Um disco indispensável: Nascimento - Milton Nascimento (Warner Bros. Records/WEA Music, 1997)

Dezembro de 1996, palco do Teatro Procópio Ferreira, rua Augusta em São Paulo. O público aguardava a surpresa que se escondia em um disfarce do Papai Noel durante as gravações de mais um programa Sai de Baixo, quem estaria escondido naquelas vestes do Bom Velhinho e ainda mais um negro? Eis que, enquanto o elenco do programa entoava Boas Festas, clássico das canções natalinas, o Papai Noel se despia da roupa e eis que surge um sujeito magro nível anoréxico, alto, com gorro de couro: muitos não percebiam que aquele era Milton Nascimento irreconhecível, o mesmo que já nos ofereceu canções como Travessia, Nos Bailes da Vida, Nada Será Como Antes e que levara a sua voz ao público mundial que se encantara com aquele mineiro nascido no Rio de Janeiro, mostrando-se completamente diferente no palco: um Bituca, que ninguém acreditava ser ele próprio naquele estado total de magreza. Após isso, não passou o fim do ano e corria os boatos de que ele era portador do vírus HIV, o que já havia ocorrido na década de 80 mas ele próprio negou. Só que desta vez, os mentirosos, enquanto falavam de forma maliciosa, o músico se retirara em estúdio para lançar seu primeiro disco de estúdio em três anos, gravado entre Rio de Janeiro e New York no início do ano. Esse trabalho seria o seu primeiro disco em quinze anos, que não teve a mão de Márcio Ferreira, seu empresário e dono da Quilombo, produtora que bancava o artista, que desde Caçador de Mim (1981) ajudava nos trabalhos do cantor, produzindo e concebendo a arte do disco, morreu no dia 23 de maio daquele 1996, após sentir-se mal durante uma cirugia para implante de cabelo e sofrer uma hemorragia central e com a sua ida, o cantor acabara descobrindo coisas que jamais imaginava sobre o seu ex-parceiro: juntara muitos poucos bens e dinheiro, pois tudo o que ganhava ia para os bolsos da Quilombo, segundo a biógrafa Maria Dolores. Mas, não demorou muito para que retomasse agora na Tribo Produções e a partir daí, a sua reviravolta começaria a acontecer com o seu mais novo disco, com o norte-americano Russ Titelman na produção, junto de alguns músicos que o acompanham sempre, dentre eles Lincoln Cheib nos ritmos, Luiz Alves no baixo, Wilson Lopes no violão, Alberto Continentino no baixo elétrico, Túlio Mourão nos pianos, Robertinho na bateria e Ronaldo Silva na percussão ajudaram a conceber um dos discos que trouxe autoestima para que Bituca nunca deixasse de fazer música, que é o dom que ele tem para alegrar os bailes da vida até hoje. O disco contou também com o uruguaio Hugo Fattoruso nos teclados, piano, acordeão e arranjos, sendo um dos principais cabeças do disco, junto de Lincoln que pesquisou ritmos mineiros e colocou neste disco. Com o nome de Nascimento, o disco é nada mais que um renascimento do artista na música e nos palcos depois de todo o caos que se circundou sobre a sua saúde e conseguir se retirar para colocar a disposição do povo o melhor do seu cancioneiro.
Março de 1998, Teatro João Caetano, Rio de Janeiro: até um tempo atrás, Milton
sofria críticas pela sua magreza causada pelo diabetes.
 Buscou
 na música o refúgio: lançou o álbum "Nascimento",
voltou aos palcos e protagonizou um espetáculo grandioso.
