Um disco indispensável: Beggars Banquet - The Rolling Stones (Decca/ABKCO Records, 1968)

Estamos em 1968. Os Beatles partiram para um retiro espiritual com o guru Maharishi Maheshi Yogi, depois Ringo e Paul deixaram semanas após o começo, e seguido de George e John por descobrirem algumas coisas podres do guru, fundam a Apple, lançam alguns de seus maiores singles de sucesso, como Lady Madonna e Hey Jude, lançaram o longa-metragem animado Yellow Submarine e também o melhor álbum do ano, ou um dos melhores deles, o duplo Álbum Branco intitulado The Beatles. O guitarrista Jimi Hendrix seguia em alta, mantendo-se nos shows em alta, desfilando melodias viajandonas de qualidade. O mundo se encantava com Doors, Jefferson Airplane, Velvet Underground, Pink Floyd e também com uma banda que pintava no cenário chamada Big Brother & The Holding Company, com a voz rouca de Janis Joplin, dona de um timbre que une o blues, o jazz e o soul, que lançava o icônico álbum Cheap Thrills, desfilando diversos hits como Ball and Chain, Summertime e o grande clássico de sua carreira, Piece of My Heart, e, deixava o grupo para iniciar sua carreira solo. Em alguns países, ainda existia regimes autoritários, como os militares na América Latina (Brasil em especial), o franquismo espanhol e o salazarismo português, e o sonho do pastor Martin Luther King Jr., representante do movimento negro, acabava com o seu assassinato trágico. Mas a voz de muitos negros jamais se calaria, pois acontecia a expansão do movimento dos Panteras Negras, o surgimento de novos nomes da música negra que uniam soul com rock e difundindo assim o funk, dentre eles Sly & The Family Stone, Isaac Hayes, The Meters, Ohio Players e o Funkadelic, além da incrementada de elementos funky em canções e melodias posteriormente. As efervescentes manifestações em Paris no mês de maio movida pir uma força jovem, a Primavera de Praga na Tchecoslováquia e os movimentos civis que se posicionavam contra a Guerra do Vietnã foram o que ajudaram a pipocar de acontecimentos em 1968. A ditadura/regime militar brasileiro começava a endurecer ainda mais, após descobrirem a clandestinidade da UNE e do brutal assassinato do jovem estudante paraense Edson Luís aos 18 anos no restaurante Calabouço originaram a Passeata dos 100 Mil contra o governo militar e pela democracia, meses depois o presidente Costa e Silva instaurava o AI-5 antes do natal, o que acabaria incomodando artistas, intelectuais e políticos. E os Rolling Stones, a versão bad boy dos Beatles que surgiu cantando que o tempo estava do lado deles (até hoje)? Depois do malfadado e flopado registro psicodélico Their Satanics Majest Request, que trouxe algumas músicas relevantes - o caso de She's a Rainbow - viram que a psicodelia não era lá o forte da banda, com isso a saída do produtor Andrew Loog Oldham, decidiram reinvestir totalmente no blues e nas origens do rock - nessa mudança entra o produtor Jimmy Miller (1942-1994), um produtor que esteve à frente dos melhores trabalhos da banda na fase 68-71 até 1973, e muitos o consideram um produtor melhor que Oldham.
Logo, a partir do fracasso psicodélico e da decepção por parte de fãs, Jagger e Richards decidiram reinvestir na sonoridade blues e, de março a julho de 1968 eles conceberam o material em Los Angeles no então popular Sunset Sound e em Londres no lenário Olympic Studios, que se tornou até QG da banda na época. Dentre os engenheiros de gravação que participaram das sessões no Olympic, Glyn Johns foi o mais presente neste processo de criação e produção do álbum, Keith era mais participativo, tinha mais destaque enquanto o genial multi-instrumentista Brian Jones tinha pouca presença e se comportava de maneira irregular devido ao consumo de drogas e problemas mentais, e, segundo Miller, o guitarrista só participava das gravações quando tinha vontade de tocar - diferente dos anos anteriores. Com isto, surgiram algumas músicas como Jumpin' Jack Flash, lançada em single, mas que não entrou em Beggars Banquet - cuja capa original é um banheiro todo velho com rabiscos, sendo que, a capa que entrou definitiva era uma espécie de convite vip, com um letreiro fino trato que permaneceu no vinil, mas, a capa da privada reapareceu em CD anos depois, mas algumas pichações foram apagadas, modificação feita pelo computador, claro. Mas, vamos direto no assunto, o álbum e o faixa-a-faixa, começando pela incendiária Sympathy For The Devil, com sua levada cheia de influências latinas e afros, conta com uma percussão marcante, a letra não tem muito a ver com satanismo ou louvação ao Diabo, tem mais inspiração num livro chamado The Master and The Margarita, escrito por Mikhail Bulgakov e narra de uma vinda de Satã visitando Moscou nos anos 30 para ver os efeitos da revolução russa: transforma policiais em tolos, poetas em ignorantes e faz ateus acreditarem em Deus, quem toca percussão é Rocky Dijon e o piano é executado por Nicky Hopkins e o processo de criação rendeu um filme dirigido por Jean-Luc Godard com cenas fakes - uma delas é a de Marianne Faithful e Anita Pallenberg gravando vocais, uma vez que Jagger, Richards e Miller - e a música já ajudou na polêmica, pois daí vieram teorias de que eles tinham ligação com o Belzebu, algo hoje não tão discutido; em seguida, temos aqui No Expectations, com uma vibe toda carregada de blues - aquilo tão cobrado pelos fãs, um blues verdadeiro, e que soa como homenagem a Robert Johnson (1911?