Um disco indispensável: Please Please Me - The Beatles (Parlophone, 1963)

Numa época muito diferente, ainda havia um pouco de neutralidade política, a música que estava mais em voga era o twist e a poesia beatnik ganhava novos fãs, o Brasil conseguiu invadir as estruturas do Carnegie Hall através de Tom Jobim, João Gilberto, Sérgio Mendes entre outros causando o fenômeno bossa nova para os americanos enquanto a Guerra Fria ainda estava no seu ápice, e os EUA tendo invadido o Vietnã na época. Porém, o que rolava em Londres, capital britânica, era o crescimento artístico de um conjunto de quatro garotos que perambulavam pela cena roqueira de lá com a seguinte estética: moços bonitos, bem comportados e irreverentes, além de tocarem muito bem, presenciavam muito nas rádios e nos programas de TV de terras inglesas usando ternos bem ajeitados ainda que demoraria meses para estourarem nas paradas europeias e americanas. Esses rapazes oriundos de Liverpool, cidade da zona portuária situada no condado de Merseyside que tinham como paixão a música e que viviam dela, cada um vindo de áreas diferentes: um nasceu sem o pai muito presente e perdeu a mãe ainda jovem, outro por pais separados, um perdeu a mãe para um câncer e o outro teve sua família toda unida durante sempre, esses eram John Winston Lennon e Richard Starkey (1940), James Paul McCartney (1942) e George Harrison (1943), o quarteto que fez a diferença na história da música no século XX e eternos ainda para muita gente. Mas para começo de conversa, vamos avançando a história lá pela segunda metade da década de 1950: quando John Lennon tinha um conjunto chamado The Quarrymen e estudava na Liverpool School of Arts quando numa quermesse da cidade, um jovem se impressiona com Lennon cantando e tocando e procurou a banda depois, esse seria o canhoto Paul McCartney que tocou uma música de Eddie Cochran e entraria para a banda, depois disso se juntaria um rapaz mais novo que John e Paul, que era fã de Carl Perkins e tinha só 14 anos, e foi só Lennon ver junto de Macca o garoto que tocava bem guitarra e esse era George Harrison: pronto, formou-se Long John and The Silver Beetles, a partir dali em diante eles seriam os pioneiros na cena roqueira de Liverpool, ainda que no mesmo período o jovem Starkey que viria a se chamar Ringo Starr, tocava bateria na banda de Rory Storm, crooner e um dos lendários rockstars da cena na cidade, com quem os três já se esbarravam muito antes de iniciarem uma breve epopeia que duraria menos de dez anos.
Enquanto isso, os Silver Beetles (que tirariam o EE e converteriam para EA no nome) ganhavam um corpo de base, o estudante de artes e baixista Stuart Sutcliffe e o baterista Pete Best entraram para a banda fazendo com que a banda ganhase mais ritmos e mais flexibilidade sonora, acabaram recebendo uma proposta para tocarem em Hamburgo, a famosa cidade alemã do pecado aonde houve muita diversão e muitos prejuízos: os cinco tocavam muito bêbados e acabaram se envolvendo em problemas no qual gerou a deportação de George e de Paul brevemente e depois John e Best voltariam para a Inglaterra, só Stuart decidiu morar em Hamburgo tentando a vida como artista ao lado da namorada Astrid, com quem viveu até que acabasse morrendo anos depois. A banda segue como quarteto fazendo apresentações em lugares como o The Cavern Club, por onde tocaram 292 vezes e tiveram o prazer de serem descobertos por um empresário dono de uma loja de discos chamada NEMS chamado Brian Epstein e esse cara foi quem deu a luz para o sucesso da banda, logo de cara ele foi mudando a imagem deles e tentando correr atrás de um contrato para que a banda assinasse e os rendesse uma boa garantia econômica e um futuro no mundo da música, o que era impossível demais. O teste na Decca não foi o dos melhores, o executivo não botou tanta fé e nem o próprio Epstein conseguia respostas justas e certas de gravadoras e foi só a EMI bater o martelo que a banda começou a decolar de agora em diante, porém eles precisavam trocar de baterista e aí que entra Ringo Starr, o que deixou fãs irritadas no Cavern pela troca de baterista, muitas queriam Pete novamente mas aí