Um disco indispensável: Da Lama Ao Caos - Chico Science & Nação Zumbi (Chaos/Sony Music, 1994)

Há exatos vinte anos, o movimiento manguebeat ganhou expansão nacional e mundial graças a um disco, uma banda e um poeta: Chico Science & Nação Zumbi lançou o disco Da Lama Ao Caos pela Chaos, um selo do núcleo independente da Sony Music, que no ano anterior já havia lançado o rapper e também escritor Gabriel O Pensador e o grupo Skank, cujo primeiro álbum foi relançado com uma nova remasterização da Chaos/Sony em 1993, mas isso não nos vem ao caso. O grupo iniciaria sua jornada musical no final dos anos 80 para o início dos anos 1990 foi quando Science perambulava pelos grupos de rap Orla Orbe e Loustal, na qual suas referências principais eram da soul music, do ska e do hip-hop e contava com influências de nomes como James Brown, Grandmaster Flash e de Kurtis Blow, além de referências da música nordestina e a partir de 1991 quando se cruzou com o pessoal do bloco Lamento Negro, de Peixinhos, bairro de Olinda (PE). Foi só se juntar com o pessoal mais dos tambores que essa mistura de hip-hop com psicodelia se resultou no Chico Science & Nação Zumbi, cujos resultados foram dois discos, turnês internacionais que repercutiram ao redor do mundo por onde passavam e um trágico fim de carreira de Chico Science: um acidente no caminho de Olinda para Recife em fevereiro de 1997 pôs um fim na sua, um ano seguinte, a família do próprio Science entra com um processo contra a Fiat, que pagou a indenização de 10 milhões de reais pelas falhas no cinto de segurança do carro que dirigia e que lhe custara a sua própria vida. Mas, foi com Chico Science que o Nação Zumbi ganharia um destaque importante na música nordestina e no rock brasileiro: graças ao disco Da Lama ao Caos, eles conseguiram conquistar a atenção máxima do público e da crítica naquela época e foram premiados por várias revistas, dentre elas a Bizz e outras mais que não sei. A banda conseguiu a atenção da mídia após uma turnê por São Paulo e Belo Horizonte em 1993, ganhando assim o prestígio de gente como Marcelo Falcão (vocalista d’O Rappa), Marcelo D2, Fernanda Abreu, Cássia Eller, Jorge Ben Jor, Gabriel O Pensador, Lulu Santos e até de um tal de Gilberto Gil, que considerou ele como “O que surgiu de mais importante na música brasileira nos últimos vinte anos”. Foi após esta turnê que conseguiram um contrato com a Sony, pelo núcleo da Chaos e a partir do meio de 1993, partem para os estúdios Nas Nuvens, do produtor Liminha (sabe bem quais discos ele produziu, né?!) e após o mês de janeiro, o disco estaria sendo masterizado no estúdio Future Disc, nos Estados Unidos. Muitos detestaram o jeito que Liminha tratou o som do grupo, causando assim uma péssima impressão e desgosto dos fãs da energia da banda nos shows, mas mesmo assim o público ainda teve que se acostumar com a sonoridade “limpa” do disco, que não passa de uma bela mistura de maracatu, forró, samba, hip-hop, rock psicodélico com um pouco de tudo nos instrumentos: baixo funk, riffs de guitarra pesados e percussão do maracatu sem bateria (Pupillo entraria na banda em 1995).
