Um disco indispensável: Expresso 2222 - Gilberto Gil (Philips/Phonogram, 1972)

Em agosto de 1971, o cantor Caetano Veloso, acompanhado da esposa Dedé Gadelha, chegou em Londres depois de uma temporada no Brasil pra matar as saudades da família na Bahia onde foi comemorar o aniversário de casamento de seus pais e apresentar-se no programa televisivo Som Livre Exportação da Globo, além de realizar com Gal Costa um encontro com o ídolo João Gilberto, então quase para retornar dos Estados Unidos após oito anos dedicados à carreira internacional, exibido na TV Tupi, e acabou deixando um gostinho de "quero mais" pra quem achava que o velho tropicalista ia ficar mais, só fez isso e já foi direto para o exílio e calado, sem falar demais nenhuma palavra à imprensa. Chegou de Londres e contou as novidades aos amigos Gilberto Gil, Jards Macalé, Glauber Rocha, Jorge Mautner e aos demais brasileiros que estavam no país do chá e do rock and roll que pouco sabiam das novidades, já que os jornais mandados pelos amigos que ainda estavam no Brasil demoravam muito para chegar e ainda não existia a internet (óbvio). Gil e Caetano estavam iniciando a rota final da epopeia do exílio, que começava logo na cidade de Londres e partia para a Espanha, em Formentera, acompanhado de suas esposas Sandra e Dedé e de lá, com malas e discos, que iam de Gonzagão, Pink Floyd, Led Zeppelin, Beatles, Traffic, seus violões e novidades do Primeiro Mundo, e desembarcaram no Brasil em janeiro de 1972 com saudades do chão tupininquim, de ouvir o som feito em terras verde-amarelas e conversarem com amigos, dentre eles, Chico Buarque, com quem mantêm amizades desde que se encontraram no backstage do III Festival da Música Popular Brasileira, organizado pela TV Record em 1967, os escritores Wally Salomão, Torquato Neto, Capinam e Nelson Motta os artistas plásticos Hélio Oiticica e Rogério Duarte e os cineastas Julio Bressane, Arnaldo Jabor e Cacá Diegues para falarem das últimas tendências que pintam e bordam na swinging London. Gil e Caetano fizeram juntos uma apresentação de retorno no Rio de Janeiro, com direito a transmissão do show feita pela Rede Globo como um especial de televisão. Macalé, Mautner e outros companheiros já estavam nas terras verde-amarelas, sendo que Mautner ainda estava com a cabeça a prêmio dos militares pelo livro Mitologia do Kaos, uma trilogia que foi proibida pelos militares e acabou sendo enviado para uma temporada nos Estados Unidos e se cruzou com os baianos na Inglaterra a partir de 1970.
Parte frontal do disco, note que ao abrir o LP,tem algumas dobraduras paradesfazer
o formato original (quadrado) do disco.Na capa: Pedro, filho de Gil aos 2 anos
Na contracapa: Antônio "Perna" Froes, Tutty Moreno, Lanny Gordin e Bruce Henri

