Um disco indispensável: Os Mutantes - Os Mutantes (Polydor/CBD, 1968)

O ano de 1968 foi o ano da música brasileira. Enquanto Roberto, Erasmo e Wanderléa diziam adeus ao programa Jovem Guarda, já que o movimento tinha se evoluído e seu principal ídolo (Roberto Carlos) estava partindo para um rumo mais romântico, enquanto os velhos ídolos da bossa nova Tom Jobim e João Gilberto estavam fazendo sucesso pelo mundo afora, fazendo shows lotados nos Estados Unidos (e também no resto do mundo) e mantendo contato com seus discípulos Edu Lobo, Jorge Ben dentre outros. Agora, o ano sofreria o impacto dos protestos em Paris e do movimento Black Power nos Estados Unidos, o som eletrizante e alucinante de The Doors, Velvet Underground, Jimi Hendrix, Janis Joplin, The Who, Rolling Stones e dos Beatles, além dos movimentos de contracultura e de vanguarda que influenciavam um novo jeito de fazer arte pelo mundo afora, e tudo isso acabaria mudando de vez aos poucos a cena artística/musical/cultural daquela época. E uma prova disso é o grupo Os Mutantes, que trazendo influências do rock que era feito naquela época com música clássica e a MPB, uma espécie de salada musical que era o Tropicalismo, movimento do qual o grupo fazia parte, ao lado de seus mentores, os cantores e compositores baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil, os poetas José Carlos Capinam e Torquato Neto, o artista Rogério Duarte e os maestros Júlio Medaglia, Damiano Cozzella e Rogério Duprat, o mais presente dos maestros no movimento tropicalista que começou em outubro de 1967, quando Gil cantou Domingo no Parque no III Festival de Música Popular Brasileira acompanhado de três jovens simpáticos: dois rapazes e uma moça loira tocando pratos e percussão, esse trio era os irmãos Sérgio Dias Baptista e Arnaldo Dias Baptistas e a "moça loira" era nada menos do que Rita Lee, com apenas 18 anos, apadrinhados por um futuro ídolo mundial da MPB, embora a música tivesse levado o 2º lugar, seguido da campeã Ponteio, de Edu Lobo e José Carlos Capinam e cantado pelo primeiro e por Marília Medalha, o 3º lugar ficou com Chico Buarque com sua Roda-Viva acompanhado pelo MPB-4 e o 4º lugar com Alegria, Alegria, de Caetano Veloso que teve o acompanhamento dos Beat Boys, grupo argentino que fez do festival o mais "elétrico", cheio de guitarras e fugindo dos padrões mais puristas da MPB. Mesmo assim, consagraria de vez o grupo que começou na Pompeia em 1966, quando Rita foi apresentada aos meninos Sérgio e Arnaldo por meio de uma amiga em comum, e formaram um grupo chamado O'Seis, que resultou-se em apenas um compacto com as faixas O Suicida e Apocalipse e após assistir a uma apresentação, o então "Pequeno Príncipe" Ronnie Von os convidou para algumas apresentações em seu programa televisivo na TV Record e sugeriu um nome diferente de O'Seis e a partir de um livro que estava lendo naquela época, chamado O Império dos Mutantes, de Stefan Wul, veio o nome da banda que acabou eletrificando a Música Popular Brasileira. Em 1968, depois de tantas conversas no início do ano, a banda assina um contrato com a Polydor após a performance do festival em 1967 e logo no meio da gravação do disco, o grupo é convidado para participar do disco-manifesto Tropicália ou Panis Et Circensis, na qual Caetano, Gil, Gal Costa, Tom Zé e Nara Leão participaram e lançaram com enorme repercussão, resultando-se em clássicos como Bat-Macumba, Panis et Circenses, Lindoneia, Enquanto Seu Lobo Não Vem, Coração Materno, Baby entre outros temas que deram uma definição mais do que moderna para o novo movimento da música popular brasileira, que romperia com os padrões de tradicionalismo e evolução lenta que estava acontecendo naquele tempo. Desta vez, junto do álbum Tropicália, a estreia em disco dos Mutantes também trazeria uma enorme importância para a Música Popular Brasileira e para o rock brasileiro em geral. 
Contracapa do álbum de estreia, com ilustrações feitas
pelos próprios integrantes e as suas assinaturas.

