Um disco indispensável: Martinho da Vila - Martinho da Vila (RCA Victor, 1969)

Chegar às oito décadas de vida não é fácil, mas também não é difícil. Imagine para um sujeito vindo de Duas Barras, interior fluminense, cujos pais eram lavradores em uma fazenda chamada Cedro Grande, criado na serra dos Preto-Forros, o pequeno Martinho José Ferreira, nascido em 12 de fevereiro de 1938, nem sabia as voltas que o mundo ia dar em favor dele. Aos quatro anos, mudou-se com os pais para o Rio de Janeiro, e dali abraçou um lar de onde não saiu até hoje. Começou a trabalhar como auxiliar químico industrial, uma função que aprendeu em um curso intensivo do Senai, mas depois veio a servir o Exército como sargento burocrata, o 3º Sargento Ferreira, e começou na Escola de Instrução Especializada, vindo a trabalhar como escrevente e contador até o início dos anos 70, quando já estava vivendo outro trabalho, que renderia muitos frutos e popularidade até hoje: a de cantor e compositor. Desde os anos 1950, sempre esteve envolvido nos manifestos de samba, promovendo as origens da cultura afro-brasileira através de suas canções, e sua jornada iniciou-se lá no bloco Aprendizes da Boca do Mato, e em 1965, foi convidado para integrar a ala de compositores da escola de samba Vila Isabel, uma vez que estava sendo convidado para fazer parte da ala de outra escola de samba, a Império Serrano. Mas foi na escola do célebre bairro de Noel Rosa, um dos maiores compositores brasileiros que já existiu em toda a história da MPB, e que viveu precocemente, mas deixando muitas composições sendo reverenciadas, e Martinho também fez sua história como compositor, imortalizada ano após ano. Ele reestruturou dentro dos sambas da Vila a forma de compor, com a introdução de letras e melodias bem mais suaves, tornando-se uma das célebres figuras a se destacar nesse âmbito de composição, algo respeitado. Na época, nomes grandiosos do samba e referências clássicas como Ataulfo Alves, Donga, João da Bahiana, Cartola, Nelson Cavaquinho, o gaúcho Lupicínio Rodrigues e o paulista Adoniran Barbosa começaram a acabar saindo do ostracismo quando nomes da bossa nova ou vindo após dela, como Nara Leão, vieram a redescobri-los e gravarem diversos temas, depois disso uma nova safra de representantes da ala que manteve o legado da velha guarda mais viva do que nunca no cenário brasileiro: dentre eles, um jovem chamado Paulo César Baptista de Faria que se tornou Paulinho da Viola, portelense ilustre e vascaíno como Martinho, além de Beth Carvalho, alguns compositores que também tinham vozes, como Candeia, Xangô da Mangueira, Clara Nunes,  e grupos como Os Originais do Samba, que apresentavam um jovem Antônio Carlos no reco-reco, que seria um certo trapalhão aí que marcou a história do humor brasileiro, tá ligadis né? E quem diria também que o então sargento Ferreira se tornaria Martinho da Vila da noite pro dia, começou a se destacar entre os compositores de carnaval, quando em 1967, escreveu Carnaval de Ilusões, e depois veio a brincar com um fato ocorrido na época da apresentação do enredo: que o pessoal não havia entendido aquele jeito de fazer enredo, e que Chico Buarque de Hollanda teria dormido no meio do enredo e também não havia entendido o samba daquele bibarrense feito com Gemeu. Mas tudo iria mudar mais adiante.
