Um disco indispensável: A Tábua de Esmeralda - Jorge Ben (Philips/CBD Phonogram, 1974)

O que esperar de um disco todo voltado à magia, alquimia e misticismo com personagens da História Antiga lançado em um período bem complicado do nosso país, cheio de absurdos acontecendo enquanto artistas buscavam na música uma forma discreta de se protestar? Pois é, muita coisa é que não é mesmo, mas, se eu te disser que esse disco que traz canções e é conteúdo de um certo Jorge Ben? Que tal? Bom, pouca gente sabia que ele era um estudioso da alquimia e dos ensinamentos herméticos  - pausa para ensinar aos jovens dinâmicos de hoje sobre o que é hermetismo. Hermetismo é nada mais, nada menos do que um conjunto de doutrinas e pensamentos astrológicos, alquímicos, mágicos e filosóficos atribuídos pelos autores greco-romanos à Hermes Trismegisto, um faraó egípcio lá de milênios atrás, bem antes de Cristo, e seus ensinamentos influenciaram diversos teólogos, alquimisitas, filósofos dentre outros nos períodos da Idade Média, também no Renascentismo (século XV-XVI) e também o Iluminismo (séculos XVII e XVIII), e que tem uma legião de interessados e estudiosos sobre isto até nos tempos atuais. Pronto. Agora que você já sabe bem o que significa, nem precisa mais ir jogar no Google pra saber sobre do que se trata, mas ainda vamos explicar algumas coisas, porque nosso blog também é cultura. Agora, vendo o momento em que o compositor carioca estava, fazendo disco bom atrás de disco bom, e lotando shows mundo afora, o que é bom por sinal. Com o tremendo estouro do seu samba psicodélico em Jorge Ben (1969), aonde ele apresentou seu conjunto de apoio - o Trio Mocotó -, os seus sucessores mostraram que o Babulina do Rio Comprido não perdeu a essência: e Força Bruta (1970), Negro é Lindo (1971) e por final Ben (1972), que traziam o suingue mais colorido da MPB de sempre. Na época, o músico estava afim de experimentar mesmo, fazer muito diferente do samba que já estava acostumado, e seguindo o embalo de Tim Maia - seu velho amigo - incrementou em suas músicas elementos do rhythm and blues, do rock e também do pop daquele momento, em especial. Naquela época, discutir sobre misticismo e filosofias diferentes era quase uma afronta ao caos que vivenciava o Brasil em época de regime/ditadura militar, que tentava manter com seu conservadorismo católico, a forte presença da linguagem cristã no governo. Óbvio que, isso começou a ficar diferente quando Raul Seixas começou a falar sobre ocultismo e mostrar sua influência de Aleister Crowley, conhecido como o bruxo, a besta, dentro de suas canções feitas com Paulo Coelho bem antes de virar escritor best-seller, e a Sociedade Alternativa - entidade que ele criaram - estava ficando maior que os militares não imaginavam o que ia render e deu a eles voz de prisão e exílio, partindo para o território ianque logo após a gravação de Gita, seu então novo disco. O gorducho mais amado do soul, encontrou o livro Universo em Desencanto na casa de seu amigo Tibério Gaspar e decidiu se livrar de tudo: desde as drogas (não é mentira) até a sua vasta coleção de discos que ficou com seu sobrinho Eduardo, mais tarde vindo a se tornar Ed Motta. Tim, virou um pregador da palavra da Cultura Racional, gravou discos que são considerados raridades, porém, após desentendimentos com Manoel Jacinto Coelho (o dono da seita), voltou a ser o que era: o doidão aventureiro, e ficou por anos evitando falar da fase Racional até morrer em março de 1998. E Jorge, ao contrário do baiano, influenciados por filosofias que envolviam magia negra ou coisas do tipo, seguiu o seu lado alquimista, e os três tinham algo em comum: buscarem algo sobre a verdade universal, cada um com suas crenças, mesmo que os militares ficassem estranhando com aqueles versos.
