Um disco indispensável: The Complete Recordings - Robert Johnson (Columbia Records, 1990)

Se você quiser conhecer melhor os primórdios do bom e velho rock and roll, vamos começando aqui pelo gênero que originou o som do século XX: o blues. Nascido dos cantos religiosos africanos, conhecido como spirituals, que passava de pai para filho, logo no final do século XIX, o blues têm como suas origens também no sul dos Estados Unidos, mais principalmente nos estados da Louisiana, Alabama, Georgia e Mississippi, dos escravos que trabalhavam nas plantações de algodão, nos cantos que eram chamados de worksongs que embalavam suas intermináveis e sofridas jornadas de trabalho. Blues também traz um significado, cujo a palavra "blue" em inglês não quer dizer só azul, mas sim, tristeza, porém, o gênero só ganhou o conceito após o término da Guerra Civil, em 1865 e os temas cantados variavam, desde amor, sexo, traição, religião e trabalho. O ambiente das plantações de algodão lá no delta do rio Missisippi seria uma cena típica onde ex-escravos cantavam suas tristezas, angústias e decepções durante as jornadas de trabalho de sol a sol, muito retratada em vários filmes até. No ano de 1903, reza a história de que W.C. Handy, o possível "pai do blues" ouvira este tipo de música pela primeira vez viajando clandestinamente em um vagão de trem e observava um homem tocando violão com um canivete, eis que ele compôs o chamado primeiro blues da história naquele mesmo ano, intitulado St. Louis Blues, só que o mais certo é que o gênero nasceu de uma forma ambiental e mais progressiva do que somente uma simples canção. Lógico que a instrumentalização das worksongs foi o ponto principal para o surgimento do blues como estilo de música. O primeiro nome a ter sido responsável pela expansão do gênero foi o violonista Charley Patton (1891-1934), um baixinho (pelo fato de seus 1,65 de altura) vindo do delta do Missisippi que, muito antes de Jimi Hendrix, já era especialista em tocar de joelhos, atrás da cabeça e também de costas e dono de uma voz potente (movida a cigarros e whisky), que alcançava mais de 450 metros sem amplificadores e microfone e que gravou mais de 60 canções em menos de 25 anos de carreira, vindo a falecer numa fazenda, vítima de insuficiência cardíaca, mas mesmo assim deixou discípulos ao longo dos anos que se passaram. Outros nomes vieram a promover o Blues pelo sul norte-americano afora como os "Blinds" (cegos) Willie Johnson, Lemon Jefferson, Willie McTell, Joe Reynolds e Gary Davis, além de Big Bill Broonzy, Son House, Bo Carter, Leroy Carr, Sonny Boy Williamson, Willie Brown e um que se destaca pelo seu estilo único e próprio, criado por ele próprio: Robert Johnson, nascido em 8 de maio de 1911 (não se sabe bem qual data deste ano ele nasceu devido a registros de certidão, mas supostamente entre 1909 e 1912) que guarda muitos mistérios sobre sua vida e muitas lendas: a primeira, de que teria ido a uma encruzilhada das rodovias 61 e 49 em Clarksdale, no Missisippi com o seu violão e uma garrafa de whisky adulterado, onde teria ouvido o bend de uma gaita cromada e quanto menos se esperava, era ele: o teimoso, o odiado, o coisa-ruim, o demônio, o belzebu, o próprio Diabo - este, teria afinado um tom abaixo o instrumento de Johnson e o devolveu, tocando como se toca nas gravações feitas em menos de dois anos.
Capa do álbum "King of the Delta Blues Singers", de 1961: compilado reúne
 gravações de Robert Johnson feitas em 1936 e 1937 pela Vocalion Records
gravadas no Gunther Hotel e nos estúdios da Brunswick, no Texas.
(Divulgação/Columbia Records)
O rapaz, começando a fazer sucessos no Missisippi, gravaria ao longo de 29 músicas, logo após fazer o pacto em troca de habilidades para tocar bem guitarra e na qual desejava ser o maior artista de blues de todos os tempos, o que acabou sendo logo de cara, influenciando grandes figurões da guitarra como o próprio Eric Clapton, Brian Jones, Keith Richards, Jerry Garcia, Duane Allman, Muddy Waters, Jimi Hendrix e uma nova geração como Jack White e John Mayer, discípulos assumidos do estilo deste que é um gênio do blues. Sabendo que havia oportunidades em Jackson, na capital do Missisippi, procurou o dono de uma quitanda que também era olheiro de talentos, chamado H.C. Spier, este gostara tanto do músico e marcou um encontro com Ernie Ornette, este também ficou impressionado com o talento do moço e acabou lhes oferecendo algumas gravações em San Antonio, no Texas - onde lá ficava a gravadora Burnswick Records, e acreditem só: os estúdios eram em um quarto de hotel (sim!), situado no Gunther Hotel no quarto de número 414, onde ficavam o engenheiro de som e seu produtor Don Law e no outro, um microfone à espera de um talento. Em 23 de novembro de 1936, numa segunda-feira feia e muito ventosa, Johnson chega ao estúdio situado no Gunther Hotel e lá ele grava oito canções, receberia de 10 a 15 dólares por canção e pra piorar, nenhum direito autoral, algo raro naqueles tempos amargos do século XX. Três dias depois, voltaria e gravaria pela última vez naquele quarto a canção 32-20 Blues, e só oito meses depois, em junho de 1937 voltaria a pisar em um estúdio, gravando mais algumas canções seguido de alguns takes de suas canções. Naquele 1937, foram lançados nove compactos com material seu, o primeiro compacto tinha Terraplane Blues e também Kindhearted Woman Blues, lançados pelo selo Vocalion Records, selo este que mais tarde seria comprado pela Columbia (pertecente à Sony Music) e mais dois compactos lançados no ano seguinte, ainda vivo.
A lendária encruzilhada, onde supostamente Johnson teria feito o tal
pacto com o demônio, situado entre as estrada 61 e 49 em
Clarksdale, no Mississippi,com homenagem digna.
