Um disco indispensável: Ar de Rock - Rui Veloso (EMI Valentim de Carvalho, 1980)

Naquele início dos anos 1980, Portugal ainda vivia os ares de incertezas e dúvidas sobre o futuro após 6 anos da Revolução dos Cravos, que impôs um fim ao regime do Estado Novo, iniciado em princípios da década de 1930 por António de Oliveira Salazar, que durou até 1968 - mais de 35 anos no poder, e que teve como seu sucessor, Marcello Caetano - este último, que após a revolução, se viu obrigado a deixar o país e morreu em terras brasileiras no ano de 1980, o ano em que a música portuguesa se reerguera junto de seu povo naqueles tempos. Ícones surgiam para esquentar a cena e locais como a danceteria Trumps ou a casa de espetáculos Rock Rendez-Vous eram onde se descobriam bandas que despontavam no cenário musical e ali pisaram ícones célebres que se consagrariam de vez na história da nova música portuguesa e do rock português: desde bandas como GNR (Grupo Novo Rock), não aquele grupo americano famoso cujo guitarrista é um cabeludão que usa cartola), os Delfins, o pessoal do Táxi, os Peste & Sida, Rádio Macau, Heróis do Mar, os próprios Xutos & Pontapés - donos de uma popularidade imensa depois de seu surgimento em 1978, e também o lendário António Variações (1944-1984), que trabalhava como barbeiro mas que acabou se encontrando como cantor e compositor, com uma carreira efêmera que rendeu dois discos e entrando pra história da música portuguesa de cara, mas que falecera vítima do HIV - uma história bem semelhante com alguns ídolos do nosso rock brasileiro. O cantor Carlos Paião foi também outro personagem desta década, que tinha uma breve carreira musical, mas interrompida por um acidente automobilístico em 1988, logo em seu auge da carreira. Embora já tínhamos Jorge Palma, Fausto Bordalo Dias, Adriano Correia de Oliveira (que falecera em 1982 na sua cidade), o popular Sérgio Godinho - um cara que já foi por várias vertentes não somente do folk e do rock português, o polêmico e genial José Mário Branco entre outros, faltava um nome que soasse grande para levantar o rock português e esse nome existia. Era um tal de Rui Veloso, lisboeta e guitarrista de mão cheia, nascido em 30 de julho de 1957, foi criado no Porto durante a infância e juventude, seu pai era Aureliano Capela Veloso, um ex-presidente da Câmara Municipal do Porto e sobrinho paterno do general António Elísio Pires Veloso, ex-governador de São Tomé e Príncipe: logo o guri já vinha de uma família fortemente envolvida em política. Mas, o que Rui queria não era ser presidente ou governador não, o que ele queria fazer era música e aos seis anos aprendeu a tocar harmônica, mas depois despertou o interesse pela guitarra e os músicos que acabaram o influenciando foram Eric Clapton, B.B. King, John McLaughlin e Carlos Paredes, um dos maiores instrumentistas lusitanos que mudou o jeito de tocar guitarra portuguesa lá pelos anos 1960: enfim, assim nascia um rockstar à moda das terras das grandes navegações, dos festejos movidos a bacalhau e vinho.
Este é o Rui Veloso. E antes que perguntem neste post, não, ele não
é um parente português do nosso querido e também amado Caetano.