-1938) um dos nomes que expandiu o gênero, e a letra trata da degradação e ausência questionável através dessa perspectiva na jornada espiritual de dentro da alma do artista, para ser mais preciso; depois disso nós temos aqui uma canção country com atitude de blues, e Dear Doctor na qual traz a história de um jovem abandonado no dia de seu casamento em um típico estilo de comédia country dando o ar da graça com Jones puxando solos na harmônica (gaita), fazendo seu papel de multi-instrumentista aqui; mais adiante, a banda ainda desfila um punhado de canções que parecem releituras de temas de folk e country dos anos 30, 40 e 50, uma delas é Parachute Woman, uma música bem suja estilo Muddy Waters, ídolo de Jagger e Richards, com insinuações sexuais não tão sutis retumbadas pelo primeiro; indo direto numa sonoridade bem elétrica e lembra a atmosfera dylanesca de sua fase elétrica, Jig-Saw Puzzle aproxima um pouco mais desse folk elétrico com o estilo da banda, misturando os dois gêneros citados como podemos ouvir, e a letra traz a observação de um ambiente sombrio e bizarro onde o eu-lírico da canção se vê observado por desajustados e criminosos, com destaque para o slide guitar tocado por Brian Jones aqui, e a levada mais ousada; o próximo tema é um dos grandes destaques do repertório, inspirado no caos que pipocava em 1968 e de forte teor político nos versos, Street Fighting Man apresentava críticas pesadas ao sistema, foi escrita depois que Jagger participou de um ato contra a Guerra do Vietnã em Londres, onde foi reconhecido pelos fãs e imprensa e depois chegou em casa e fez o dever, mas, a polêmica foi bem maior, lançada como single, a música teve seu banimento das rádios, os compactos recolhidos com medo de uma forte repressão influenciada - logo depois, Jagger se tocou que era muito rico demais para tocar em assuntos políticos, a pegada crua e suja roqueira aqui dá o tom que se precisa; na sequência, ainda sobra tempo para a banda gravar ima cover - a única do disco - Prodigal Son é de autoria de um reverendo chamado Robert Wilkens cujo o próprio gravou em 1964, e a releitura dos senhores do rock 'n' roll dá até que uma bela interpretação com uma vibe bem country raiz, o violão reina soberanamente e dá as melodias que colorem a canção; ainda pra não se perder no rumo das canções, a banda segue a desfilar algumas pérolas, esta aqui é um pouco esquecida do repertório, Stray Cats Blues fala de um convite do eu-lírico (Jagger) a uma garota mais jovem oara uma diversão e um trio com sua amiga, nada que apague o brilho do grupo nem musical por aqui, com um instrumental marcante; logo na sequência, Jagger & Richards apresentam mais outra música que parece clássica, Factory Girl é sobre uma garota que vive nos fios da sociedade, que não se importa com as coisas boas, pois são esses tipos de pessoa que veem a beleza em uma vida comum - a levada remete um pouco à música celta e irlandesa, mas focada nos ritmos originários do rock como podemos notar ao longo do disco; o encerramento fica por conta de um tema aonde saúdam a classe operária em Salt of The Earth, aqui cantada por Richards e com a presença do Los Angeles Watts Street Gospel Choir, que abrilhanta e dá um toque bem soul num rock que ajuda a mostrar que a banda ainda se garanta em composições como esta.
Este disco não só ajudou a criar uma nova fase, influenciada pelos discos que Richards comprara nos EUA entre 1964 e 1966, a fazer algo totalmente que mantivesse o primor roqueiro e a originalidade sonora de uma banda inglesa que bebesse da fonte das raízes roqueiras dos EUA, mas também ajudou a construir uma expansão bem maior dos trabalhos deles, que viriam a suceder em Let It Bleed (1969), Sticky Fingers (1971), Exile on Main Street (1972) considerado um dos melhores discos duplos já feitos, e Goats Head Soup (1973) o último produzido por Miller, a partir daí a dupla à frente do comando dos Stones assumiria o papel da produção dos LPs sob o pseudônimo de Glimmer Twins, que virou uma marca registrada de Jagger & Richards até hoje. Em 2003, a banda viu seu disco entrar na lista dos 500 Maiores Álbuns de Todos os Tempos da revista Rolling Stone figurando no 58° lugar enquanto a VH1 fez uma lista o destacando no 67ª posição, além de estar nos 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer, junto de outros trabalhos da banda. 50 anos depois, as pedras rolam em qualquer canto do planeta, inclusive no "banquete dos mendigos".
Set do disco:
1 - Sympathy For The Devil (Mick Jagger/Keith Richards)
2 - No Expectations (Mick Jagger/Keith Richards)
3 - Dear Doctor (Mick Jagger/Keith Richards)
4 - Parachute Woman (Mick Jagger/Keith Richards)
5 - Jig-Saw Puzzle (Mick Jagger/Keith Richards)
6 - Street Fighting Man (Mick Jagger/Keith Richards)
7 - Prodigal Son (Robert Wilkens)
8 - Stray Cats Blues (Mick Jagger/Keith Richards)
9 - Factory Girl (Mick Jagger/Keith Richards)
10 - Salt of The Earth (Mick Jagger/Keith Richards)

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