Chico Science (de óculos e camisa listrada) liderando uma trupe de
homens-caranguejos vindos do mangue pernambucano para tomarem de
assalto a cena musical brasileira dos anos 1990 (foto de Fred Jordão)
O começo é com um manifesto ousado e que a gente já imagina o que vai ser o disco com Monólogo ao Pé do Ouvido, que prova que Science não deixa nada de fora no disco e anuncia um de seus versos “Modernizar o passado é uma evolução musical”; já Banditismo por Uma Questão de Classe é um pouco de funk, psicodelismo, maracatu e hip-hop envolvendo uma fórmula de um thriller polícia versus bandido, movido a ritmos militares pelas alfaias (tambores do maracatu); rola muito peso sonoro nordestino em Rios, Pontes e Overdrives com sua continuação da mistura e um coro redondo, além de samples, onipresentes em A Cidade com seu groove e um solo perfeito de Lúcio Maia e também uma introdução original, o sample de “Boa Noite do Velho Faceta”, do humorista popular pernambucano Velho Faceta (1925-1986) e teve um clipe de sucesso na MTV brasileira, na seguida viraria tema do remake da novela Irmãos Coragem no ano seguinte; enquanto A Praieira já partia para uma daquelas linhas musicais de sempre: guitarras pesadas/baixo groove/percussão sem bateria, acrescentado de um ritmo mais axé music que nos relembra um pouco até os protótipos de hit do verão que cai no gosto popular, esta também foi tema da novela Tropicaliente no mesmo ano que foi lançado o disco; o samba está presente no disco com Samba Makossa, que é um dos clássicos do disco, com uma mistura de batidas carnavalescas com ritmo militar e um funk-rock com um riff alucinante e psicodélico, a música seria regravada quase dez anos depois por Charlie Brown Jr., do cantor Chorão (1970-2013) que era um fã e entusiasta de Science, com Marcelo D2 que era outro fã, entusiasta e que presenciou o sucesso de Science enquanto vivo; a sequência continua com a faixa-título Da Lama Ao Caos, que inicia com uma levada heavy metal nas batidas e no riff de guitarra e versos históricos de Science como “Que eu me organizando posso desorganizar/Que eu desorganizando posso me organizar” ou “Da lama ao caos, do caos à lama/O homem roubado nunca se engana”; enquanto Maracatu de Tiro Certeiro é uma prova de como juntar os ritmos de percussão brasileiro em uma só introdução, na qual conta com a presença de pandeiro e berimbau, este último, executado por André Jungmann (na verdade, André Jung), baterista do Ira!; a instrumental Salustiano Song é nada menos do que uma viagem sonora-psicodélica puxada pela guitarra de Lúcio Maia, o baixo de Dengue e o trio de alfaias Jorge Du Peixe, Gira e Gilmar Bolla 8, além da caixa rítmica de Canhoto (sairia da banda em 1995 dando lugar a Pupillo) e o percussão de Toca Ogam; a homenagem ao movimento manguebeat e à nova geração musical de Recife em Antene-Se já é um motivo de Pernambuco se orgulhar do poeta maior mesmo depois de sua morte em 1997 que ainda esbraveja no verso “Sou, sou, sou, sou, sou mangueboy!” ; nos acordes de guitarra de Risoflora, já se deve perceber que nada muda depois do resto da música, a não ser a suavidade rítmica no início e uma história qualquer de amor perdido ou desiludido; enquanto Lixo do Mangue é um instrumental da Nação Zumbi – em especial do guitarrista Lúcio Maia - com os gritos do produtor Liminha, relembrando um pouco dos gritos de monstros de filme de terror; logo o começo de Computadores Fazem Arte é uma prova de que o som do manguebeat está hyperconectado a um mundo virtual, dando assim a imaginação de uma ponte entre o mundo cybernético e o mundo do mangue recifense, composto pelo atual vocalista Jorge Du Peixe e cantado por Science nesta; o encerramento com Côco Dub (Afrociberdelia) é uma mistura de um pouco de tudo que se ouviu neste disco: samples (até de um forró, reparem o acordeon), guitarras psicodélicas viajantes, baixo ora groove, ora funky e percussão nordestina fazendo vários ritmos, cujas alfaias fazem um som pra gringo nenhum botar defeito, com menos de sete minutos de duração nos fazendo levar para uma viagem que tem continuação, no disco seguinte Afrociberdelia (1996), lançada exatamente um ano antes de Chico Science levar seu manguebeat para além do mangue e dos caranguejos com cérebro.
Passam-se vinte anos que este grande disco foi lançado e fica no ar aquela velha conclusão de que o som de Pernambuco todo feito pelos “homens-caranguejos” com seus tambores, suas guitarras e uma poesia que juntava hip-hop, maracatu, samba, frevo e tudo mais em um só disco que veio Da Lama Ao Caos, e mesmo depois de 20 anos, o legado de Chico Science permanece vivo pelo Recife e Brasil afora causando um tremendo impacto pelos mangues pernambucanos entre caranguejos e lamaçais, mostrando que sua música vai além da lama ao caos e do caos à lama.
Set do disco:
1| Monólogo Ao Pé do Ouvido (Chico Science)/Banditismo Por Uma Questão de Classe (Chico Science)
2| Rios, Pontes E Overdrives (Fred Zeroquatro/Chico Science)
3| A Cidade (Música Incidental: Boa Noite do Velho Faceta/Amor de Criança) (Chico Science)
4| A Praieira (Chico Science)
5| Samba Makossa (Chico Science)
6| Da Lama Ao Caos (Chico Science)
7| Maracatu de Tiro Certeiro (Chico Science/Jorge Du Peixe)
8| Salustiano Song (instrumental) (Chico Science/Lúcio Maia)
9| Antene-se (Chico Science)
10| Risoflora (Chico Science)
11| Lixo do Mangue (instrumental) (Lúcio Maia)
12| Computadores Fazem Arte (Jorge Du Peixe)
13| Côco Dub (Afrociberdelia) (Chico Science)

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