Gil já tinha ideias  para o próximo disco, depois de ter gravado o disco homônimo proto-unplugged de 1971 inteiramente em inglês, e com pouca repercussão nacional e internacional, o baiano voltaria atrás e resgataria as suas origens, fazeria a sua ponte com a música nordestina de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Gordurinha, Marinês, Sivuca, Banda de Pífanos de Caruaru e Genival Lacerda e o rock pesado e alucinante dos Rolling Stones, Beatles, Led Zeppelin, Traffic e Pink Floyd em apenas um disco, que acabaria sendo impactante, ousado e com temas futuristas, além de um toque do tropicalismo nas músicas, mesmo sem a presença dos arranjos e da orquestração de Rogério Duprat e muito menos dos Mutantes, já em outros rumos mais progressivistas e diferentes dos que seguiam nos primeiros anos, então dessa vez seria Gil acompanhado de um megagrupo de apoio nos estúdios da Eldorado em São Paulo: Lanny Gordin na guitarra, o americano Bruce Henry no baixo, Antônio "Perna" Fróes no piano, órgão e celesta, e fechando o grupo, o baterista e percussionista Tutty Moreno. O disco começa com o registro da Banda de Pífanos de Caruaru tocando a instrumental Pipoca Moderna, uma música recheada de sonoridade nordestina e que soa como um anúncio para que todos os passageiros embarcassem a bordo do Expresso 2222; a música Back In Bahia foi composta já a caminho do Brasil, marca também a volta do velho baiano Gil à sua terra, citando Celly Campello e o Mar da Bahia como o motivo do tropicalista sentir tanta saudade da sua terra; o Nordeste é bem-vindo não só com a Banda de Pífanos de Caruaru, mas com Jackson do Pandeiro, que é homenageado em O Canto da Ema, um clássico do forró que teve muito problema pra ser gravado o baixo, então Lanny substituiu Bruce, que era pouco experiente nos ritmos brasileiros, enquanto Chiclete Com Banana, feita por Gordurinha e por Altamira Castilho (esposa de Jackson do Pandeiro) é pioneiro do samba-rock (com uma levada bem de bossa nova), dispensando Bruce de novo, só Gil no violão, Lanny no baixo, Perna no piano e Tutty na bateria pra reviver o som do Nordeste que o jovem Gilberto ouvia nas rádios de Ituaçu e Salvador os sucessos de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Gordurinha, Marinês e muito mais; o amigo Caetano é homenageado em Ele e Eu, uma canção autobiográfica, sobre o fato de Caetano ser extremamente agitado e elétrico e Gil ser mais suave, calmo, mais tranquilo e discreto, com uma levada mais proto soft-rock com bossa nova; o crossover de forró e o rock ainda segue em Sai do Sereno, contando com Gal Costa fazendo um dueto agitado como se fosse uma canção de axé moderna; enquanto a samba-bossa futurística Expresso 2222 fala sobre uma suposta nave espacial, embora Gil tenha tido inspiração no trem que pegava de Ituaçu (cidade onde passou sua infância) a caminho de Salvador quando era criança e viraria nome de um bloco de carnaval de Salvador a partir de 1998; a frase de John Lennon citada em "God" acabou virando título de uma canção chamada O Sonho Acabou, que misturava histórias de heróis e explica "quem não dormiu no sleeping bag nem sequer sonhou" sobre quem não viveu o sonho no final dos anos 60; a música Oriente encerra o disco, como se o passeio do Expresso estivesse terminando e fosse uma daquelas musiquinhas calmas feitas para ouvir antes de retornarem ao ponto de partida, e assim o passeio feito neste Expresso 2222 se encerra com apenas Gil voz e violão pra mostrar que devemos nos orientar pelas constelações do Cruzeiro do Sul e no último acorde do violão, o passeio já se encerra e tudo volta ao normal.
Encarte interno, com foto de Gilberto Gil
clicada por Eduardo Clark e letras do disco

O disco contou com a maioria das músicas feitas ainda no exílio, assim como as duas últimas, O Sonho Acabou foi feita durante a apresentação dos baianos no festival da Ilha de Wight em 1970 onde ele e Caetano fizeram um show brasileiro pra gringo nenhum botar defeito, e após o show, alguns amigos dos dois foram presos por causa de uma barraca; enquanto Oriente foi composto em Formentera, perto de Ibiza logo a caminho de casa. O disco também foi inovador no formato das capas de disco, com uma forma de disco-objeto, tipo o Transa, de Caetano Veloso (lançado no mesmo ano que o disco de Gil), na qual a pessoa abria a capa do disco e o disco tinha partes dobráveis que poderiam se tornar em uma capa redonda, concebida por Ednízio Ribeiro Primo e Aldo Luiz, diretor de arte dos projetos da Phonogram naquela época e na capa uma foto do filho Pedro Gil (1969-1990) quando criança e os músicos Perna, Tutty, Bruce e Lanny na contracapa e na parte de dentro, uma foto de Gil em palco e as letras do disco, com exceção de Pipoca Moderna no disco. Muito mais do que um disco, uma viagem sonora a bordo do Expresso 2222 comandada por Gil. Na edição de 1998 para o box Ensaio Geral, a PolyGram acrescentou os temas Cada Macaco No Seu Galho, registro feito por Gil e Caetano após retornarem do exílio e composta pelo lendário sambista baiano Riachão, a marchinha alucinante carnavalesca Vamos Passear no Astral, presente no LP Carnaval Chegou! (já falamos dele no blog, leia aqui) e Está Na Cara, Está na Cura, que era outra marchinha vista como um alerta sobre os militares e a sua "caretice". Em 2007, a Rolling Stone elegeu o disco na 26ª posição dos 100 Maiores Discos Da Música Brasileira.
Set do disco:
1 - Pipoca Moderna* (Caetano Veloso/Sebastiano Bianco)
2 - Back in Bahia (Gilberto Gil)
3 - O Canto da Ema (Alventino Cavalcanti/Aires Vianna/João do Vale)
4 - Chiclete Com Banana (Gordurinha/Altamira Castilho)
5 - Ele e Eu (Gilberto Gil)
6 - Sai do Sereno (Olindo Almeida) - participação de Gal Costa
7 - Expresso 2222 (Gilberto Gil)
8 - O Sonho Acabou (Gilberto Gil)
9 - Oriente (Gilberto Gil)
FAIXAS BÔNUS DA REEDIÇÃO DE 1998:
10 - Cada Macaco no Seu Galho (Riachão) - com Caetano Veloso
11 - Vamos Passear No Astra(Gilberto Gil)
12 - Está Na Cara, Está Na Cura (Gilberto Gil)

*Com a participação Banda de Pífanos de Caruaru

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