Um disco indispensável: Ronnie Von - Ronnie Von (Polydor/CBD, 1968)

Existem artistas, que, quando uma fase da sua carreira não acaba indo bem, ou tendem a experimentar coisas diferentes, ou se viram para não irem ao declínio. Deve ter sido assim para o cantor e compositor Ronnie Von, nosso querido Tio Ronnie, o tio do "significa". Voltamos ao ano de 1968, o mundo estava vivendo e vivenciando um caos surreal - como as manifestações populares em Paris no mês de maio, os protestos ao redor do mundo contra a Guerra do Vietnã que ainda pipocava, a lendária Primavera de Praga marcada pela liberalização política na Tchecoslováquia, sem esquexcermos a corrida espacial que teve como vencedora os Estados Unidos com a chegada do homem à Lua no ano seguinte, o fim do governo de António de Oliveira Salazar após 35 anos, mas cujo regime estadista só acabou em 25 de abril de 1974, o assassinato imprudente de Martin Luther King Jr., símbolo da luta pelos direitos civis e que segue sendo reverenciado até hoje. No Brasil, a situação não poderia ser outra: mortes como a do estudante Edson Luís no restaurante universitário Calabouço ajudaram a originar a famosa Passeata dos Cem Mil no Rio de Janeiro com vários artistas, intelectuais e cidadãos comuns unidos não somente contra a ditadura/regime militar, mas também contra a censura na imprensa e nas diversas manifestações artísticas, e manifestavam pela liberdade de expressão e redemocratização, foi a última passeata antes da instauração do Ato Institucional n° 5, o famoso AI-5, antes do Natal, no governo de Costa e Silva, que duraria até 1969 - e este AI-5 acabaria por complicar de vez com os direitos do cidadão brasileiro e a censura ficaria mais forte nesta fase. Uma das válvulas de escape para aquilo tudo eram as manifestações artísticas e culturais, como a música, o teatro, as artes plásticas e o cinema - os anos de chumbo foram favoráveis para que artistas colocassem seus sentimentos contra aquele governo em canções, livros, filmes, peças teatrais e obras de arte. 1968 foi o ano em que o Tropicalismo ajudou a eletrificar a música popular brasileira misturando elementos daqui com o rock, o psicodelismo e a música experimental tendo como os gurus do movimento os baianos Gilberto Gil e Caetano Veloso, e junto deles Gal Costa, o grupo Os Mutantes, Tom Zé, os poetas Capinam e Torquato Neto mais o maestro e arranjador Rogério Duprat - o resultado foram discos diversos com doses cavalares de tropicalismo, como a bíblia do movimento, o conceitual Tropicalia ou Panis et Circensis - o disco que traduzia o movimento. Também havia a Jovem Guarda, com seus últimos suspiros, pois, no início daquele ano, o programa saía do ar - com isso, Roberto Carlos começou a se enveredar por um caminho mais romântico e participou do Festival de Sanremo cantando a música Canzone Per Te, se tornando o vencedor como um dos intérpretes, e lançava o clássico O Inimitável, já Erasmo Carlos e Wanderléa começariam também a se inovarem além do iê-iê-iê no final da década e não ficariam a ver navios ou sentados à beira do caminho, como diz o nome de uma canção. A imagem dos primeiros anos de Chico Buarque (ainda com o sobrenome De Hollanda) deixava de ser a de um Noel Rosa da segunda metade do século XX para ser a do homem cansado daquele governo militar e começaria a fazer mais canções de protesto, ainda que passasse por situações constrangedoras, como a vaia no FIC daquele ano em Sabiá, voltando para a final, depois que Tom Jobim - autor da canção - ao lado de Cynara e Cybele, testemunhou a sua maior decepção de ser massacrado por uma plateia ao vivo com sua música levando uma enorme vaia transmitido em rede nacional, pois o festival estava sendo exibido pela TV Globo à época. Elis e Jair já não comandavam mais o fino da bossa, mesmo assim, mantiveram suas trajetórias em alta, e compositores como Edu Lobo e Marcos Valle eram notados pelos seus sucessos fora do país através de gravações feitas por artistas internacionais. Já o nosso protagonista desta resenha, o Pequeno Príncipe, o boy magia daquela época, vinha numa boa fase, com discos excelentes e sucessos que estavam sempre nas rádios, disputava popularidade com Roberto, Gil, Chico, Edu, Jerry Adriani, Wilson Simonal entre outros e era muito destacado na mídia pela sua beleza. Mas, ele queria fazer algo totalmente diferente do que era acostumado a fazer na música até então. E fez.