as coisas mudariam aos poucos. Contudo, a banda só precisava entrar em estúdio e fazer o que sabem fazer de melhor: música e sem perfeccionismos, e quem se responsabilizou pelos trabalhos da banda foi o regente de orquestras em estúdio e produtor musical do clássico Gong Show, o futuro parceiro George Martin (falecido recentemente). Mas, como é comum saber que nem tudo são flores e para as primeiras gravações Ringo ficou meio de fora no comando das baquetas, e sendo convocado por Martin um rapaz chamado Andy White para gravar o primeiro material definitivo da banda na Parlophone, intitulado Love Me Do, lançada originalmente em outubro de 1962 como compacto tendo no lado B a doce e suave P.S. I Love You, mesmo que a primeira faixa que alcançou a 17ª posição das paradas, já sendo uma grande conquista para a banda, mas ainda precisavam de mais esforço e já com Ringo na bateria de vez, gravaram mais outro compacto, tendo Ask Me Why e também Please Please Me, que acabaram virando mania nas paradas britânicas também mas só com um álbum completo que veio a se tornar o tiro certeiro na carreira deles e esse disco ganhou vida apenas em 22 de março de 1963, um mês e dez dias depois de ter sido gravado Please Please Me, produzido por George Martin e gravado em apenas um dia - 11 de fevereiro e movido por um orçamento de £400 -, como se fosse totalmente ao vivo, tornando-se de cara um sucesso.
McCartney, Harrison, Lennon e Starr em 1963: com apenas um disco
na praça, eles já iniciariam a conquista de um público universal
através de "Please Please Me" o primeiro álbum da banda e também das
músicas que eram lançadas na época, mesmo não estando em discos
O disco além de ser o cartão de visitas da banda, também apresentou uma forma inovadora de trabalhar com o rock em cima de bases jazzísticas, de blues e também de pop da época, tornando o grupo em um dos principais fenômenos musicais da época já durante os primeiros meses, ainda que na Inglaterra e no resto do território europeu até fevereiro do ano seguinte, quando iniciariam a conquista da América definitivamente. A faixa que abre o disco é I Saw Her Standing There, um twist bem dançante e na qual já notamos o grande potencial da voz de Paul em uma história sobre uma garota que tinha 17 anos e todos aqueles dramas de adolescente apaixonado numa festa que você pode imaginar; já mais adiante em Misery, aqui temos um John reclamando sobre o mundo andar tratando ele mal demais e assume ser o tipo de cara que nunca chorou demais, mas que sabe voltar atrás quando fala sobre seu passado, com um tom mais gritante que muito se foi utilizado por John ao longo da carreira; já em Anna (Go to Him), o tom baladista ganha visceralidade e destaque e os coros tradicionais dão uma prova que Arthur Alexander aprovaria esta versão de cara, sendo também uma que não faz perder o ritmo do disco; já a faixa Chains é uma adaptação típica da banda naqueles tempos para uma música da dupla Gerry Goffin e Carole King, os famosos compositores do Brill Bulding tiveram uma de suas canções traduzidas musicalmente pelos quatro rapazes britânicos com solo de gaita e a pegada mais moderninha do rock na levada; enquanto a agitadaça Boys ganhava a voz solo do baterista Ringo Starr, seguindo um pouco mais a onda do surf-rock no ritmo da música e dava ao próprio ex-integrante da banda de Rory Storm um pouco mais de presença como vocal solo, algo até muito raro nos discos da banda o próprio cantar em mais de uma música a não ser nos coros de qualquer canção aí; enquanto isso, voltamos um pouco a 1962 e aos primeiros materiais da banda com Martin produzindo, aqui a música Ask Me Why, ainda com um ritmo mais marcado pelas baquetas e pela percussão, também soa como as típicas canções sobre perguntar se ama a pessoa de verdade, deixando assim uma lacuna preenchida para o disco; já outra faixa ainda feita naquela época, logo a Please Please Me tinha muito inspiração de cantores como o próprio Buddy Holly e até de Roy Orbison nos vocais, sendo um grande destaque pela pegada totalmente bem marcada e a sequência melódica, algo totalmente simples pra uma música destes tempos; já em Love