Um disco indispensável: Refavela - Gilberto Gil (Philips/Phonogram/WEA Music, 1977)

A carreira do cantor e compositor baiano Gilberto Gil estava bem após voltar da temporada do exílio na Inglaterra em janeiro de 1972: com uma vontade de fazer música em solo natal, apesar do cerco estar mais apertado do que nunca no Brasil depois do AI-5, ato instaurado em dezembro de 1968 que fez a ditadura endurecer sua postura. Mesmo assim, ele tinha gravado um disco que serviu como celebração à sua volta, intitulado Expresso 2222 onde misturava a música nordestina de Gonzagão, Jackson do Pandeiro, Gordurinha, Sivuca, Genival Lacerda com o rock puro e eletrificante dos Beatles, Rolling Stones, Yes, Pink Floyd, Led Zeppelin, Jimi Hendrix dentre outros resultando-se num dos grandes clássicos da MPB que marcou e segue marcando gerações. Depois veio a gravar mais sucessos como Eu Só Quero Um Xodó, Maracatu Atômico e vivenciou o clima de intensidade no palco quando na noite de maio de 1973, no Anhembi (São Paulo) durante o festival Phono 73, o microfone dele e de Chico Buarque foram desligados ou cortados durante a execução da música Cálice - cuja letra veio a ser proibida e somente cinco anos depois. Após gravar um disco ao vivo, de iniciar a trilogia Re com um álbum totalmente com os pés na música nordestina em Refazenda, que se tornou um dos seus melhores álbuns já feitos em sua discografia inclusive. Em 1976, depois de ter inclusive gravado um disco em parceria com o mestre do samba-rock Jorge Ben, ambos em bons momentos de sua carreira na década, sai em turnê com Caetano Veloso mais Maria Bethânia e Gal Costa num espetáculo que tornou-se um sucesso de público e crítica, os Doces Bárbaros renderam um disco duplo, porém a tournée sofreu um baque em agosto depois que Gil foi preso por porte de maconha, e no mesmo período a cantora Rita Lee também parou no xadrez após policiais entrarem na sua casa em busca de drogas. Mas, meses depois, vai para Lagos, na Nigéria onde participa de um festival de cultura negra, o FESTAC '77 onde contou com uma banda formada por Rubão Sabino no baixo, Djalma Correa na percussão, Perinho Santana na guitarra, Cidinho nos teclados e Robertinho Silva na bateria, o próprio Veloso também foi junto, ali viram as raízes de um povo que se difundiu mundo afora e que na Bahia têm uma grande concentração da população afrodescendente. Marcado pela experiência que vivenciou na Nigéria, do contato com a música afrobeat de Fela Kuti e dos movimentos culturais afro, como os blocos dos Filhos de Gandhi e o Ilê Ayê, mais o movimento Black Rio do qual a própria Banda Black Rio e os bailes periféricos fluminenses estavam crescendo, além do soul potente de Tim Maia e o som jamaicano que estava deixando o povo numa vibe bem relax - este sendo o reggae, isso tudo e muito mais ajudou Gil a compor o seu oitavo álbum de carreira e o segundo da chamada trilogia Re, e nós estamos falando do Refavela, editado em maio de 1977, no momento em que o mundo se dividia entre o vômito e a rebeldia do punk e a energia dançante e glamourosa da discothèque que estavam reinando mundialmente naquele ano.
No início, o empresário, produtor e amigo de longa data Roberto Santana perguntou ao baiano se ele não topasse produzir o seu próximo álbum e Gil o convidou para assumir a produção de Refavela, gravada em 16 canais nos estúdios Phonogram na Barra da Tijuca, e com os arranjos de Perinho Santana, e um time de músicos que ajudaram e muito a deixar esse disco com a cara da África, ou melhor dizendo, um disco totalmente afro-brasileiro que agradasse a todos. E o disco já abre com um tema totalmente africano, com o nome de Refavela, inspirada no conjunto de edifícios onde se hospedara em Lagos, e com referências que vão do BNH (Banco Nacional de Habitação) e do Black Rio até o movimento negro, como se estivesse falando sobre quem sai do subúrbio pra ir à luta pelos direitos e ainda traz uma sonoridade totalmente miscigenada, o que é bom por sinal; em seguida temos a canção que exalta um dos blocos afros existentes na Bahia, é o Ilê Ayê - com o subtítulo Que Bloco É Esse? - da autoria de Paulinho Camafeu, uma letra com a força do movimento Black Power e deixa bem claro um aviso aos brancos sobre o valor que os pretos têm, quase um hino para a massa afro-brasileira e mundial inclusive; a próxima música que surge a seguir carrega uma filosofia existencial, espiritual e da natureza - falo sobre Aqui Agora, em que traz uma das melhores frases do álbum "o melhor lugar do mundo é aqui e agora" significando que o melhor momento das nossas vidas é o presente, o que estamos vivenciando hoje, agora, com um toque soft no arranjo e a letra soa incrível de verdade; para a próxima faixa deste álbum, temos uma conexão Fela-Marley-Tim na sonoridade de No Norte da Saudade, escrita com Moacyr Albuquerque