Um disco indispensável: We're Only in It For the Money - Frank Zappa & The Mothers of Invention (Verve Records, 1968)

Com a cena musical toda vivendo do conceito de muito sexo, drogas e rock and roll, o final dos anos 60 foi marcado pela euforia artística e política que circundava nos movimentos, e nada podia parar aquela juventude, nem mesmo grandes autoridades e tropas militares. Mas também era motivo de deboche para a galera mais conservadora e refinada, vendo que aquele pessoal que bradava os ideais hippies e desfrutavam da boa hora para fazerem críticas em matérias, num tom cômico, e o humor trazia um pouco essa coisa do alto teor de deboche com os hippies. E se houve um especialista nessa coisa de satirizar com muito humor o movimento de contracultura, esse alguém foi o músico, produtor e também gênio à frente de nosso tempo Frank Zappa, pioneiro em fazer jazz e rock ao mesmo tempo com uma dose de vanguarda, acompanhado de seu grupo de apoio, o The Mothers of Invention que contavam com Billy Mundi (bateria), Bunk Gardner (sopros), Roy Estrada (baixo), Don Preston (teclados), Jimmy Carl Black (trompetes e bateria), Ian Underwood (pianos e sopros) e Euclides James "Motorhead" Sherwood (saxofones barítono e soprano, percussão) faziam excelentes alquimias sonoras que resultavam-se em canções de fácil assimilação popular, e que influenciariam muito no circuito de vanguarda musical. Em 1966 ele lançara um dos primeiros álbuns duplos da história, o Freak Out! pela cultuada gravadora de jazz Verve Records (especialista em lançar alguns artistas de variadas vertentes musicais) e acabou causando um grande impacto na cena, e no ano seguinte, com Absolutely Free, repetiriam a dose do álbum anterior, tendo repercussão com Kill Ugly Radio, um dos temas de grande destaque do álbum, e nesse mesmo período ele trabalhava em dois materiais para serem lançados em 1968: um com os Mothers e o outro solo. Esse último material seria uma espécie de baguncinha sonora, com os Abnuceals Emmuhka Electric Symphony Orchestra, uma orquestra criada para esse álbum mais orquestral, intitulado Lumpy Gravy, um conjunto de melodias e sons dividido em duas partes, que viria a ser um pioneiro da música eletrônica possivelmente. Já o próximo material com os Mothers seria um álbum mantendo a linha do escracho, e desta vez os alvos seriam os hippies, em um disco inteiro, eles usariam suas experimentações para colocarem essa geração como alvo, e acertando os dardos direto eles fariam deste o maior legado do músico e do grupo, e que legado esse disco deixou hein?! Lançado em 4 de março de 1968, o álbum We're Only in It for the Money trouxe um exemplo de como sacanear aquela geração que bradava por liberdade, paz e amor e lutar contra o sistema capitalista, e de que toda aquela história de bradar por revolução, mudar o mundo era nada mais que uma simples desculpa da juventude de desfrutar a vida nos extremos entre muito consumo de drogas, e sexo em geral.
Frank Zappa, Billy Mundi, Bunk Gardner, Roy Estrada (de meia-calça rosada), Don Preston,
Jimmy Carl Black e Ian Underwood: os The Mothers of Invention rompendo paradigmas e cheios
de graça para debochar
Com as gravações ocorrendo no período de março de 1967, logo após o músico ter concebido o projeto Lumpy Gravy, que só lançado em setembro daquele ano, e reeditado no ano seguinte pela Verve com duração maior do que a edição da Capitol e com vários meses de diferença, ou seja, um período diferenciado entre cada gravação, até aqui tudo belezinha. Mas o importante é destacarmos também a parte de que fora gravado simultaneamente com o disco de Zappa, e o músico ousara fazer experimentos com diálogos que cruzavam entre uma música e outra, além de fazer uma descoberta genial, de que as cordas do piano de cauda do Apostolic Studios ressoaria toda vez