Se o cara ficou um pouco de saco cheio ou queria ir além do que estava fazendo, deixar o papel de concorrente do Rei pra tentar se renovar artisticamente, isto significa que ele queria pegar carona em algo parecido com o tropicalismo? Significa. Ele vinha de 3 bem-sucedidos álbuns de sucessos, que iam desde Meu Bem até o revival do estilo marcha-rancho em A Praça, da autoria de Carlos Imperial, uma das maiores cabeças do iêiêiê - porém, com a baixa do programa, era melhor cada um tomar seu rumo. Ele entrou em estúdio em meados de 1968 na cidade de São Paulo com a produção de Arnaldo Saccomani e os arranjos e direção musical de Damiano Cozzella e sua ideia era levar o surrealismo de Salvador Dalí e René Magritte para dentro do ambiente sonoro, e traz muitas referências sonoras, que vão do clássico álbum Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band dos próprios Beatles, até bandas como Kinks, Procol Harum, The Who, Velvet Underground e o concretismo, e, para este trabalho, contou com a ajuda do conjunto B612, nome extraído do asteroide onde vivia o Pequeno Príncipe, personagem do escritor francês Antoine de Saint-Exupery - que rendeu o apelido do nosso querido Tio Ronnie. Os músicos do B612 eram José da Rocha Guilherme na guitarra e violão, Adalberto de Oliveira na outra guitarra, Gilberto Amado Teixeira no baixo e Vilceli Mario de Matos na bateria, além da presença de outros músicos convidados que tocam desde instrumentos de base até metais e cordas. A capa é um surrealismo psicodélico como exemplo do que Ronnie queria proporcionar, com cores vivas e pessoas como damas bem-vestidas e um guarda da Realeza britânica em uma paisagem colorida e um sol a enfeitar a imagem com a ilustração e na contracapa uma imagem do Pequeno Príncipe em preto-e-branco com a camisa aberta, um gorro de pele animal e colete, e, pelo que se sabe, o nome do fotógrafo por trás desta imagem é desconhecido. Ao ouvirmos os primeiros segundos do álbum, ouvimos Ronnie dizer "Olha, eu não sei de onde venho e nem de onde e nem pra onde vou" e, por fim, assume ser o filho do vento: as falas dele dão a deixa para Meu Novo Cantar, uma letra aonde ele se assume como um artista novo e muito diferente, com um fuzz de guitarra bem viajante e a presença forte do órgão e dos instrumentos de metais, e reflete sobre suas dúvidas e incertezas em relação a ele mesmo, sua carreira, ao Universo e tudo mais, mas, assim como sua música, ele vê uma esperança nesse rumo - essa é basicamente uma canção autobiográfica; em seguida, vamos para a canção Chega de Tudo, com uma energia sonora bem animada e totalmente balançada e trata da questão de uma juventude ansiosa em viver o agora sem se preocupar com o futuro, totalmente marcada pela presença de guitarra e dos metais que deixam a música mais perfeita na sonoridade; para a próxima música, ruídos diferentes que provam a necessidade de um surrealismo poético-musical, Espelhos Quebrados mostra sons de vidros quebrando no início, trazendo a presença do cravo e fagote, e é uma das músicas favoritas de Ronnie, na letra temos o uso e o abuso das figuras de linguagem como a simestesia misturado com as sensações, o tema ainda traz um belo arranjo de cordas que nos remete à Eleanor Rigby, dos Beatles, por coincidência; entre a música anterior e a seguinte, há um jingle publicitário promovendo o Bar Íris situado na Rua Augusta que realmente existiu, e após este jingle, o tema mais porraloca na sonoridade: Silvia, 20 Horas, Domingo - escrita por Tom Gomes e Luís Vagner, do conjunto Os Brasas, e aqui marcado por um fuzz de guitarra alucinante e uma levada bem pop psicodélico, fala de um cara que se encontrará com Silvia, às 20 horas no domingo, e diz que foi tão bom ele ter encontrado com a personagem da canção, ao ouvirmos, parece alguma canção esquecida do iêiêiê até; na sequência, uma música bem romântica e doce, com destaque para a presença novamente do fagote com as flautas e das cordas na bela Menina de Tranças, onde o eu-lírico fala de seu amor com uma moça de cabelos trançados e se envolvem na dança do amor, onde suas tranças se soltam e vivem na lembrança; em seguida, para fechar o lado A do disco, uma junção de duas canções, a primeira é Nada de Novo, totalmente autobiográfica falando dos deveres e compromissos do dia pra depois curtir a noite, e junto desta, uma canção chamada Lábios Que Beijei, da autoria de J. Cascata e Leonel Azevedo gravada por Orlando Silva nos anos 40, aqui com uma presença de violão e baixo forte e a voz do Ronnie simulando um efeito como se fosse nos anos 30 ou 40, bem igual; para abrir o lado B, temos aqui guitarras e um órgão que nos remetem à canção dos ingleses do grupo Procol Harum, a clássica A Whiter Shade of Pale, que parecem