O disco começa com batidas que lembram um tanto ritmos de origem africanas, mas são as batidas mineiras tradicionais que entram na faixa Louva-A-Deus, onde ele brada de forma impressionante "fazei de mim o seu altar, seu louva-a-Deus" em poucos versos da canção nos guiam ao que é o disco; a próxima faixa é O Cavaleiro, de uma suavidade precisa nos arranjos, e poesia original, o que esperar de mais canções como essa nesse disco quando se trata de Milton Nascimento? Bela desde a primeira escuta, apenas isso; ainda temos uma versão em português para a música Biromes y Servilletas do compositor uruguaio Leo Maslíah que aqui vira Guardanapos de Papel e ao invés de reverenciar Montevideo, aqui é o Rio de Janeiro com seus poetas, que lembra um pouco Vinícius de Moraes pelos versos e o arranjo bem jazz que complementa toda a música; ainda com música uruguaia, Bituca reverencia Eduardo Mateo (1943-1990) com sua canção Cuerpo y Alma, cheia de tons serenos e calmos nos arranjos, segue a nos mostrar o lado portunhol do carioca mineiro da música; já no tema O Rouxinol, outra canção recheada de sons de pássaros e numa pegada totalmente soft pelos arranjos e com Fattoruso fazendo um solo de acordeão que dá aquele brilho a mais pra música; logo mais adiante temos Janela Para o Mundo, mantendo completamente os pés nos ritmos mineiros e com a frase "estrangeiro eu não vou ser, cidadão do mundo eu sou" é que garante que Milton não é somente brasileiro, nem do Rio, nem de Três Pontas, ele é universal como a sua música; enquanto isso em E Agora, Rapaz?, com uma pegada meio caribenha, também carregadas de que possam soar como uma canção do Clube da Esquina até de passagem, mas não totalmente a sonoridade do álbum de 1972; enquanto isso, temos ainda Levantados do Chão, feita na época com Chico Buarque para o projeto Terra, um livro com fotos de Sebastião Salgado, textos de José Saramago e canções de Chico, e que com uma base sofisticada, traz uma poesia relatando o drama de vários sem-terra com uma narrativa de tom realista pelo que se nota; ainda temos para complementar um instrumental chamado Ana Maria, do músico norte-americano Wayne Shorter, saxofonista e amigo de Bituca, que perdera a esposa num acidente de avião em julho de 96 e deixou o lendário jazzista quase num luto eterno por dois anos; outra música aqui presente de forma instrumental, com vocais meio que dando um tom mais primoroso, é uma versão para Ol' Man River do musical Showboat, que é dedicado a River Phoneix (1970-1993), ator e músico americano a quem Milton considerava como Young Man River, traz um coral para complementar todo o arranjo desta interpretação; e ainda temos Os Tambores de Minas, aonde a música une os ritmos mineiros, os tambores rugindo com toda a potência e mostrando que os batuques dos tambores ainda não se calaram, mas que seguem a soar e isso soa como uma resposta do cantor sobre os boatos que se tratavam sobre ele; o encerramento é a versão original de Biromes y Servilletas, que apesar do mesmo arranjo que aparece em Guardanapos de Papel, não soa como um tapa-buraco para o mas também não faz feio aqui, mas deixa aquele gosto de quero mais, uma espécie de bis para este disco.
O disco foi bem recebido pela crítica e ainda teve uma turnê que promovia o disco, intitulado Tambores de Minas aonde Milton conseguiu tocar parte do álbum na íntegra e ainda levou um prêmio que consagrara seu disco: o Grammy de Melhor Álbum de World Music, no ano seguinte, em meio a celebração dos seus 35 anos de carreira. Passam os anos, e Nascimento é um belo exemplo de como quebrar - musicalmente - o silêncio e virar a mesa sem precisar atacar ninguém, de uma forma que agrade gerações.
Set do disco:
1 - Louva-A-Deus (Milton Nascimento/Fernando Brant)
2 - O Cavaleiro (Milton Nascimento/Wilson Lopes)
3 - Guardanapos de Papel (Biromes y Servilletas) (Leo Maslíah, versão em português de Carlos Sandroni)
4 - Cuerpo y Alma (Eduardo Mateo)
5 - O Rouxinol (Milton Nascimento)
6 - Janela Para o Mundo (Milton Nascimento/Fernando Brant)
7 - E Agora, Rapaz? (Dinho Caninana)
8 - Levantados do Chão (Milton Nascimento/Chico Buarque)
9 - Ana Maria (Wayne Shorter)
10 - Ol' Man River (Jerome Kern/Oscar Hammerstein II)
11 - Os Tambores de Minas (Milton Nascimento/Márcio Borges)
12 - Biromes y Servilletas (Leo Maslíah)

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