Isso é bem notável pelos primeiros acordes de Panis Et Circenses, que soa bem psicodélico e conta com as influências da música Penny Lane dos Beatles, com uma história que trazia uma linguagem cinematográfica, falando sobre as pessoas na sala de jantar e no final, vidros quebrando e conversas aleatórias encerravam a mais psicodélica das canções brasileiras; a música seguinte, chamada A Minha Menina, composta pelo músico e compositor Jorge Ben trouxe um pouco a antecipação do samba-rock, samba-soul com Jorge arranhando as cordas do violão e Sérgio eletrificando o samba com a guitarra elétrica e tornou-se um clássico instantâneo da música popular brasileira, Jorge até regravou num medley do seu álbum intitulado 10 Anos Depois (1973) pela Philips, comemorando uma década de carreira e de gravadora; já em O Relógio, a voz doce da jovem Rita Lee e a melodia de uma canção delicada ao estilo pop francês (chanson), acaba se transformando em uma total viagem sonora e com uma parte bem mais pesada e elétrica; na sequência vem o Nordeste sendo representado em Adeus, Maria Fulô, clássico de Sivuca e imortalizado por Carmélia Alves e por Miriam Makeba, famosa naquela época devido ao seu hit Pata-Pata, uma espécie de reaproximação da música nordestina com o resto do Brasil e isso se deve também aos tropicalistas Gil e Caetano; enquanto Caetano seguia sendo regravado por vários artistas, como Claudette Soares e até por um jovem Billy Bond, argentino nascido na Itália, o trio também reinterpretava o velho baiano com a canção Baby, clássico que foi imortalizado por Gal Costa no disco Tropicália ou Panis Et Circensis e depois pelos Mutantes nessa versão, psicodélica e cheia de guitarras alucinantes; o doowop e o charleston, junto dos antigos standards do jazz formam a base principal para a canção Senhor F, cujo piano foi executado pela mãe de Sérgio e Arnaldo, dona Clarisse Leite, e cuja letra fala sobre as tecnologias de comunicação em massa, como a rádio e a televisão já estarem presente na maioria dos lares de classe média aqui no Brasil naqueles tempos, encerrando completamente o lado A do vinil, com sopros e risadas ao estilo mutante.
O trio em Cannes (França) em janeiro de 1969, se preparando para a
performance brasileira no famoso MIDEM, na qual cantaram
a música "Caminhante Noturno" em inglês,
O lado B do disco apresenta uma letra cuja influência da umbanda com o personagem da DC Comics, Batman acabaram se convertendo em uma canção chamada Bat-Macumba, de Gil e na qual o irmão de Sérgio e Arnaldo, Cláudio César Dias Baptista fez os efeitos de distorção sonora (Cláudio César era visto como o Professor Pardal do grupo, por lidar com os efeitos e distorções que se tornariam marca registrada do grupo nos discos) além de se notar muito as batidas de percussão terem influência de ritmos do candomblé e até mesmo da poesia concreta, que se formos ler a letra da música, ela tem o formato de K notando bem; as canções interpretadas em outro idioma do grupo jamais será esquecidas, e prova disso era em Le Premier Bonheur du Jour, famoso sucesso de folk-rock no idioma francês da cantora Françoise Hardy e aqui com a voz doce de Rita Lee ganhou um tom de bolero mais psicodélico, foi a única música a não ser cantado em português neste disco, e, curioso é que o ritmo foi gravado com uma bombinha Flit (insetcida) o que deixou surpreso a equipe de gravação no estúdio; as colaborações dos gurus tropicalistas foi essencial para o disco, como no