Me Do, que abre o lado B do disco e que se tornou o primeiro e maior sucesso da banda, marcado pela voz de Paul, a batida de Andy White (lembre-se que Ringo não gravou a música, óbvio) que move a canção em si e John puxando solos de gaita ao longo desta; já a próxima música, vindo da mesma safra da anterior, a bolerock proto-acústica e suave P.S. I Love You tem muito do que haviam as canções românticas da época, mas também carrega um pouco mais do perfeccionismo típico das músicas, com um elemento do  que Martin acrescentaria muito em canções da banda; já a outra balada deste disco, Baby It's You, feita pelo maestro Burt Bacharach, ganha um tom similar ao de outras baladas, mas que não perdem o primor para os ouvidos que curtem o quarteto de Liverpool sem dúvidas; e nesta faixa aqui temos a estreia de George Harrison como cantor que não nos decepciona total em Do You Know to Want a Secret?, não faz feio total e já acaba agradando a todos apesar de ganhar seu espaço neste disco em menos de dois minutos, já é um grande motivo para entender qual é o papel dele na banda mesmo assim; enquanto isso, seguimos com A Taste of Honey, uma valsa-rock que soa ao mesmo tempo embalante e um pouquinho cansativa, mas que ainda tenha gás de sobra ao longo deste disco, não passa totalmente batido aqui não; enquanto a banda ressucita o ritmo e o peso em There's a Place, vemos que Lennon e Paul formavam uma das mais brilhantes dupla no rock, formando duas perfeitas harmonias nos vocais e a base soa simples como nunca e deixa o som rolando numa boa, completamente do agrado de muitos fãs; o final do disco fica por conta de Twist And Shout, um dos principais temas que se destacam muito neste disco e o principal hit gravado antes pelos Top Notes e pelos Isley Brothes, e é claro pois foi deste disco que nós conhecemos a música e a última música a ter sido gravada para o disco, pois quando já estavam nas últimas horas de sessão, John Lennon já estava com a voz quase desgastada e gripado e por isso o "shake shake" que nós ouvimos na canção, fica uma breve explicação.
Na capa, clicada por Angus McBean, você pode notar que a banda está em um momento distraído e sorrindo como estivessem se divertindo no topo de um prédio, logo a sede da EMI na Manchester Square, em Londres porém a outra opção para a capa seria uma foto da banda no zoológico londrino, Martin achou ótima a ideia mas não rendeu muito. O disco fez tremendo sucesso na época, mesmo que até aquela época somente no Velho Continente ainda e com a versão estéreo lançada em abril, o que também levou a banda iniciar uma grande turnê que durou até que a banda entrasse novamente aos poucos nos estúdios Abbey Road e com Martin na produção e concebendo os arranjos das músicas com a banda, sendo algo mais para criação coletiva e que veio a originar-se o clássico With The Beatles, lançado em novembro e sendo um presente de Natal para os fãs na época, já antecipando de cara o furacão britânico que invadiria os EUA por longos meses também. O disco figura na 39ª posição dos 500 Maiores Álbuns de Todos os Tempos (sim, a mesma lista da Rolling Stone de sempre, tem esse disco) e em várias outras listas que você pode imaginar, sendo prova de que este disco foi importantíssimo para que aqueles quatro músicos de Liverpool, o que acabou iniciando um novo momento para a história do rock and roll e também da música no século XX, definitivamente.
Set do disco:
1 - I Saw Her Standing There (John Lennon/Paul McCartney)
2 - Misery (John Lennon/Paul McCartney)
3 - Anna (Go to Him) (Arthur Alexander)
4 - Chains  (Gerry Goffin/Carole King)
5 - Boys (Wes Farrell/Luther Dixon)
6 - Ask Me Why (John Lennon/Paul McCartney)
7 - Please Please Me (John Lennon/Paul McCartney)
8 - Love Me Do (John Lennon/Paul McCartney)
9 - P.S. I Love You (John Lennon/Paul McCartney)
10 - Baby It's You (Mack David/Barney Williams/Burt Bacharach)
11 - Do You Know to Want a Secret? (John Lennon/Paul McCartney) 
12 - A Taste of Honey (Bobby Scott/Ric Marlow)
13 - There's a Place (John Lennon/Paul McCartney)
14 - Twist and Shout (Phil Medley/Bert Russell)

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