que alguém falasse perto das cordas, e a experiência acabou envolvendo não só o próprio mas também convidados como Eric Clapton, que na época estava com a banda Cream em seu auge, fez uma participação especial em duas faixas mais com diálogos do que com sua guitarra mágica. Outro grande fator responsável pela concepção do disco foi também a forma como acabou se transformando em uma delirante aventura com os experimentos sonoros. E de agosto a outubro de 1967, o trabalho seguia a retomada a pleno ritmo, com novos elementos incorporados e algumas coisas inspiradas em Absolutely Free e em Lumpy Gravy, que acabou sendo incorporado dentro dessa bagunça sonora e debochada que virou o disco We're Only in It For the Money, lançado em 4 de março de 1968, com a produção do frontman dos Mothers e um forte teor satírico a psicodelia, com um tom de música concreta e uma forte onda de experimentalismo e colocando em versos algumas coisas sobre o flower power, e como já sugere o título em portugês: Nós Estamos Nessa Somente pelo Dinheiro (sem Google Tradutor para ajudar). E também de que essa coisa de paz-e-amor toda, essa coisa de liberdade ia além do que se imagina, passando completamente pelos extremos do universo flower-power, os alvos das canções do disco são vários, desde os jovens iludidos até o paraíso de todos os hippies, San Francisco, a lendária cidade californiana que se tornou capital dessa coisa toda que é o hippismo. Outro motivo que nos leva a ouvir o disco é o fato de ser uma paródia de um disco que todo mundo conhece, ouve e exalta: sim, é o próprio Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, e o pior, tem tudo a ver o conceito do disco: além de parodiar o álbum de forma cômica e musical, até na arte conseguiram ir além, imitando a arte toda do álbum, desde a capa, que tem além dos Mothers, a própria esposa Gail Zappa grávida de Moon na época, além de Jimi Hendrix perto de uma árvore de Natal e um cara de cócoras segurando uma caixa de ovos que parece ser o autor da ideia da capa, Cal Schenkel, que aparece também no topo, irreconhecível, tocando acordeom. Além disto, quem também estampa a capa (alguns com tarja nos olhos) são Elvis Presley, David Crosby, Lloyd Price, Eric Burdon (vocalista do The Animals), Big Mama Thorton, Nancy Sinatra, o clássico personagem de cinema Nosferatu, além de Albert Einstein e, pasmem, o bandido Lee Oswald (que matara John Fitzgerald Kennedy em 1963) além do policial que estava junto dele numa foto, além dos pais de Zappa e de Gail. O restante das personalidades e anônimos vocês conferem nesse link aqui para tirarem suas dúvidas. Para que a capa fosse lançada, Frank Zappa telefonou para (adivinhem?) Paul McCartney pedindo permissão para que a capa parodiada fosse lançada, porém o músico disse que isso era com os gerentes de negócio, e o mother disse que não era com eles que se devia resolver esse assunto. Após várias discussões com a Capitol, não deu outra e Zappa voltou para a gravadora Verve, na qual até aceitaria lançar o disco, mas o problema seria esse: com boatos de que Paul teria não entendido e não gostado da brincadeira com a capa, uma das opções seria esta - colocar a interna com uma foto da banda ocupando os dois lados num fundo amarelo como capa principal e o que seria a capa/contracapa apareceria como uma surpresinha para os fãs. Após várias reedições em LP e CD desse jeito, não faz muitos anos que a Zappa Records - selo especialista no catálogo do músico e responsável pela preservação de seu legado no mundo todo - colocou o formato da forma como era para sair.
Os Mothers em 1969: já sem Billy Mundi, mas com Art Tripp
(de camisa de bolinhas e casaco marrom) e também Euclid James
"Motorhead" Sherwood (de óculos escuros e gravador na mão), protagonistas
de um dos momentos mais divertidos da era psicodélica.