Nos anos 1970, conhecera aquele que se tornara seu parceiro inseparável: o jovem Carlos Tê, que compusera canções que renderiam vários hits mais adiante, e a origem de todo o fator que criara um artista como este veio através dos anos pós-25 de Abril, já em 1976, e não esperavam que um dia tudo aquilo viria a ser um estouro nacional. Até que um dia, com algumas demos gravadas em casa apenas voz-e-guitarra, que pararam nas mãos de Gabriela Schaaf, que estava a estourar com Homem Muito Brasa na época e que seria responsável por essa força, e também foi a mãe do músico que conseguira um contato com a Valentim de Carvalho, através do diretor do núcleo de Artistas & Repertório (A&R), o também músico e produtor António Pinho, descobriu  em ambos muito mais do que um simples compositor, o dono de um talento brilhante, e isso fez com que o músico e o letrista preparassem um repertório definitivo para uma fita e mostar aos executivos da casa. Algumas das canções foram gravadas em uma fita demo no então em construção Rock Rendez-Vous e dali para os estúdios RPC na cidade lisboeta. Parece que os conselhos da mãe de mandar as letras para as editoras deram certo, e mais em diante, a Valentim de Carvalho apostava muito no potencial de Rui para um disco, e ele procurou como seus acompanhantes na gravação o baixista Zé Nabo e o baterista Ramón Galarza, e com eles formaram um power trio chamado Rui Veloso & A Banda Sonora: o músico só conseguiu parceria com eles devido a alquimia sonora que os dois conceberam com José Cid em um disco conceitual chamado 10.000 Anos Depois entre Vénus e Marte, dois anos antes. Bom, o papo tava bom, já conhecemos melhor o gajo, agora vamos ao que nos interessa: o disco Ar de Rock foi lançado em abril de 1980, com a produção de António Pinho e também estampava-o na capa em um carro junto de uma criança numa foto em preto e branco clicada por Luís Vasconcelos. O álbum, de cara, tornou-se Disco de Ouro com 30 mil álbuns vendidos e a consagrá-lo pela revista Blitz como o primeiro entre os 40 melhores álbuns de rock português dos anos 80, mais adiante. A faixa que abre o disco, tem uma sonoridade bem punk, com uma história que parece ter sido inspirada após cruzar com uma daquelas paixões efêmeras que marcam: estamos falando de Rapariguinha do Shopping, de atmosfera poética bem original, e uma levada que vai do punk ao blues sem precisar manter-se focado em um tipo de som; já na faixa seguinte, intitulada Ai Quem Me Dera a Rolar Contigo Num Palheiro, que tem uma pegada meio Police e Galarza consegue provar porque ele é um dos maiores instrumentistas do país, a voz de Rui não deixa nos decepcionar musicalmente, e por esse som bem ska-punk com new wave deixa um gosto doce nos nossos ouvidos; em seguida temos Bairro do Oriente, um momento bem soft, calmo pelo som e aqui vai o destaque para Zé Nabo ao baixo e o violão Ovation executado por Rui, e que chega a converter-se do acústico para o elétrico com uma breve passagem de guitarra logo no fim da canção e pensem num solo original quando se ouve; mais adiante, outra acústica da safra Ar de Rock, em um tom intimista, Afurada tem a voz narrando uma história que envolve a jornada de um pescador no Porto em um dos pontos mais típicos do lugar, e que não nos decepciona em nenhum momento; mas o destaque principal deste álbum é a faixa que o consagrou de vez, Chico Fininho, o cara que curte uma trip de heroína e gingava pela rua ao som de Lou Reed, o músico faz deste personagem um clássico do rock português que deu o status de pai do rock, e nessa levada de blues-rock com direito a solo de harmônica que dá o astral que a música traz para nós; e abrindo de vez o lado oposto do disco, a faixa Sei de Uma Camponesa, uma canção mais suavizante também pelos arranjos, a baladinha consegue trazer um tom romântico pelos versos, mas que não deixa a desejar aqui pois acaba nos fazendo encantar logo de cara; e já em Miúda (Fora de Mim), fica confirmado que a guitarra de Veloso é algo mágico, só o solo de introdução acaba nos dando uma vontade de querer pegar e sair tocando ou cantarolando, uma das únicas em que Tê não escreveu a letra e sim António Pinho, o produtor, deu seu toque poético nesta letra; logo mais, temos outra pérola desplugada, intitulada Saiu Para a Rua, que não deixa a ser um exemplo de originalidade poética, com a história de um amor que deixa o lar com gosto de saudades e com tons detalhistas até, como os lugares e o estilo que a personagem tinha; e ainda podemos contar com mais delícias sonoras, como No Domingo Fui às Antas, a história de alguém que sai de casa em busca de diversão em uma das ruas de Lisboa e que acaba a beber todas, voltando pra casa enquanto a mulher dormia e acaba vomitando - resultado? ela diz que não o ama mais, mas ainda tem um momento guitar hero desse disco para aproveitar; em seguida temos uma instrumental que tem tudo a ver com o que esse homem tem de apresentar ao público, a Harmónica Azul, aonde Rui manda bala na gaita enquanto o bumbo marcado por Galarza acaba servindo como marcação de ritmo, fazendo disto um som agradável aos ouvidos; e o disco fecha definitivamente com outra pedrada, desta vez, é Donzela Diesel que acaba encerrando esse disco, e acaba dando pro gasto de vez, fazendo seu papel de que cumpriu bem a missão de mudar a cena com o seu som, 100% português e 100% rock n' roll sem perder a essência depois de 37 anos.