e Perinho Santana, nesta letra fala sobre alguém que vêm de longe para ver o seu/a sua amad@ com uma levada bem funkeada que inclui até mesmo reggae e o solo de Perinho Santana na guitarra é o destaque instrumental, além da percussão e dos metais que ajudam ainda mais a dar o toque preciso da música; e fechando o lado A deste disco, ainda tem a faixa Babá Alapalá, com palavras oriundas do africano presente na letra, e o funk-rock deste tema ajuda a manter a essência que a música proporciona no decorrer, e o groove deixa rolando muito a solta; na sequência, o lado do B do disco inicia-se com Sandra - uma canção inspirada na época em que Gil ficou em um hospício durante o período de internamento imposto pela Justiça quando foi preso pelo consumo de maconha e os nomes Maria de Lourdes, Maria Aparecida e Maria Sebastiana são as mulheres que o atenderam na clínica ao mesmo tempo em que pensava na sua então mulher Sandra Gadelha, também cunhada de Caetano (sua irmã Dedé Gadelha era casada com ele), a música traz um ar mais profundo com a questão da saudade da amada nessa fase; a próxima música que aparece na sequência é uma releitura bem funky de um tema do maestro soberano Antonio Carlos Jobim, estamos falando de Samba do Avião, onde ele exalta o Rio de Janeiro e faz uma declaração à Cidade Maravilhosa em forma de samba-funk que agrada a gente na escuta; adiante, podemos contar também com uma balada calma e que mantivesse o tom grooveado das canções, no caso de Era Nova, cuja inspiração veio na tão falada à época da Era de Aquarius que se cantava no final da década passada e feita originalmente para Roberto Carlos gravar, mas o Rei acabou não fazendo tal registro; com base na excursão pelo FESTAC '77 e admirado com aquelas descobertas feitas em Lagos, a faixa Balafon fala sobre um instrumento de percussão africano que lembra um pouco a marimba, com essa canção ele ainda segue com a missão de cantar sobre a África com essa experiência tida na terra-mãe de onde muitos de nós viemos; e o álbum já encerra de vez com um tema louvando mais um bloco afro-baiano, desta vez é o Afoxé Filhos de Gandhi na axezeira Patuscada de Gandhi, na qual Gil adaptou um dos temas do bloco mantendo a união África-Bahia mais forte do que nunca fechando com tudo.
O disco obteve uma ótima repercussão de crítica e público, ajudou muito a levar as origens pra dentro do ambiente sonoro que se junta nessa salada musical que o baiano sempre mostrou em sua obra ao longo dos anos. Na época de seu lançamento, Gil queria era fazer uma excursão Brasil afora em um ônibus monobloco, mas a Phonogram não deu muito a mínima e ele comprou tal ônibus, ainda decidiu rescindir o contrato com a gravadora, e se juntou ao elenco da novata WEA Music, onde o executivo André Midani tinha deixado da Phonogram para instalação desta (WEA) no Brasil. Meses depois, já estava ao lado de Rita Lee em uma tournée que deu uma levantada na trajetória dos dois um ano depois dos seus ocorridos que levaram os dois para atrás das grades - a roqueira na Terra da Garoa e o baiano lá na Ilha da Magia, e ainda a tour Refestança saiu em disco em novembro, porém não entra como parte da Trilogia Re, por ser mais um projeto paralelo da carreira. E já mais de 25 anos depois de seu lançamento, este álbum é reeditado por outro selo, a WEA, através da caixa Palco, contando 2 faixas-bônus, lançadas ainda em compacto: a primeira é a música Sítio do Pica-Pau Amarelo, que virou abertura da série homônima baseada na obra de Monteiro Lobato que durou no ar pela Rede Globo de 1977 a 86 e depois de 2001 a 2007, e a faixa seguinte traz uma música chamada A Gaivota, este também um tema mais infantil que depois foi reaproveitado em uma coletânea pela Abril mais tarde. Para completar mais toda essa exaltação a uma das magnum opus da carreira do guru tropicalista, o disco foi eleito em 2007 como o 54° melhor álbum de música brasileira pela revista Rolling Stone e 40 anos depois, Gil trouxe o álbum para turnê ao lado de Céu, Maíra Freitas, Moreno Veloso e Bem Gil além de ter ganhado uma reedição em vinil pela Polysom e em CD pela Warner, provando que a obra em que mostra a africanidade ambientada neste disco segue mais viva e atual do que nunca. 
Set do disco:
1 - Refavela (Gilberto Gil)
2 -  Ilê Ayê (Que Bloco É Esse?) (Paulinho Camafeu)
3 - Aqui Agora (Gilberto Gil)
4 - No Norte da Saudade (Gilberto Gil/Moacyr Albuquerque/Perinho Santana)
5 - Babá Alapalá (Gilberto Gil)
6 - Sandra (Gilberto Gil)
7 - Samba do Avião (Antonio Carlos Jobim)
8 - Era Nova (Gilberto Gil)
9 - Balafon (Gilberto Gil)
10 - Patuscada de Gandhi  (Afoxé Filhos de Gandhi/adaptação Gilberto Gil)
FAIXAS BÔNUS PRESENTES NA REEDIÇÃO EM CD (2002) PARA A CAIXA "PALCO":
11 - Sítio do Pica-Pau Amarelo (Gilberto Gil)
12 - A Gaivota (Gilberto Gil)

Comentários

Mais vistos no blog