Um disco indispensável: Tropicália Ou Panis Et Circencis - Vários Artistas (Philips/CBD, 1968)

A geração psicodélica estava com tudo mesmo no final da década de 1960, além dos movimentos pelos direitos iguais, seja nos direitos dos negros e até mesmo os movimentos de liberdade de expressão estavam agitando de vez o cenário político-social mundialmente. O ano de 1968 não poderia ser outro, com a expansão dos movimentos de contracultura e também ganhando um papel forte outro tipo de fazer música, o Brasil acabaria ganhando um representante mais do que especial nesse cenário e esse representante era o Tropicalismo. Mas, afinal, como o Tropicalismo surgiu mesmo? Ah sim, o movimento tropicalista, que é um derivado da efeverscência cultural surgida naqueles tempos entre 1966 e 1967, desde a poesia concreta dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos, mais a bagunça e a festa que é o programa de Abelardo Barbosa, o eterno Chacrinha, além de exaltar as grandes cantoras de rádio, Carmem Miranda e adotando a linguagem psicodélica de Velvet Underground, The Doors, 13th Floor Elevators, The Jimi Hendrix Experience, Jefferson Airplane, Rolling Stones (que durou somente no disco Their Satanic Majest Request) e o disco Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, dos The Beatles, que acabou sendo quase um responsável pela expansão do movimento flower power, além do movimento Cinema Novo, representado pelo diretor Glauber Rocha, além da influência do Teatro de Arena e do Teatro Oficina e das peças de Zé Celso Martinez Corêa, as artes plásticas de Hélio Oiticica e de Rogério Duarte, e trazendo de volta à tona o astral da bossa nova, do qual a principal referência é João Gilberto, idolatrado por todos que fizeram parte do movimento e seguem reverenciando o deus da bossa nova até hoje. Como esse movimento ganhou expansão? Mais uma pergunta, e uma resposta na manga: São Paulo, dia 21 de outubro do ano 1967, teatro da Record, rua da Consolação: um grande momento aconteceria naquele palco, na final do III Festival de Música Popular Brasileira. Tendo como vencedores Edu Lobo, Marília Medalha e o conjunto Momento Quatro e sua música Ponteio, por outro lado acabou deslanchando a carreira de dois baianos e um grupo que veio  eletrificar a Música Popular Brasileira: estes dois baianos eram Gilberto Gil e Caetano Veloso e o grupo era um trio jovem chamado Os Mutantes. A música Domingo No Parque, composta e interpretada por Gil com a presença dos Mutantes em palco, com uma história bem realista, ares cinematográficos e com uma breve influência de Pet Sounds, dos Beach Boys e de Sgt. Pepper's dos Beatles nos arranjos, mostrou um rumo diferente que a MPB iria dar naqueles tempos. Já em Alegria, Alegria, de Caetano, a coisa era mais rock and roll mesmo, uma poesia baseada na linguagem moderna da poesia, no Cinema Novo e também com base na sonoridade dos Beatles e que chegava a soar um pouco com a Jovem Guarda, fenômeno musical da época. Gil levou o 2º lugar e Caetano ficou com um 4º lugar, até que merecido por sinal, embora Chico Buarque tenha ficado com o 3º em Roda-Viva, e por aí vai a lista. O festival foi o tiro inicial para que fosse apresentado novidades para o cenário musical, que já tentou evitar o estrangeirismo na música, a interferência da sonoridade gringa (leia-se guitarra elétrica) nas músicas brasileiras, e também mostrando que o Brasil precisava mudar no mesmo momento que o mundo estava sofrendo suas mudanças, e naquele mesmo 1967, com Zé Celso estreando a peça O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, o clássico do cinema nacional Terra em Transe - de Glauber Rocha - era estreado, o artista Hélio Oiticica apresentava a sua instalação de nome Tropicália e por estes fatos mais a 3ª edição do Festival da Música Popular Brasileira, ligando estes à origem do movimento tropicalista, que durou pouco mas que ainda deixou rastros importantes para a cultura brasileira até hoje.