O disco acabaria mostrando que Rui não tinha incertezas sobre seu futuro na música, pelo contrário: após ele lançar este disco, ele sairia em turnê Portugal afora, vendendo 30 mil discos com este e voltando brevemente ao estúdio para conceber sua outra obra-prima: Fora de Moda, lançado em 1982 e apresentado outros grandes hits que o consagrariam em sua carreira. Hoje, após todo esse grande estouro, viu que fazer música ia dar certo e muito dinheiro e agora ele é aclamado mundialmente, após dividir o palco com o guitarrista Carlos Paredes, cantores portugueses como Vitorino, Sérgio Godinho, Jorge Palma e ainda tocou ao lado de uma das suas maiores influências da guitarra: o lendário B.B. King, um prestígio do qual ele mantêm orgulho. E já passados 20 anos depois que seu disco foi lançado, um tributo foi prestado ao disco, e os grupos Ala dos Namorados, Xutos & Pontapés, Mãos Mortas, Clã, além de Palma e também brasileiros como Paralamas do Sucesso que reinterpretaram Ai Quem Me Dera a Rolar Contigo Num Palheiro, e também os ainda juntos Barão Vermelho se entregaram de corpo e alma para para interpretar Sei de Uma Camponesa, além de três faixas inéditas que ficaram apenas nas demos, como Hold Me in a Decent Way, interpretada por Lúcia Moniz, além de Every Diamond executada pelo Nuno Bettencourt, guitarrista do Extreme (Moooooreeee thaaaaaan wooooooooordssss...) que é portuga, e Inner Street ganhou sua adaptação pelos Santos & Pecadores: o disco-tributo mostrou que este clássico conseguiu e ainda consegue atravessar gerações que gingavam pela rua ao som de Lou Reed ao lado da rapariguinha do shopping, com quem queriam rolar num palheiro e levá-la num domingo às Antas. Sem mais, Rui Veloso é definitivamente O CARA!
Set do disco:
1 - Rapariguinha do Shopping (Carlos Tê/Rui Veloso)
2 - Ai Quem Me Dera a Rolar Contigo Num Palheiro (Carlos Tê/Rui Veloso)
3 - Bairro do Oriente  (Carlos Tê/Rui Veloso)
4 - Afurada (Carlos Tê/Rui Veloso)
5 - Chico Fininho (Carlos Tê)
6 - Sei de Uma Camponesa (Carlos Tê/Rui Veloso)
7 - Miúda (Fora de Mim) (António Pinho/Rui Veloso)
8 - Saiu Para a Rua (Carlos Tê/Rui Veloso)
9 - No Domingo Fui às Antas (Carlos Tê/Rui Veloso)
10 - Harmónica Azul (Rui Veloso) - instrumental
11 - Donzela Diesel (António Pinho/Rui Veloso)

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