Um disco indispensável: Bicicleta - Serú Girán (SG Discos, 1980)

O ano de 1980 foi uma virada para o grupo argentino Serú Girán, que estava no topo das paradas com seu disco La Grasa de las Capitales, lançado no ano anterior, com grande sucesso e foi o disco que fez Charly García, David Lebón, Pedro Aznar e Oscar Moro levarem os prêmios de Melhor Banda do Ano, Melhor Letrista para Charly García e melhor canção para La Grasa de Las Capitales, a banda começara suas diferenças com a gravadora Sazam Records, da Music Hall, porque nunca gravavam nos estúdios da Music Hall, sempre era um problema para a banda. "Acabaram me ferrando com o registro de um show que fiz no festival Verano del Amor, e deram  ao disco, o nome de um tema desse show, Música del Alma", relembra Charly, os últimos momentos na gravadora até o meio do ano, em que a Sazam lançou seu primeiro disco "solo" chamado Música del Alma, com registros feitos durante um festival em dezembro de 1977, dias antes de se mandar para o Brasil e formar um megagrupo de rock, que seria este de quem estamos falando hoje no blog, que gravara quatro discos de estúdio e um ao vivo, estouraram muito no cenário musical da Argentina, de 1978 a 1982 e acabou consagrando o grupo como um dos melhores dos anos 80, isso graças aos sucessos lançados a cada disco e levando a um patamar semelhante ao das bandas anteriores Manal, Vox Dei, Pescado Rabioso, Pappo's Blues e até Sui Generis, grupo do qual Charly iniciou sua carreira no comecinho dos anos 70, que fez ele ser considerado um dos melhores músicos e letristas argentinos de todos os tempos. O disco seguinte seguia os mesmos rumos de sempre, sempre com base no jazz-rock e no rock progressivo, e foi o primeiro disco lançado pela gravadora criada pela própria banda, a SG Discos, que foi criada junto com o empresário Daniel Grinbank, e durou até depois da separação da banda, em 1982 e levou temas deste disco a serem muito executados nas rádios, fazendo o maior sucesso entre os jovens, com uma atmosfera mais ousada e moderna, um pouco da presença de sintetizadores e teclados, além do trio indispensável de qualquer banda de rock: guitarra-baixo-bateria, que são a base mais importante do rock and roll, sendo que no Serú tinha uma verdadeira orquestra de rock presente, onde o maestro era um tecladista, letrista e vocalista de inteligência musical grandiosa (Charly), um guitarrista capaz de fazer qualquer coisa em seis cordas, além de ter uma voz mais suave para cantar o que quisesse (David), um jovem baixista que tocava feito um músico de jazz internacional renomeado (Aznar) e um baterista veterano carregando muitos frutos colhidos em suas experiências com várias bandas do rock argentino (Oscar) e assim um megagrupo expandiria sua sonoridade para além das margens do Rio da Prata a partir de uma das suas melhores obras-primas do rock argentino. O disco Bicicleta carrega uma forte ligação com Steely Dan, Weather Report, John McLaughlin e até mesmo Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal e influências originais, como dos Beatles e pegando um pouco das bandas da época, um disco provando que era um antes e um depois da banda e, segundo Matías Córdoba, na edição dos 100 melhores discos de rock argentino da Rolling Stone, "Seria um erro dizer que Maradona ganhou só o Mundial de 1986 (com a melhor defesa de todos os mundiais), mas também seria um erro dizer que Charly foi o único responsável de Bicicleta, já que Aznar, Moro e Lebón se encontravam em seus melhores momentos, ainda mais pelo entusiasmo de Charly". Ou seja, um disco que tem seus pontos fortes e alguns pontos fracos, onde num jogo de futebol, a melhor defesa pode fazer com que o Serú fizesse uma goleada impactante nos oito temas do disco, uma verdadeira jogada de mestre. O primeiro tema do disco se chama A Los Jóvenes de Ayer, uma homenagem aos velhos ideais dos antigos pioneiros na cultura musical argentina entre os anos 30, 40 e 50, mais pra área do tango e do folclore regionalista, pela contradição de seus antigos ideais, além dos primeiros cinco minutos instrumentais, seguidos por versos entoados por Charly e nos últimos minutos, volta a ser uma música instrumental; David