Como todo movimento têm um disco que o represente, o tropicalismo precisava de um disco que representasse e fizesse jus ao nome, assim aconteceu em 1968 com o tropicalismo e seu disco-manifesto, intitulado Tropicália Ou Panis Et Circensis, com as gravações realizadas em maio daquele ano nos estúdios Scatena, de propriedade da RGE Discos e com Manoel Barenbein na produção, tendo os arranjos de Júlio Medaglia e do maestro tropicalista Rogério Duprat. Além de Gil e Caetano, quem marcou presença no disco foram Os Mutantes, Gal Costa, Nara Leão e um amigo dos baianos, Tom Zé, que aparecem na capa clicada por Oliver Perroy tendo apenas a ausência de Nara (que aparece em um retrato segurado por Caetano Veloso) e de José Carlos Capinam (que pode ser visto em um retrato segurado por Gil), compositor baiano e que também fez parte desse movimento ao lado de outro poeta, Torquato Neto (ao lado de Gal Costa) em uma linguagem semelhante à da capa de Sgt. Pepper's, . A arte ficou por conta de Rubens Gerchmann, o autor do layout da capa sob a foto de Perroy, tendo na contracapa a foto em preto e branco mais um texto de Caetano Veloso simulando o roteiro de um filme. O disco acabou gerando uma repercussão imensa na mídia, e também mostrando que a partir daquele disco, a música popular brasileira acabaria sendo outra definitivamente, gerando uma breve influência no cenário musical de cara, e sendo um disco cultuado até mesmo fora do Brasil, recebendo elogios e críticas internacionais até mesmo de músicos como o próprio David Byrne, o ex-Talking Heads que flertou com a sonoridade brasileira e os artistas daqui, em especial o próprio Caetano, os Mutantes e Tom Zé, com quem veio a trabalhar em seu selo Luaka Bop anos mais tarde.
Em pé, da esquerda para a direita: Jorge Ben, Caetano Veloso, Gilberto Gil,
Rita Lee e Gal Costa. Agachados: Sérgio Dias e Arnaldo Baptista.
O apogeu tropicalista em 1968 que também se resultou no programa televisivo
"Divino Maravilhoso" exibido na TV Tupi e que durou até dezembro, antes de
Gil e Caetano - os principais gurus tropicalistas - serem presos após o Natal
O disco começa com um órgão de igreja, já nos dando um guia definitivo por Miserere Nobis, cantado por Gilberto Gil, uma canção que acabou mostrando a verdadeira posição contra a força bruta da ditadura militar, com sopros ao estilo de marcha em certos momentos e com um encerramento trazendo tiros de canhão, já dando passagem para o que vem mais à frente; a próxima faixa chama-se Coração Materno, de Vicente Celestino e redescoberta por Caetano Veloso e com um arranjo parecido com o original, reaproximando mais um lado quase esquecido até então e com uma levada que nos remete aos anos dourados, na parte dos arranjos de Duprat durante a canção; a música que leva uma metade do título do disco entoada pelos Mutantes ainda nos mostra uma história mais impressionante, um tipo de hino do despertar dos direitos de liberdade, dos sonhos e das utopias juvenis: isso era Panis Et Circensis, o tema que colocou mesmo o grupo à frente de uma nova era na música brasileira; o próximo tema é um bolero com os ares de canção antiga, eis que surge a voz doce de Nara Leão para dar um toque a mais em Lindonéia, a história de uma mulher desaparecida e que vivia a sonhar com o que se lia nas fotonovelas, o que se ouvia nas rádios e se via na televisão, e o título veio com base em uma pintura de Gerchmann feita na época; o próximo tema a seguir envolve os dois gurus principais, mais Gal Costa, os próprios Mutantes e Tom Zé - o autor da letra - , que dão voz à Parque Industrial, uma visão sobre as inovações urbanas e culturais e ainda se pode notar uma ironia com a expressão "made in Brazil", e o título foi extraído de um livro escrito por Patrícia Galvão, a Pagu (1910-1962) na década de 1930 e uma brincadeira com Wilson Simonal "vamos voltar à Pilantragem", de forma sarcástica; o próximo tema é definitivamente um tiro nos nossos ouvidos, composto e interpretado por Gil, Geleia Geral é uma canção de tom alegórico, uma espécie de porta-voz do manifesto e numa levada de marcha-rancho durante um recitado de Gil na qual ele cita Sinatra, Portela entre outras coisas mais e entoa "Tropicália, bananas ao vento", ainda tendo uma pegada panfletária nos versos e uma citação à Disparada, de Geraldo Vandré, o desafeto dos baianos e mostrando-se uma espécie de conciliação com o formato canção de protesto que se expandiria no Brasil brevemente; o lado B do disco já começa com a canção que virou hino na carreira de Gal Costa, intitulada Baby, um tema de Caetano que antes teria sido feita para irmã do autor, a grande Maria Bethânia que não fez parte do disco por ter contrato com outro selo na época e foi um dos temas que tocou muito nas paradas durante aquele ano, unindo o romantismo à la Roberto Carlos com a pegada de samba mais a bossa nova com direito a Caetano entoando Diana, de Paul Anka no final da música, uma espécie de; a próxima canção tem um quê de chácháchá e latinidade, está é Três Caravelas, uma versão de Las Tres Carabelas, uma canção sobre a colonização aonde Caetano canta a versão original em espanhol e Gil a versão portuguesa