O compositor em ação preparando uma de suas alquimias sonoras
em palco no lendário festival Phono 73
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Primeiro, o músico teve de chegar aos executivos da Phonogram (atual Universal Music) e mostrar a sua proposta, o que sempre complica um projeto desses, chegando lá, foi dizendo que estava afim de fazer um disco todo ambientado nessa jornada da filosofia hermética, sobre alquimia e ouviu dos executivos que não ia haver interesse nem da crítica e nem do público por este disco. Após tanta insistência, o então diretor André Midani decide aprovar o projeto de Jorge Ben que se resultaria no seu décimo-primeiro álbum, intitulado A Tábua de Esmeralda, editado em 1974 e com Paulinho Tapajós na produção como em vários seus discos desta fase dos 70 na gravadora. O resultado que vocês ouvirão neste disco é muito mais que MPB: é samba, rock, soul, funk, tudo isso numa salada musical que chega a ser visto como o Sgt. Pepper's da sua carreira e não sou apenas eu que falo isso. Já começamos bem o disco, nos primeiros segundos, nós temos a voz do carioca dizendo "senta, não... então tem que dançar dançando" dando ponto de partida para Os Alquimistas Estão Chegando Os Alquimistas, que traz um pouco do perfil desses sujeitos - discretos e silenciosos, pacientes, assíduos e perseverantes, e com uma pegada de samba bem funkeado marcado pelo violão mágico cheio de suingue como sempre; a sua próxima canção que vêm é O Homem da Gravata Florida (A Gravata Florida de Paracelso), e que, sim, tem tudo a ver com o ambiente figurado neste disco, pois seu personagem é Paracelso - um médico e teórico, além de ter sido um dos maiores alquimistas, mas espera aí: e a gravata florida? Na verdade, era um echarpe com estampas florais, e aí Jorge decidiu viajar na ideia e nos fez entrar nessa brincadeira movida por uma bossa mais psicodélica que ambienta o tema; no próximo tema, existe várias referências sobre existencialismo e alquimia, começa com sons de sintetizadores e uma voz do Jorge em eco, dando a deixa para a suavidade de Errare Humanum Est, baseado não somente no conceito de transcendência e também em um livro chamado Eram os Deuses Astronautas?, escrito em 1968 pelo suíço Erich Van Däniken questionando sobre a existência deuses interplanetários e universos paralelos, bem a cara do que Bruno Borges (aquele do Acre, pessoal) e um dos melhores temas do disco, ao nosso ouvir; fugindo um pouco da estética, aqui ouvimos no começo o soulman de zueira puxando um "Pedrinho vai ser papai" e tocando adiante Menina Mulher da Pele Preta, onde exalta nos versos, puramente, a beleza e a simpatia da mulher negra, numa pegada de sambinha empolgante bom demais; outro tema seguinte que não tem muito a ver com a estética, ou que tenha um tanto, é Eu Vou Torcer - um hino pacificsta cheio de mensagens positivas, bem no clima good vibes que este disco nos oferece e citando nomes como Gato Barbieri, o Santo Tomás de Aquino e o Flamengo, time do qual o cantor é torcedor; na sequência, na parte fora da temática (novamente), temos aqui uma das tantas musas que renderam canções ao longo de sua trajetória, e uma declaração de amor do cantor em Magnólia, com um belo arranjo orquestral que contempla todo o primor da canção; e abrindo o lado B, mais romântico do que simplesmente místico, o alquimista do samba rock desfila belas canções cheias de originalidade poética, no caso de Minha Teimosia, Uma Arma pra Te Conquistar, cujo "lalalala..." chega a lembrar um pouco Lay Lady Lay, do próprio Bob Dylan, e que traz essa pegada bem de sambinha que nos fascina e se destaca muito no repertório do álbum; mais adiante, o compositor carioca faz uma ode a um dos heróis do combate à escravidão no país, e uma exaltação aos irmãos africanos em sua Zumbi, aonde Jorge exalta a sua bravura "Zumbi é o senhor das guerras! Zumbi é o senhor das demandas! Quando Zumbi chega é Zumbi é quem manda!" como se fosse admirar