Foi preciso que, naquele mesmo 1967 acontecesse a edição lendária do III Festival da Música Popular Brasileira, organizada pela TV Record, a máquina de espetáculos musicais à época, e tendo boa parte dos figurões da música, da bossa ao samba e do iêiêiê ao romântico, todos eles estavam participando e competindo pela audiência nos horários, e Martinho ainda era apenas um sargento compositor de enredos, e foi lançar ali seu tema Menina Moça ali nas eliminatórias, de um festival que ajudou a germinar a semente do tropicalismo através de baianos como Gilberto Gil com sua Domingo no Parque, e também Caetano Veloso bravando Alegria, Alegria para o delírio das multidões conservadoras e defensoras da MPB tradicional que abominavam o rock dentro daquele tipo de ambiente, que tinha um pouco do festival de música de Sanremo, na Itália. Embora o próprio Chico dorminhoco tenha competido com Roda-Viva, que se tornou um hino de resistência naqueles anos pesados do regime/ditadura militar, e tenha levado um 3º lugar merecidíssimo, o que levou o ouro foi Edu Lobo com um tema que trazia um pouco da sonoridade caipira em Ponteio, num dueto com Marília Medalha e o acompanhamento dos grupos Momento Quatro e da base musical do Quarteto Novo, um grupo que trazia Heraldo do Monte, Théo de Barros, Airto Moreira e um flautista albino chamado Hermeto Pascoal, foram o tema que rendeu o prêmio máximo daquele festival inesquecível e marcante. Martinho não levou nada, mas seu reconhecimento estava garantido e iniciara sua caminhada no mundo fonográfico com Nem Todo Crioulo é Doido, um disco que dividia ao lado de nomes como Zuzuca, sua irmã Anália, Antônio Grande e também Darcy da Mangueira, outro nome célebre do samba nos anos 60. Apesar de ter apenas quatro músicas com sua voz, Martinho estava preparado para voos maiores e que projetariam ele de cara no cenário nacional e na história do samba. Após participar de mais um festival da Record no ano seguinte, aonde neste lançou o tema Casa de Bamba acompanhado pelos Originais, e de ter lançado mais outro samba-enredo de peso pela escola, Quatro Séculos de Modas e Costumes, dando à escola o 8º lugar naquele Carnaval de 1968, agora o sambista de Duas Barras partiria para o seu primeiro disco de verdade, após um coletivo onde dividia com outros nomes, e por uma grande gravadora: a RCA Victor, que tinha um elenco de botar respeito, que ia desde figurões como Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Angela Maria e o rei do baião Luiz Gonzaga, até nomes mais jovens da época, como o conjunto Os Incríveis, os argentinos Beat Boys, a cantora Rosemary e Wilson Miranda, agora também um artista naquele selo que consagrara mundialmente Elvis Presley como o maior artista do selo naqueles tempos. O seu álbum não leva o nome, a não ser apenas do próprio cantor, e traz na capa um close do rosto sorridente dele com um bigodinho, chapéu e uma blusa vermelha, além de uma apresentação logo na primeira faixa, um medley de sambas da Vila Isabel: começando por Boa Noite, antecedido por um aviso "eu não nasci baiano, nasci no carnaval de 38 em Duas Barras", e mais adiantes temos o clamor de "Boa noite Vila Isabel..." e em seguida canta Carnaval de Ilusões, um dos citados sambas-enredo composto por ele em 67 e ainda zomba dos jurados que não entenderam (inclusive o próprio Chico), com uma crítica em Caramba pra complementar, com uma batida bem de carnaval e o coro mandando ver e muito acompanhando o sambista; para o próximo tema, outro samba-enredo que também já foi falado linhas antes e é Quatro Séculos de Moda e Costumes, e aqui apresenta a história da evolução do comportamento e dos nossos estilos de vestir, e a diversificação da raça brasileira que existe e que se expandiu através dos tempos e segue aí; já na sequência, um dos seus primeiros grandes sucessos, estamos falando de O Pequeno Burguês, que traz a narrativa de um eu-lírico que não tem como pagar uma faculdade particular, livros caros, mas que consegue se formar - porém, não teve como participar