Porém, a sua história e sua fama enquanto vivo acabaria no calor do verão daquele 12 de agosto de 1938, quando escalado para tocar em uma loja de conveniência chamada Three Forks, não muito longe de Greenwood onde se faziam festas à noite para o povo ouvir e dançar, e nessa noite, Johnson tocaria junto de David "Honeyboy" Edwards e o músico trocava olhares com uma mulher, que se dizia ser a esposa do dono do bar ou uma antiga paixão querendo requentar de vez o romance. Segundo o que contou o próprio Sonny Boy Williamson, o guitarrista estava completamente de olho na mulher do que seria o dono da loja e após olhares flertados, ele fora beber um whisky supostamente envenenado, mas na época era comum aconselhar a qualquer um que não se podia beber com a garrafa aberta que teria sido entregue pela própria moça, possivelmente ou pelo dono da loja. Após às duas da manhã, ele não conseguia mais tocar após uma hora, quando ele começou a não se sentir totalmente bem, é levado para o seu barraco na 109 Young Street, e no dia 16 de agosto, após três dias de agonia, falecera em sua humilde residência, o mais estranho é que Johnson teria sobrevivido ao envenamento que saiu pelo suor, porém acabou pegando uma pneumonia nesse tempo e vindo a morrer numa idade precoce e considerada maldita: aos 27 anos, saía de cena um Robert Leroy Johnson com alguns compactos gravados e 29 canções (a trigésima teria sido uma exigência do engenheiro de som, mas até agora nenhuma evidência de que exista) e um legado imenso na história da música. Este seria mais um integrante do chamado "clube dos 27" do qual também faz parte Kurt Cobain (1967-1994), Jimi Hendrix (1942-1970), Brian Jones (1942-1969), Janis Joplin (1943-1970), Jim Morrison (1943-1971), Amy Winehouse (1983-2011) entre outros tantos músicos e personalidades. Os materiais de Johnson foram reunidos para uma compilação pela primeira vez em 1961, ou seja, vinte e três anos depois de sua morte, pela Columbia em uma compilação chamada King of the Delta Blues Singers, e cujo segundo volume só sairia quase dez anos depois com mais materiais inéditos, mas o conjunto da obra de Johnson em todo só estaria totalmente reunida mesmo em um box com dois CDs chamado The Complete Recordings, lançado pela Columbia em 1990 e que ganhara um Grammy Awards na categoria de Melhor Álbum Histórico naquela época. E é este mesmo The Complete Recordings do qual aqui iremos falar bem resumido neste post, o disco que melhor consegue reunir todo o conjunto da obra de Robert Johnson em pouco tempo de carreira, conseguiu fazer muito.
O álbum, vencedor de um Grammy na categoria Melhor Álbum Histórico,
receberia uma reedição digna em homenagem ao seu centenário de nascimento
intitulado "The Centennial Collection" 21 anos depois, em maio de 2011.
(Divulgação/Sony Music)
O disco, enfim, é um verdadeiro workshop dos primeiros tempos de blues, depois de Charley Patton, com registros de agosto de 1936 a junho de 1937 e, além das versões, podemos encontrar neste disco, os takes alternativos de 12 faixas deste disco, ao todo são 41 faixas, é mole não? Além disto, este registro conseguiu alcançar a vendagem de 1 milhão de cópias vendidas, ou seja: é um dos best sellers do blues por onde passa, em todos os quatro cantos do mundo e que, 21 anos depois, ganharia uma nova edição, intitulada The Centenial Collection, com uma faixa a mais que é um take alternativo de uma faixa gravada. Se delicie e viaje nas histórias contada em canções como Kind Hearted Woman Blues, I Believe I'll Dust My Brown, Sweet Home Chicago - um dos primeiros blues gravados em 1936, e uma das suas maiores composições, e em seguida o repertório continua com Ramblin' on My Mind, e na sequência, When You Got a Good Friend, Come on in My Kitchen, sem esquecermos de Terraplane Blues que foi um de seus primeiros registros, também temos aqui Phonograph Blues, além de 32-20 Blues, They're Red Hot, Dead Shrimp Blues, o clássico Crossroads Blues - a história sobre a encruzilhada que acabou virando influência para muitos guitarristas e sendo regravada pelo Cream (1968) e mais atualmente por John Mayer (2009), além de Walkin' Blues e Last Fair Deal Gone Down nos fazem viajar por histórias de amores, decepções e também mistérios que ligam ao pacto do bluesman com o demônio. E o bailado segue ainda, com Preachin' Blues (Up Jumped the Devil), além de If I Had Possession Over Judgement Day, Stones in My Passway, além de I'm a Steady Rollin' Man (essas duas músicas devem ter influenciado Muddy Waters a fazer a música Rollin' Stone, que influenciou um monte de gente e inclusive uma banda que nós conhecemos muito bem), ainda temos ao longo do bailado From Four Until Late, Hellhound on My Trail, seguido de Little Queen of Spades, mais Malted Milk, a história de um bêbado em Drunken Hearted Man e seus acordes grandiosos, a clássica Me and The Devil Blues - uma das mais emblemáticas de seu cancioneiro onde Johnson conta que ele e o próprio Diabo andam lado a lado, continuando com Stop Breakin' Down Blues, além de uma de suas últimas músicas gravadas que é Traveling Riverside Blues - gravada em 20 de junho de 1937, e pra complementar, Honeymoon Blues, seguidas de Love in Vain e encerrando de vez com Milkcow's Calf Blues complementando todo o repertório que faz parte de The Complete Recordings, uma verdadeira viagem por uma parte da história do gênero que antecedeu o rock e também uma viagem pela curta carreira de Robert Johnson, um gênio que merece seu valor a cada geração que passa.
Set do disco 1:
1 - Kind Hearted Woman Blues (Robert Johnson)
2 - Kind Hearted Woman Blues - take alternativo (Robert Johnson)
3 - I Believe I'll Dust My Brown (Robert Johnson)
4 - Sweet Home Chicago (Robert Johnson)
5 - Ramblin' on My Mind (Robert Johnson)
6 - Ramblin' on My Mind - take alternativo (Robert Johnson)
7 - When You Got a Good Friend (Robert Johnson)
8 - When You Got a Good Friend - take alternativo (Robert Johnson)
9 - Come on in My Kitchen (Robert Johnson)
10 - Come on in My Kitchen - take alternativo (Robert Johnson)
11 - Terraplane Blues (Robert Johnson) 
12 - Phonograph Blues (Robert Johnson)
13 - Phonograph Blues - take alternativo (Robert Johnson)
14 - 32-20 Blues (Robert Johnson)
15 - They're Red Hot (Robert Johnson)
16 - Dead Shrimp Blues (Robert Johnson) 
17 - Crossroads Blues (Robert Johnson)
18 - Crossroads Blues - take alternativo (Robert Johnson)
19 - Walkin' Blues (Robert Johnson)
20 - Last Fair Deal Gone Down (Robert Johnson)