feira por Braguinha, ou também João de Barro, autor das clássicas marchinhas e também dos famosos Disquinho que todo mundo já teve quandro criança; na sequência temos Enquanto Seu Lobo Não Vem, uma versão mais urbanizada e moderna da famosa história da menina do capuz vermelho numa espécie de um diálogo sobre um levante contra a ditadura militar, uma espécie de crítica e panfletagem social-política movida a um coro feminino de Gal Costa e Rita Lee "os clarins da banda militar", como uma espécie de ressoar do governo opressor; a faixa Mamãe Coragem inicia-se com uma levada ao violão seguida de um ruído de sirene retratando a vontade dos jovens fazerem suas próprias descobertas e decidem a tomar uma vida sem rumo, cantada em um tom intimista e também de forma aveludada nessa canção de Caetano e Torquato que também veio a ser uma das melhores canções que a própria Gal já gravou ao longo da carreira; na sequência temos Bat-Macumba, com uma clara referência à umbanda e também ao super-herói Batman, fazendo uma ligação jus ao título, e se você ler melhor a letra, ela carrega um quê da poesia concreta, formando uma letra K, soando mais como uma espécie de poesia do que apenas uma música, nesta aqui estão Gil, Gal, Caetano e Os Mutantes numa levada de ponto de terreiro, o sincretismo cultural presente nessa faixa; e no álbum, o encerramento de vez é Hino do Senhor do Bonfim, feita para o santo do baiano carregado de metais e tons muito graves, que acabou não agradando cristãos conservadores que repudiaram os tropicalistas, mas que serve como elemento principal para complementar a verdadeira salada musical tropicalista que faz parte desse disco.
O disco acabou dando uma nova cara no cenário musical brasileiro, disso todo mundo que conhece a história sabe e que não teria sido o Tropicalismo, os herdeiros dessa geração poderiam até não ter existido e não influenciar muita coisa, mas que foi com esse disco que o buraco antes existido, foi tapado para que a MPB seguisse a sofrer suas várias transformações culturais e sonoras. No meio desse apogeu, também houve mais momentos de festivais, como a vaia de Caetano nas eliminatórias do FIC (Festival Internacional da Canção) com É Proibido Proibir e do qual foi eliminado de cara, a lendária apresentação dos Mutantes nesse mesmo com a música Caminhante Noturno, além de Gal num visual totalmente ousado ao interpretar Divino Maravilhoso no IV Festival da Música Popular Brasileira na TV Record, e o movimento ganhou um espaço na televisão com um programa chamado Divino Maravilhoso na TV Tupi, deixando mais impressionado o público ainda, mas durou pouco pois Gil e Caetano seriam exilados em dezembro de 1968, após o Natal e obrigados a saírem do país no ano seguinte, voltando apenas em abril de 1972. Ele acabou se destacando tanto fora do mundo, que atualmente está na famosa lista de Robert Dimery dos 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer, junto do disco de estreia solo de Caetano e dos Mutantes. Tropicália também figura na grande lista da Rolling Stone brasileira dos 100 maiores discos da música brasileira na 2ª posição, provando que sim, que foi um dos maiores discos feitos na história da nossa música popular brasileira e que ainda segue a ecoar como moderno para os nossos ouvidos ao longo dos anos que se passam.
Set do disco:
1 - Miserere Nobis (Gilberto Gil/José Carlos Capinam) - Gilberto Gil e Os Mutantes
2 - Coração Materno (Vicente Celestino) - Caetano Veloso
3 - Panis Et Circensis (Caetano Veloso/Gilberto Gil) - Os Mutantes
4 - Lindonéia (Caetano Veloso) - Nara Leão
5 - Parque Industrial (Tom Zé) - Gilberto Gil, Gal Costa, Os Mutantes, Tom Zé e Caetano Veloso
6 - Geléia Geral (Gilberto Gil/Torquato Neto) - Gilberto Gil
7 - Baby (Caetano Veloso) - Gal Costa
8 - Três Caravelas (Las Tres Carabelas) (Augusto Algueró Jr./Moreu, versão para o português: João de Barro "Braguinha") - Gilberto Gil e Caetano Veloso
9 - Enquanto Seu Lobo Não Vem (Caetano Veloso) - Caetano Veloso, Gal Costa e Rita Lee
10 - Mamãe Coragem (Caetano Veloso/Torquato Neto) - Gal Costa
11 - Bat-Macumba (Gilberto Gil/Caetano Veloso) - Gilberto Gil, Os Mutantes, Gal Costa e Caetano Veloso
12 - Hino ao Senhor do Bonfim (Artur de Sales/João Antonio Wanderley) - Gilberto Gil e Caetano Veloso


Comentários

  1. Simplesmente fenomenal e inspirador! Experimentação perfeita.

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    1. Uma experimentação que traduz a nova face da Música Popular Brasileira naqueles tempos.

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