O disco abria com uma série de diálogos e sussurros que fazem parte de Are You Hung Up? a abertura que traz uma pontinha de ninguém mais, ninguém menos que Eric Clapton, que a convite de Zappa, dispensou as guitarras, e após um fuzz de guitarra surge um "hi boys and girls I'm Jimmy Carl Black and I'm the indian of the group" como cartão de visita de um dos Mothers para o público; em seguida surge o esculacho com a turminha good vibes, em Who Needs The Peace Corps?, onde o grupo mostra-se insuperável na arte do deboche e não perdoa os movimentos de contracultura que falavam sobre paz e liberdade, até mesmo mostram-se sagazes criticando os jovens e suas loucuras durante as procissões até chegarem no paraíso dos hippies, a lendária San Francisco, numa pegada bem R&B bem viajante e que dá para o gasto até - e não estou mentindo; mais adiante, temos outra pedrada cômica deste disco, logo Concentration Moon, com os Mothers inteiros debochando os padrões do tão falado American Way, que é muito modulado e cheia de questionamentos ao longo da canção, sendo uma bela prova de como fazer a América confundir e rir ao mesmo tempo; mais adiante, nós temos aqui Mom & Dad, uma baladinha meio sem sal, mas não decepcionando a gente com uma história de um jovem que, por meio de uma carta, diz que vai deixar a casa em um relato narrado de forma trágica, aquela coisa simples da alquimia poético-sonora tradicional dos Mothers que se nota ao longo do disco; existe um certo intervalo nessa primeira parte do disco feita por duas músicas: a primeira é Telephone Conversation, que é nada mais que uma simples discussão telefônica de 50 segundos com um Zappa a procura de um telefone 678 9866 e se depara com Suzy Creamcheese (pseudônimo de Pamela Zarubica, uma amiga dos integrantes que participava das loucuras deles) discutindo com uma certa Vickie do nada, e essa chamada que dá a deixa para Bow Tie Daddy e seus menos de 35 segundos com uma baladinha meio folky narrando a história de um pai de família inescrupuloso, o típico da família americana; a seguir, temos uma das mais perfeitas sacadas do disco - Harry, You're a Beast e a história de uma típica mulher norte-americana com todos os padrões, com um diálogo teatral aonde temos personagens chamados Madge e Harry em uma situação macabra que soa como se fosse uma ameaça, onde essa Madge parece dizer "don't come in me, in me" mas que se você for notar na contracapa do disco, o verso está como "censored censored censored" com medo de que fossem acusado por expor certos absurdos em uma música - uma das travessuras mais estranhas, porém brilhantes; seguindo o baile zueirão do Zappa, temos aqui What's the Ugliest Part of Your Body?, uma visão duramente crítica sobre as ideologias a respeito do modelo tradicional de beleza americana, precisamente, com uma vibe bem delirante que dá para o gasto definitivamente; na sequência, a próxima faixa nos mostra uma abertura sutil com um piano simulando doces melodias mas depois vai mudando as coisas e eis que temos Absolutely Free (que não tem nenhuma ligação com o álbum de 1967), uma breve sacanagem com os ideais fora do sentido do chamado acid rock, sem perder a pose total; mais adiante, a música que trazeria o termo que seria o som do final dos anos 70: Flower Punk era nada mais que uma molecagem em cima do hippismo tendo como o nome do personagem de Punk, olhem só! A viagem sonora do disco chega ao seu ponto alto através desta música, aonde usam como base sonora o clássico Hey Joe, de Jimi Hendrix (logo ele que aparece na capa do disco) e resumindo: um tema clássico e autêntico; a próxima música seria apenas um breve intervalinho com uma zueira experimental chamada Hot Poop, e seus 26 segundos bizarros e divertidos ao mesmo tempo, algo comum em um disco dos Mothers qualquer; complementando o álbum, temos aqui uma delirante e impressionante viagem sonora do disco chamada Nasal Retentive Calliope Music, que soa experimental do começo ao fim, apenas isso, e que já diz na contracapa ser uma série de fragmentos instrumentais sobre pessoas com estranhos hábitos pessoais e no final, simula uma sonzeira bem surf-rock, retomando ao começo da década mais inovadora do século XX; mas que esse surf-rock era apenas uma antecipada para Let's Make the Water Turn Black, um grande tema de destaque desse disco que segue a falar um pouco desse padrão de bom-mocismo das famílias norte-americanas da forma mais esculachada possível, ganhando os ouvidos de muitos fãs e inspirando letras de bandas do punk rock e de música alternativa anos adiante, pra serem mais precisos e encerrando com uma entrada de um programa de rádio e ruídos variados; e se você acha que não tem mais zoeira, isso é porque na próxima faixa, The Idiot Bastard Son - que mostra um declínio dos valores tradicionais e a idiotização da juventude hippie movida a drogas e a puro rock 'n' roll, com direito a Eric Clapton novamente participando em um diálogo no meio da música; mais adiante, outra letra que segue a questionar esses valores das famílias estadunidenses é Lonely Little Girl, que chega a ser uma continuação da faixa anterior praticamente; enquanto isso, a turma do sr. Francis Vincent Zappa segue a esculachar os ideais da juventude hippie em Take Your Clothes Off When You Dance, onde faziam piadas sobre o mundo ansiado pelos emblemas de paz e amor na época, com uma breve passagem pelo doowop, influência sonora dos Mothers  notavelmente; a faixa seguinte é nada mais que uma reprise de What's the Ugliest Part of Your Body? numa versão mais experimental com efeitos de gravação que nos divertem apenas; e mais uma vez, nós temos aqui outro grande destaque do disco, que é Mother People - peça mais que essencial com seus dois minutos simulando uma miniópera bem progressiva com suas passagens mais lentinhas e momentos rápidos, uma bela prova de que Zappa sabia conceber belas obras de arte da música, apenas isso - e com uma bela citação de um dos fragmentos sonoros de Lumpy Gravy no meio da música a complementar; e para fechar com tudo esse disco, uma grande viagem sonora - novamente instrumental - chamada The Crome Plated Megaphone of Destiny, outra piração musical que lembra até um pouco The Return of the Son of the Monster Magnet, do primeiro álbum da banda e aqui o conjunto de fragmentações sonoras nos dá uma sensação de que o disco era uma obra-prima à frente do nosso tempo, e não sou só eu que falo disto não.