Set do disco 2:
1 - Preachin' Blues (Up Jumped the Devil) (Robert Johnson)
2 - If I Had Possession Over Judgement Day (Robert Johnson)
3 - Stones in My Passway (Robert Johnson)
4 - I'm a Steady Rollin' Man (Robert Johnson)
5 - From Four Until Late (Robert Johnson)
6 - Hellhound on My Trail (Robert Johnson)
7 - Little Queen of Spades (Robert Johnson)
8 - Little Queen of Spades - take alternativo (Robert Johnson)
9 - Malted Milk (Robert Johnson)
10 - Drunken Hearted Man (Robert Johnson)
11 - Drunken Hearted Man - take alternativo (Robert Johnson)
12 - Me and The Devil Blues (Robert Johnson)
13 - Me and The Devil Blues - take alternativo (Robert Johnson)
14 - Stop Breakin' Down Blues - take alternativo (Robert Johnson) 
15 - Stop Breakin' Down Blues (Robert Johnson)
16 - Traveling Riverside Blues (Robert Johnson)
17 - Honeymoon Blues (Robert Johnson)
18 - Love in Vain - take alternativo (Robert Johnson)
19 - Love in Vain (Robert Johnson)
20 - Milkcow's Calf Blues - take alternativo (Robert Johnson)
21 - Milkcow's Calf Blues (Robert Johnson)

Comentários

  1. Olá Malcom, tudo bem?
    Estava eu fazendo algumas pesquisas para um novo livro que estou escrevendo (sou escritor). O livro é sobre um cara que faz um pacto com o travesso para escrever um livro - assim achei seu site/blog, gostei bastante das informações que conseguisse, tanto que conheci mais alguns músicos do blues.
    Sendo assim quis agradecê-lo.

    Abraço e tudo de bom!
    Fernando Moraes
    https://www.facebook.com/thriller.fernandomoraes/

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