caso de Trem Fantasma, composta por Caetano e pelo trio e que conta com arranjos bem elaborados e uma letra que lembra uma aventura em um dos mais conhecidos brinquedos dos parques de diversões; mas até em traduções o grupo se supera mesmo, como na faixa Tempo no Tempo, que é uma versão original de Once Was a Time I Thought, do Mamas and the Papas lançada em 1967, acrescentando metais ao estilo de trilha clássica de cinema e acrescentada de sinos após os últimos versos; o final fica por conta de Ave Genghis Khan, um tema quase instrumental que conta com vocalises e risadas, além de órgão e contou ainda com Dr. César Dias Baptista, pai de Sérgio e Arnaldo, que inverteram a voz dele com efeitos, dando uma impresssão diferente e fazendo com que ele parecesse estar cantando em russo -bem engraçado por sinal.
O disco acabou sendo um dos mais influentes na Música Popular Brasileira e causando choque nos mais puristas da classe conservadora da MPB, ao verem que estavam eletrificando e estereofonizando o mais puro som feito no país, porém estavam querendo mudar a situação ao lado de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Rogério Duprat (1932-2006), o eterno maestro tropicalista, além de ter sido 1968 o ano em que os Mutantes roubaram a cena não somente através deste disco, mas de sua presença em festivais (já falamos isso no post sobre o segundo álbum da banda, de 1969, leia aqui) e conseguirem ter reconhecimento mundial mais tarde graças aos seus mais famosos fãs, dentre eles o ex-Talking Heads, David Byrne, Sean Lennon (filho do eterno beatle John) e até de um ídolo da garotada de hoje e dos anos 90 chamado Kurt Cobain, que declarou ser muito fã da banda durante sua estadia por aqui no festival Hollywood Rock, um ano antes de sua morte. Mas aí, já é outra história pra contar! Vale lembrar de que este álbum é muito presente em listas importantes, só a recém-fechada filial brasileira da revista Rolling Stone colocou em 9° lugar na lista dos 100 Maiores Álbuns de Música Brasileira, enquanto a revista Al Borde destacou esse álbum nos 250 Mejores Álbumes del Rock Latino com a posição de número 21 e a Mojo colocou em 12° entre os 50 discos mais experimentais de sempre, à frente de nomes como Beatles, Pink Floyd e Frank Zappa - é mole? E tem mais: além de aparecer entre vários álbuns de 1968 na lista dos 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer, é o disco brasileiro que nos enche de orgulho em uma lista de peso da Pitchfork dos 200 Melhores Discos dos Anos 1960, com o 51° lugar - resumindo, Os Mutantes são demais!
Set do disco:
1 - Panis et Circenses (Gilberto Gil/Caetano Veloso)
2 - A Minha Menina (Jorge Ben) - participação especial de Jorge Ben (violão)
3 - O Relógio (Rita Lee/Sérgio Dias/Arnaldo Baptista)
4 - Adeus, Maria Fulô (Humberto Teixeira/Sivuca)
5 - Baby (Caetano Veloso)
6 - Senhor F (Rita Lee/Sérgio Dias/Arnaldo Baptista) - participação de Clarisse Leite (piano)
7 - Bat-Macumba (Gilberto Gil)
8 - Le Premier Bonheur du Jour (Frank Gérald/Jean Renard)
9 - Trem-Fantasma (Caetano Veloso/Rita Lee/Sérgio Dias/Arnaldo Baptista)
10 - Tempo no Tempo (Once Was a Time I Thought) (John Philps/versão em português: Rita Lee/Sérgio Dias/Arnaldo Baptista)
11 - Ave Genghis Khan (Rita Lee/Sérgio Dias/Arnaldo Baptista)

Comentários

  1. Olá, gostei da resenha sobre este disco dos Mutantes, excelente. Muito bem explicado sobre a banda e as faixas. Abraços

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