Lebón segue se aperfeiçoando como nos versos de Cuánto Tiempo Más Llevará, um tema em que o piano e a guitarra sempre caminham juntos em um ritmo, falando sobre do que nós esperamos e se desesperamos, mas nunca chega; o ponto forte deste disco é a pedrada de Charly García para cima da ditadura em Canción de Alicia en el País, um tema onde Charly analisa um pouco de tudo o que aconteceu nesta última ditadura militar (1976-1983), um testemunho que teve muito esforço para que evitassem o veto da música, declarando que tinha ligações com o conto "Alice no País das Maravilhas" de Lewis Carroll; na sequência, uma instrumental do baixista Pedro Aznar gravada em seu estúdio caseiro, intitulado La Luna de Marzo, que soa como um tema instrumental qualquer desses que passa em um filme romântico da década de 80, movido a sintetizadores e guitarras, tocadas pelo próprio; os anos de Club del Clan e dos primórdios do rock n' roll são revividos em Mientras Miro Las Nuevas Olas (falamos já desta música no primeiro Temas Indispensáveis), onde Charly canta sobre o fenômeno New Wave, que na Argentina era chamado de Nueva Ola, fenômeno do rock argentino dos anos 60, referindo-se a uma nova onda que estava dominando, mas que soa parecido com algo de antes, é a canção mais roqueira do disco e da banda, com uma sonoridade semelhante ao do bom e velho rock and roll; o lirismo poético de Charly volta a reinar soberanamente em Desarma Y Sangra, um tema somente ao piano, de atmosfera sentimentalista, profunda, onde ele se sentia muito solitário nestes anos difíceis, acabou sendo um clássico imortalizante em sua voz e em várias versões futuras de outros artistas; Tema de Nayla foi feito por David Lebón e especialmente para a sua filha Nayla, que teve sido originalmente feita para um disco chamado "Nayla", lançado no começo do ano de 1980 pela Sazam, meses antes de criarem a SG, o tema teve até um troca-troca de músico nas gravações, pois a banda não aprovou o solo de piano de Charly e escalaram para fazer o solo que encerra o tema, um músico chamado Diego Rapoport, do grupo Spinetta Jade a convite de Lebón para fazer a parte jazzística, foi a única música sem Charly; o disco termina com Encuentro con el Diablo, um tiro no pé da ditadura onde Charly e David falava sobre as atitudes da selvageria militar, baseado em um encontro de muitos rockstars com  o assessor do então presidente Roberto Eduardo Viola, com o suspeito objetivo de escutar a voz da juventude argentina, sobre as possibilidades da abertura política enquanto a juventuda daquela época podia se tranquilizar e o rock não corria perigo ainda, além disso o tema mostra uma presença da linha jazzística-roqueira e de um naipe de metais, abrilhantando um pouco mais o disco e fechando com chave de ouro.
2ª capa do disco, lançada nas edições em CD.
O disco, originalmente, seria duplo, mas por motivos de custos, acabou sendo um plano futuro, com temas que entrariam no disco seguinte Peperina (1981), como "20 Trajes Verdes", "Parado en el Medio de la Vida" e "José Mercado", compostas durante a criação de Bicicleta, mas aí já é outra história. Um dos melhores discos da banda e do rock argentino, lançado em meio ao caos da ditadura militar, mostra fortes críticas contra o regime, mas um disco que não se calou diante dos militares, um álbum também forte em sonoridade, harmonia e composições, com perfeição e muita originalidade nos arranjos. Nota: o disco conta com duas capas, a primeira, mostra um Charly García de perfil, com uma mão no colete do terno, que é a foto do LP enquanto nas reedições em CD pela C.D.A (uma versão argentina da EMI) e pela Interdisc, distribuída pela PolyGram, mostra um Charly com a cara baixa, a mão nos dois coletes e olhando para a mesa da capa.
Set do disco:
1 - A Los Jóvenes de Ayer (Charly García)
2 - Cuánto Tiempo Más Llevará (David Lebón)
3 - Canción de Alicia en el País (Charly García)
4 - La Luna de Marzo - instrumental (Pedro Aznar)
5 - Mientras Miro Las Nuevas Olas (Charly García)
6 - Desarma Y Sangra (Charly García)
7 - Tema de Nayla (David Lebón)
8 - Encuentro Con El Diablo (Charly García/David Lebón)



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