a grandiosidade dele nesses simples versos presentes na canção; logo na música seguinte, podemos ver aqui o samba cheio de groove e um pouco de inglês em Brother, aonde Ben aparece cantando em inglês hilariante, e que até encanta a gente, num momento ele reverencia Jesus Cristo como seu senhor e seu amigo no refrão, quase um hino gospel para ser preciso; para este disco, a ideia foi tão além que fora usadas gravuras de Nicolas Flamel (1330-1418) - um alquimista que escreveu alguns livros e hermético estudioso - para a capa deste álbum, e o próprio Flamel vira personagem da canção a seguir: O Namorado da Viúva, que foi inspirado numa história real do alquimista, que namorava uma mulher muito rica chamada Pernelle, que havia sido viúva por 3 vezes (WHATAFUCK?!) bem antes dele, e que os homens tinham medo de se casar com ela, a história contada por Jorge também nos soa interessante e sempre cheia de suingue como sempre, óbvio; porém, o ápice do disco onde a temática permanece e ganha a sua forma áurea no disco está mesmo em Hermes Trismegisto e Sua Celestial Tábua de Esmeralda, aonde o rei do samba rock conta um pouco da história deste, que teria escrito a tábua com uma ponta de diamante em uma lâmina de esmeralda, e parte da canção foi adaptada do tratado hermético assinado pelo faraó e traduzido por Fulcanelli, e mostrando a potência do violão executado pelo próprio Jorge, que depois transcendera para a guitarra, evoluindo mais a sua sonoridade com o passar dos anos; o disco têm seu encerramento definitivo com Cinco Minutos (5 Minutos) carregando na poesia um pouco de desesperança e tristeza, e seu timbre vocal fica mais emotivo, e dando o crepúsculo a este clássico que fez muita gente descobrir um pouco mais sobre a alquimia.
Não é à toa que o disco obteve um sucesso grandioso quando foi lançado, em junho de 1974, porém, houve quem discordasse de todo aquele assunto envolvendo alquimia, Hermes Trismegisto e filosofia universal, nesse caso foi Flávio Cavalcanti, que quebrou o disco - como faz com qualquer artista - em um programa onde fazia na TV Tupi naqueles tempos. Porém, se tornou uma obra indispensável da música popular brasileira e temas deste disco vieram a ser regravados por um sem-número de gente nos últimos anos, como Los Sebozos Postizos, Fernanda Abreu, Marisa Monte, Gal Costa, Rodrigo AmaranteZé Ramalho, Cidade Negra e até ser sampleada pelos Black Eyed Peas, todos estes que beberam na fonte deste cara e descobriram muito mais do que apenas os ensinamentos da Tábua que Hermes escrevera milhares de anos atrás. Em 2007, para mostrar que seu disco tinha sim uma grande importância dentro do cenário musical brasileiro, a revista Rolling Stone - mais precisamente sua filial brasileira - nomeou na lista dos 100 Maiores Álbuns da Música Popular Brasileira dando o merecido 6º lugar, destacando sua alquimia poético-musical que atravessou gerações e segue a atravessar até hoje. Para complementar, ainda na virada da década, houve um pessoal que pediu através de um abaixo-assinado na internet, um show onde ele tocasse o repertório do disco na íntegra, que ainda estamos esperando ver esse show acontecer, mas enquanto não se realiza, a gente fica na torcida encantados ao som do original lá de 43 anos atrás...
Set do disco:
1 - Os Alquimistas Estão Chegando Os Alquimistas (Jorge Ben)
2 - O Homem da Gravata Florida (A Gravata Florida de Paracelso) (Jorge Ben)
3 - Errare Humanum Est (Jorge Ben)
4 - Menina Mulher da Pele Preta (Jorge Ben)
5 - Eu Vou Torcer (Jorge Ben)
6 - Magnólia (Jorge Ben)
7 - Minha Teimosia, Uma Arma pra Te Conquistar (Jorge Ben)
8 - Zumbi (Jorge Ben)
9 - Brother (Jorge Ben)
10 - O Namorado da Viúva (Jorge Ben)
11 - Hermes Trismegisto e Sua Celestial Tábua de Esmeralda (Tratado Hermético escrito pelo faraó Hermes Trismegisto e traduzido por Fulcanelli/adaptação de Jorge Ben)
12 -  Cinco Minutos (5 Minutos) (Jorge Ben)

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