ter influenciado Esperança de Cantar, e fala novamente da incerteza da direção que o cantor resolveu seguir quando começou a cantar, ele sabe que o futuro é desconhecido, mas acredita muito que a esperança e a sorte podem acontecer - ao lermos sobre isto, parece filosofia de auto-ajuda até; e em seguida, vamos a um dos pontos mais altos deste disco, o tema Anarquia, que começa com uma ligação de Cozzella direto do estúdio procurando o cantor e tem uma pegada de baixo e bateria que se destaca, além de um belo arranjo de guitarra - a letra mostra um protesto em meio aos anos de chumbo e o Pequeno Príncipe vem a convocar o povo para irem às ruas e fazerem anarquia, porém, com alegria - bem no estilo hippie daqueles coloridíssimos anos finais da década de 60, no melhor estilo "paz e amor" possível; continuando com essa sequência de canções carregadas de estéticas surreais na poesia, Mil Novecentos e Além acaba por fazer uma bela união de ficção científica com misticismo, a narrativa traz como personagem um homem de ouro que descerá dos céus e levar o eu-lírico para um lugar magico que este já conhecia através de algumas escrituras existentes na Terra, e peço aos leitores que foquem no órgão executado nesta música, que desfila melodias com primor, além dos metais, dando um brilho total nesta; na sequência, o repertório do álbum ainda conta com Tristeza de Um Dia Alegre, inspirada no livro de Albert Camus, o clássico O Estrangeiro, na qual fala de um cara que recebe a notícia de que sua mãe faleceu e não há uma reação emocional, mas, ao contrário disto, na música a resposta para essa notícia é simplesmente o amor, na introdução, o maestro Cozzella usa um piano de cauda aberto e coloca microfone dentro, e, usando martelos de tímpano, vai batendo nas cordas do piano e na madeira para captar um som ecoado com reverberação criando uma sonoridade única; adiante, temos aqui uma canção que faz parecer o drama de muitos brasileiros que sabiam que podiam morrer: Contudo, Todavia narra sobre um pai de família destinado a partir deste plano, sai de casa despedindo-se da esposa e dos filhos, deixa as contas pagas a caminho do inevitável fim, a parte musical traz um destaque pra a percussão muito presente junto do órgão, e fecha em um ritmo bem marcha militar - totalmente surrealista na estética sonora; para terminar, uma coisa mais alegre pelo ritmo, diferente de algo mais profundo - esta é Canto de Despedida, trazendo nos arranjos uma levada carnavalesca da parte da bateria e dos metais, a letra traz Ronnie se despedindo de sua amada dizendo que precisa partir para ir cantar e seguir seu sonho - totalmente a cara do próprio, fechando o álbum de vez.
O disco não vingou, a gravadora não entendeu e nem mesmo o público buscou uma explicação para essa nova fase dele durante anos, é claro que estava ficando tudo diferente, e isso foi só o primeiro passo da sua fase psicodélica. No ano de 1969, inspirado mais ainda, quis manter esse conceito de temas surrealistas e arranjos superbolados, e gravou seu 5° LP, o segundo da fase experimental, A Misteriosa Luta do Reino de Parassempre Contra o Império de Nuncamais - sim, este é o nome do LP, com o mesmo Saccomani à frente do papel de produtor, e a trilogia psicodélica fecha em 1970 com A Máquina Voadora, inspirada em uma de suas maiores paixões: os aviões e a de voar, obviamente. No final dos anos 90, esse começou a se tornar um objeto valioso depois que um crítico chamado Hans Pokora colocou em um livro chamado Record Collector Dreams, provando seu valor fora do país. Para a nossa alegria, a Polysom reeditou os LPs do Tio Ronnie em 2013, e no CD ganhara reedição em 2007 pela Universal Music, e ele figura entre os diversos LPs presentes na lista organizada pelo jornalista Bento Araújo, da revista Poeira Zine, que rendeu o volume 1 do livro Lindo Sonho Delirante, que, recomendo muito buscarem saber sobre este livro. Tio Ronnie, se estiver lendo esta resenha, quero dizer de coração: muito obrigado por ter feito esses álbuns psicodélicos tão à frente do nosso tempo. Mas, obrigado mesmo!
Set do disco:
1 - Meu Novo Cantar (Arnaldo Saccomani)
2 - Chega de Tudo (Arnaldo Saccomani)
3 - Espelhos Quebrados (Arnaldo Saccomani)
4 - Silvia, 20 Horas, Domingo (Tom Gomes/Luís Vagner)
5 - Menina de Tranças (Hédys/Flavia)
6 - Nada de Novo (João Magalhães/Eneyda)/Lábios Que Beijei (J. Cascata/Leonel Azevedo)
7 - Esperança de Cantar (Eduardo Araújo/Chil Deberto)
8 - Anarquia (Arnaldo Saccomani)
9 - Mil Novecentos e Além (Arnaldo Saccomani)
10 - Tristeza de Um Dia Alegre (Newton Siqueira Campos/Vicente Paula Salvia)
11 - Contudo, Todavia (João Magalhães/Eneyda)
12 - Canto de Despedida (Arnaldo Saccomani)

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