do ato e o diretor não quis ceder o papel, num tom meio de desabafo, ele canta sua triste jornada universitária que emocionou muitos; mais adiante, o sambista bibarrense traz aqui outro tema que embalou a Vila e os carnavais, estamos falando de Iaiá do Cais Dourado, trazendo um pouco a cultura negra e a Bahia negra em geral, com suas festas no alto do Gantois, embalando o repertório do disco; e achou que faltavam mais hits para o seu disco ficar mais recheado? Achou errado! Temos aqui um hit nascido nos festivais, lá em 1968, estamos falando de Casa de Bamba, um samba bem alegre contando uma relação "tapas e beijos" de uma família, brigam, xingam, fazem até macumba e não ligam pra fofoqueiros, porém há um lado festivo nos versos "mas se tem alguém cantando, todo mundo, todo mundo canta, todo mundo dança, todo mundo samba..." pra fechar a canção num tom bem alegre e familiar que existe de costumes nos temas do cantor; em seguida, o tema que apresenta uma suavidade nos arranjos e na voz é Amor, Pra Que Nasceu - um tema mais triste, e com uma dose de melancolia profunda até no arranjo que traz um violão bem suave inclusive; outro grande tema de destaque no repertório do disco é a clássica Quem é do Mar Não Enjoa, um samba bem a cara do gênero, uma percussão tradicional, aonde ele se apresenta em alguns versos e prevê uma chuva cair e que o samba não vai parar, mostrando a resistência até em mau tempo, com um cavaquinho bem dedilhado no decorrer da faixa; a próxima música que vem a seguir é um tema onde Martinho incentiva uma mulher preta a encontrar um branco e também uma branca namorar um preto para formar famílias miscigenadas, logo um dos seus melhores temas presentes aqui: Brasil Mulato, que é nada mais do que uma exaltação às misturas de cores, formando apenas uma única raça, e celebramos assim essa etnia maravilhosa que temos aqui no nosso país, que é totalmente única e de identidade própria, claro; para continuar esse bailado, o disco conta ainda com Tom Maior, um sambinha mais suave, e que conta a história de um filho prestes a nascer, e a alegria do pai que deseja ao filho "a felicidade de ver um Brasil melhor" bem em tempos de governo militar, com perseguições políticas, prisões, torturas entre outros absurdos daqueles tenebrosos anos de chumbo; já na canção Pra Que Dinheiro, aquela prova concreta de que amor não se compra com dinheiro, e mesmo o cara sendo humilde, o preconceito ainda prevalecia com sambistas, e provando que não importa o seu grau de vida social, não existe limites para uma relação e isso nos importa mesmo; uma batida de samba puxado pra ares carnavalescos dá a deixa para um próximo medley, e com uma cuíca chorona que vamos pegando o embalo de Parei na Sua, sem perder o grande esforço de conseguir nos agradar, assim como Nhém, Nhém, Nhém - outro samba de primeira de parceria com Cabana que estampa e fecha essa dobradinha de sambas bons aqui; para fechar o disco, temos um cavaco solando que dá a deixa para um samba mais suave e com toques românticos na essência poético-musical que rondam em Grande Amor, aonde o cantor decide expor que "existe melancolia, tristeza e alegria", e aqui ele manda a verdade sobre os amores que vivemos, embora há muito mais do que se imagina, fecha com tudo aqui esse seu primeiro grande álbum que ajudou a catapultá-lo como ídolo nacional do samba.
Set do disco:
1 - Boa Noite(Martinho da Vila)/Carnaval de Ilusões (Martinho da Vila/Gemeu)/Caramba! (Martinho da Vila) 
2 - Quatro Séculos de Moda e Costumes (Martinho da Vila)
3 - O Pequeno Burguês (Martinho da Vila)
4 - Iáiá do Cais Dourado (Martinho da Vila/Rodolfo)
5 - Casa de Bamba (Martinho da Vila)
6 - Amor, Pra Que Nasceu (Martinho da Vila)
7 - Quem é do Mar Não Enjoa (Martinho da Vila)
8 - Brasil Mulato (Martinho da Vila)
9 - Tom Maior (Martinho da Vila)
10 - Pra Que Dinheiro (Martinho da Vila)
11 - Parei na Sua (Martinho da Vila)/Nhém, Nhém, Nhém (Martinho da Vila/Cabana)
12 - Grande Amor (Martinho da Vila)

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