha em mente a ideia do que seria este seu disco e, para isso, ele chegou a passar 48 horas ininterruptas dentro do estúdio, sem comer e nem dormir, enquanto muitos ao seu redor tentavam acompanhá-lo. Ao longo deste período de gravações, Wonder sempra começava os trabalhos sozinho, seja tocando piano elétrico ou bateria, em seguida ele murmurava um esboço nos vocais e depois ele chamava os músicos quando era necessário, segundo o tecladista Greg Phillinganes, testemunha ocular da história por trás deste disco, "Eram três da manhã e você precisava ir (ao estúdio), mas era sempre ótimo quando se estava por lá", contou de forma irônica sobre as gravações. Com boa parte do álbum gravada no Crystal Sound Studios tendo como principais engenheiros Gary Olazabal e John Fischbach e tendo na assistência Dave Henson, o disco teve tanto tempo para ser trabalhado e com muita gente fazendo parte dessa equipe que esteve ajudando fazer acontecer esse disco. Apesar dele memorizar muitas das letras, algumas das músicas chegavam a ter até cinco versos complicados e sempre alguém da equipe fazia-o lembrar dizendo através dos fones de ouvido segundos antes de cantá-las. Quando menos se esperava, ficava uma dúvida do público sobre como seria este disco, a imprensa vivia a perguntar Stevie e aos músicos quando iria ficar pronto o tão aguardado disco, até que durante o período final das gravações, todo mundo usava a camiseta com os dizeres "We're almost finished" (Tradução livre: nós estamos quase terminando), como uma boa jogada de marketing para anunciar que o disco estava quase pronto. Por sorte, essa estratégia deu certo até o disco chegar nas lojas bem no dia 28 de setembro e virar um dos maiores best-sellers da música, e o nome Songs In the Key of Life surgiu de um sonho do músico "Ele represennta a singularidade do momento", segundo o próprio em entrevista para o documentário sobre seu próprio disco na série Classic Albums, há alguns anos atrás. Metais, ritmos afros, reggae, soul moderno, solos de gaita, corais, funk: tudo isso dentro de uma salada sonora presente em dois LPs e um compacto que fazem parte desse álbum brilhante que merece ser reouvido por várias e várias vezes. Conseguiu ser também uma espécie de cala-a-boca para aqueles que duvidavam da sua brilhante capacidade, fazendo ganhar mais tarde, quatro de sete nomeações ao Grammy, inclusive a de Álbum do Ano, que já ganhara com os outros dois trabalhos anteriores.
Parte interna da capa dupla do disco (Reprodução/Motown)

Vamos agora começar a fazer aquele nosso tradicional resumo de faixa-a-faixa aqui pela primeira parte do disco, e o pontapé inicial de Songs In the Key of Life é através da belíssima e suave Love's in Need of Love Today, com seus sete minutos apaixonates e provando que a mente brilhante de Stevie conseguia fluir petardos maravilhosos como essa baladinha, tendo uma excelente base instrumental nessa música; logo em seguida temos Have a Talk With God e a despreocupação das pessoas por não terem tempo para conversarem com Deus acaba sendo um momento de reflexão para nossos ouvidos e mentes; em seguida, a sonzeira funky segue com Village Ghetto Land, que nos convida a conhecer a realidade dos guetos norte-americanos com uma super levada de orquestração feita por sintetizadores parecendo meio que uma sinfonia feita de uma forma mais moderna e agradável até; na sequência, uma instrumental intitulada Contusion faz todo o sentido pra quem curte um pouco esse lado mais jam/improvisação dele, tendo aqui Mike Sembello na guitarra, Nathan Watts no baixo, Raymond Pounds na bateria e Phillinganes nos teclados concebendo junto de Stevie um funk instrumental bem viajante e fácil de degustar de verdade; logo mais adiante nós temos Sir Duke, um culto ao lendário jazzista Duke Ellington (1899-1974) além de citar outros nomes lendários como Count Basie, Glenn Miller e Louis Armstrong, aqui sendo chamado por Satchmo, um funk que traz um pouco essa essência jazzística e que lhes rendeu um Grammy na categoria Melhor Performance Pop Vocal logo após o estouro da música; temos na próxima faixa como guia a introdução funkeada de baixo em I Wish já nos faz ter certeza de que o momento é ir para a pista de dança e curtir essa levada bem disco com um astral bem pra cima que faz manter o clima mais agradável; o excesso de melodismo não faz esse disco soar tão mal, ainda