Provando ser uma espécie de roleta-russa em cima do emblema hippie, do desbunde psicodélico e com a frase "Flower Power sucks!" (Flower power é uma porcaria - tradução) e também trazer algumas verdades sobre a decadência dos valores tradicionais do modo de vida das famílias americanas, com um pouco de baderna musical como pano de fundo principal e toda a irreverência que só Zappa tinha. Não bastava saírem ilesos dessa série de críticas aonde não perdoavam ninguém, acabaram se tornando uma forte presença na vanguarda e tornando-se referências importantes para a linguagem crítica do rock mais experimentalista. E após os episódios que mostravam o que era basicamente o Flower Power e seus emblemas de sexo livre, de música chapante, tudo isto teve seu preço: com a represália dos movimentos jovens e a euforia vivida, a violência reinou no festival de Altamont, organizado pelos Rolling Stones e com a presença dos Hell's Angels, que além de serem os seguranças, promoveram muita pancadaria e mortes como a de Meredith Hunter, um jovem negro de 18 anos que foi assassinado por, supostamente, portar uma arma naquele evento. E a morte repentina de ídolos como Jimi, Janis Joplin, Jim Morrison e outros causou o fim do sonho de uma juventude. E no meio disto, Zappa seguiu com sua brilhante discografia e trabalhos, promovendo clássicos atrás de clássicos, mas com outros temas para debater e toda a sua forma irreverente, embora tenha se mantido com os Mothers até o ano de 1975, quando eles lançam One Size Fits All, marcando o fim de um dos grandes grupos da geração 60/70 mas Zappa seguiria com sua carreira solo, desenvolvendo projetos brilhantes até sua morte em 4 de dezembro de 1993, em decorrência de um câncer na próstata, mas deixou uma boa quantidade de material inédito para seguir sendo apreciado até hoje, 23 anos depois. O disco ganhou destaque importante com sua linguagem extrovertida com o passar dos anos, e brevemente se tornaria um álbum notável em listas, como a dos 500 Maiores Álbuns de Todos os Tempos, da revista norte-americana Rolling Stone, levando um 297º lugar, e sem deixar de se tornar uma peça-chave do deboche promovido na época, uma obra-prima intocável da carreira de Zappa, um cara que soube fazer música boa e de qualidade, apesar de enquanto vivo ser notado como um louco, mas tendo mais respeito e mais fãs nos dias de hoje.
Set do disco:
1 - Are You Hung Up? (Frank Zappa)
2 - Who Needs The Peace Corps? (Frank Zappa)
3 - Concentration Moon (Frank Zappa)
4 - Mom & Dad (Frank Zappa)
5 - Telephone Conversation (Frank Zappa)
6 - Bow Tie Daddy (Frank Zappa)
7 - Harry, You're a Beast (Frank Zappa)
8 - What's the Ugliest Part of Your Body? (Frank Zappa)
9 - Absolutely Free (Frank Zappa)
10 - Flower Punk (Frank Zappa)
11 - Hot Poop (Frank Zappa)
12 - Nasal Retentive Calliope Music (Frank Zappa)
13 - Let's Make the Water Turn Black (Frank Zappa)
14 - The Idiot Bastard Son (Frank Zappa)
15 - Lonely Little Girl (Frank Zappa)
16 - Take Your Clothes Off When You Dance (Frank Zappa)
17 - What's the Ugliest Part of Your Body? - Reprise (Frank Zappa)
18 - Mother People (Frank Zappa)
19 - The Crome Plated Megaphone of Destiny (Frank Zappa)

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