mais em faixas como Knocks Me Off My Feet, que é uma baladinha bem gostosa de ouvir e curtir, algo bem a cara do R&B melódico pelo que se identifica muito; já na faixa Pastime Paradise, uma mensagem muito forte marca essa canção, além da pegada que soa muito atual para a geração de hoje e que seria sampleada anos depois pelo rapper Coolio no clássico Gangsta's Paradise, mostrando que os sons deste disco poderiam ser reaproveitados por uma galera especialista brevemente; a próxima faixa tem uma levada de piano melódico agradável, e o tom baladista em Summer Soft só faz a gente viajar ainda mais na sonoridade do álbum, com uma excelente aula de como fazer música de qualidade com um cego que toca desde o piano até a bateria ao longo desta faixa, ou seja - o cara é multiinstrumentista mesmo, não é à toa que é o fodão da música até hoje; em seguida, com Ordinary Pain fechando a primeira parte do disco onde uma relação é retratada de uma forma crítica, com duas partes a música: a primeira por Stevie e a segunda totalmente feminina tendo Shirley Brewer tendo os vocais luxuosos de Minnie Ripperton e Deniece Williams dando um gosto a mais nessa canção, e fechando assim o primeiro tempo do disco.
Stevie Wonder e banda trabalhando em estúdio, década de 1970
(Divulgação)
Logo na segunda parte do álbum, o que se ouve é o choro de um bebê na banheira, e seguido de uma balada funk complementando ainda mais: isso é Isn't She Lovely, um dos grandes sucessos deste disco e o bebê é nada mais que Aisha Morris, filha do soulman, que mostra alegria plena e dando um gás a mais para este trabalho; com a faixa seguinte Joy Inside My Tears, aqui fica claro que baladas como esta conseguem marcar mais nossos corações depois da primeira escuta, a orquestração sintetizada é um show à parte disso tudo; e logo em Black Man, nós temos um exemplo de como juntar professores e alunos para darem um show aonde ele volta no tempo e fala sobre os negros que fizeram parte da história, como se fosse um desafio em sala de aula com as respostas bem gritantes até; com os pés totalmente na África, o músico fez a sequência Ngiculela/Es Una Historia/I Am Singing como se fosse uma passagem trilíngue a cada verso, a primeira parte em zulu foi Thoko Mdalose Hall que traduziu, já em espanhol foi o percussionista e trompetista Raymond Maldonado que ajudou nessa parte e o restante fica em inglês mesmo, algo que já foi feito em Bird of Beauty, do disco Fulfillingness' First Finale onde havia um verso em portugês, e é outro grande destaque essencial do disco; logo em seguida temos a faixa If It's Magic, aonde na canção reina somente uma harpa e ainda podemos ter Stevie puxando a sua tradicional gaita e ganhando atenção especial de quem ouve o disco; logo mais adiante, em As, aqui o músico ganha o suporte luxuoso de um monstro das teclas, e logo esse seria Herbie Hancock fazendo uma canja sensacional ao longo dos sete minutos que acabam virando uma brilhante jam session no decorrer de toda a duração da faixa; já encerrando essa segunda parte do disco, temos aqui Another Star, que chega a ter uma forte influência do nosso querido samba - meio carnavalesco até, mas têm um quê de música africana e tendo uma forte pegada disco, que em seus oito minutos conta com uma energia muito forte e traz aqui o grande George Benson tocando guitarra e contagiando ainda mais nossos ouvidos. Se você pensa que o disco acaba aqui, é porque você ainda não sabe que há um bis, são as quatro faixas do EP bônus A Something's Extra, começando por Saturn, aonde o soulman avisa que vai arrumar as malas e se mandar para um lugar cujo ar é mais limpo e respirável e com um tom baladista aqui; logo em Ebony Eyes, nós temos aqui uma bela prova de como fazer um soul da melhor qualidade e o excesso de sintetizadores não faz feio aqui não, mantêm o primor de todo o disco; mas, quando você ouvir All Day Sucker, você vai sentir os sintetizadores do rock progressivo presentes ao longo da canção e notar que isso é, na verdade, um prog-funk sem sombra de dúvidas; e encerrando de vez essa espécie de "bis" do álbum, nós temos a instrumental Easy Goin' Evening (My Mama's Call) que carrega uma suavidade de ares jazzísticos e com um solo de gaita que fecha total todo esse trabalho que virou uma das maiores obras-primas feitas na Motown e que viria a ser um dos melhores álbuns de R&B de todos os tempos.
Enfim, como eu já havia dito antes, o disco que conseguiu abalar as estruturas e render não somente prêmios como 4 Grammys, dentre eles o de Álbum do Ano e também o de Melhor Performance R&B com Sir Duke, fez com que Stevie pudesse levar o álbum para os palcos do mundo, sendo um dos álbuns mais vendidos de todos os tempos até hoje, com mais de 15 milhões de cópias e se tornando um exemplo de disco a ser sampleado pela galera do rap e vindo a figurar-se em listas dos maiores álbuns dos anos 70, além de aparecer na 57ª posição na famosa lista dos 500 Maiores Álbuns de Todos os Tempos, da revista Rolling Stone e também aparecer na lista do livro 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer, organizado por Robert Dimery, junto de outros discos seus. Definitivamente, podemos dizer que o legado de Stevie Wonder na música alcançou seu nível extremo de grandeza através deste disco e se converteria em um dos favoritos de Elton John, que no texto de abertura da lista da Rolling Stone ele diz que, "onde quer que eu vá, eu sempre leve uma cópia de Songs In the Key of Life" e também sendo um dos prediletos também do presidente norte-americano Barack Obama, que segundo o próprio "foi o disco que mexeu meu coração" e segue a mexer os ouvdos, corações e mentes de muita gente até hoje.
SET DO DISCO 1:
1 - Love's in Need of Love Today (Stevie Wonder)
2 - Have a Talk With God (Stevie Wonder/Calvin Hardaway)
3 - Village Ghetto Land (Stevie Wonder/Gary Byrd)
4 - Contusion - instrumental (Stevie Wonder)
5 - Sir Duke (Stevie Wonder)
6 - I Wish (Stevie Wonder)
7 - Knocks Me Off My Feet (Stevie Wonder)
8 - Pastime Paradise (Stevie Wonder)
9 - Summer Soft (Stevie Wonder)
10 -Ordinary Pain (Stevie Wonder)
SET DO DISCO 2:
11 - Isn't She Lovely (Stevie Wonder)
12 - Joy Inside My Tears (Stevie Wonder)
13 - Black Man  (Stevie Wonder/Gary Byrd)
14 - Ngiculela/Es Una Historia/I Am Singing (Stevie Wonder/Thoko Mdalose Hall/Raymond Maldonado)
15 - If It's Magic  (Stevie Wonder)
16 - As (Stevie Wonder)
17 - Another Star (Stevie Wonder)
SET DO EP BÔNUS "A SOMETHING'S EXTRA":
18 - Saturn (Stevie Wonder/Michael Sembello)
19 - Ebony Eyes (Stevie Wonder)
20 - All Day Sucker (Stevie Wonder)
21 - Easy Goin' Evening (My Mama's Call) - instrumental (Stevie Wonder)

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