Fabulosos Calavera - Los Fabulosos Cadillacs (Ariola/BMG Music Argentina, 1997)

Acho que para a gente falar da consagrada virada dos anos 80 para os 90 da aclamada banda argentina de rock Los Fabulosos Cadillacs, temos que deixar bem claro que a história deles é cheia de saltos desde a junção de amigos em 1984 até gravarem Bares y Fondas, o primeiro disco da banda em 1986 e que apresenta temas como Silencio, Hospital e a clássica Basta de Llamarse Así, na qual o vocalista Gabriel Fernández Capello homenageava sua irmã Tamara, que apelidou ele de Vicentico e assim tornou-se seu nome artístico. Com o segundo LP e um contrato com a gravadora CBS, a mesma de nomes em peso na época como o Sumo - grupo alternativo que misturava rock, ska, reggae e outros gêneros que tinha além de músicos como Ricardo Mollo e o jornalista Roberto Pettinatto, tinha o excêntrico e irreverente vocalista Luca Prodan, e a consagrada pela América Latina inteira, o trio Soda Stereo com 3 discos em peso, sendo que o terceiro intitulado Signos já estava os levando a excursionar até no México - os Cadillacs começaram a fazer sucesso pela Argentina de verdade com Yo Te Avisé!!, onde a banda apresentava seu ska irreverente e seu deboche em temas como Mi Novia Se Cayó en Un Pozo Ciego, um aviso em forma de canção em Yo No Me Sentaría en Tu Mesa e na faixa-título um aviso aos que duvidavam da banda no começo - e seguiu atual ainda esse título. A prova cabal que precisavam para mostrar a diversificação sonora que a banda fazia estava logo no terceiro LP intitulado El Ritmo Mundial já definia bem a proposta musical da banda, tendo como convidada de peso a diva cubana e rainha da música latina Celia Cruz cantando o hit Vasos Vacíos - enfim, Vicentico (vocais), Flavio Cianciarulo "Sr. Flavio" (baixo e vocais), Anibal Rigozzi (guitarras), Mario Siperman (teclados), Fernando Ricciardi (bateria), Luciano Giugno (percussão), Daniel Lozano (trompete), Sergio Rotman (saxofone) e Naco Goldifnger (saxofone) mostraram que o som deles era para todos curtirem e dançarem, se neste disco eles homenageiam Clash com Revolución Rock, e logo com um problema que custou ao grupo a demissão de um empresário "homenageado" no quarto disco intitulado El Satánico Dr. Cadillac, onde além da faixa-título contou também com Contrabando de Amor, uma versão em espanhol de A Message To You Rudy do grupo inglês de Ska The Specials, intitulado Rudy (Un Mensaje Para Vos) e também El Golpe de Tu Corazón e outra música que servia como definição para o som dos Cadillacs - El Sonido Joven de América, o disco foi lançado no momento em que Raúl Alfonsín passava a presidência da Argentina para Carlos Menem, eleito o presidente naquele ano, e com ele viria o pior - crise econômica, hiperinflação e argentinos entrando na pobreza. Os Cadillacs viveram esse problema de perto e logo com Volumen 5, editado em 1990, precisaram iniciar uma nova fase, mesmo com poucos shows dentro do país, já vinham sendo sucesso no México, Chile, Peru, Colômbia e até nos Estados Unidos - onde gravariam o sexto álbum intitulado El León logo após eles fazerem um maxi-single com a versão deles para um hit latino da época Sopa de Caracol - com El León, a banda volta a crescer artisticamente  e de cara preparam uma coletânea como presente aos fãs pelos 10 anos de carreira, Vasos Vacíos trazia além de velhos sucessos, algumas canções com gravações novas e dois temas inéditos, dentre elas a reggae-axé Matador onde além de homenagearem Víctor Jara, músico chileno morto pelas tropas do governno Pinochet em 1973, trouxeram um som que lembra muito a batucada baiana do Olodum e com isso botou de volta os Cadillacs no topo das paradas, fazendo o grupo ser a febre do verão de 1994. Ainda durante a feitura de El León, a banda sofreria uma primeira reformulação desde o segundo disco - saíam Naco Goldfinger e Luciano Giugno e entravam Fernando Albareda ao trombone e Gerardo "Toto" Rotblat na percussão - que fizeram muita diferença nos novos rumos da banda. No final de 1994, a banda apronta nos lendários estúdios Compass Point em Nassau, nas Bahamas ao lado de Chris Frantz e Tina Weymouth dos Talking Heads o disco mais punk e mais politizado em versos Rey Azúcar, onde desta vez os convidados são Mick Jones - o próprio - do The Clash e Big Audio Dynamite dando voz em Mal Bicho, e a musa Debbie Harry cantando os versos em inglês de Strawberry Fields Forever, além de Valeria Bertucelli - esposa de Vicentico - recitando versos em Saco Azul, seria um disco muito ligado à literatura e em especial a Eduardo Galeano - digamos que As Veias Abertas da América Latina é uma influência forte pra poética do álbum, e o último pela Sony Music.
Com o fim do contrato com a gravadora - que na época tinha como principais destaques da música latina Ricky Martin e a jovem colombiana Shakira, era hora de outra casa fonográfica investir na carreira deles, mas não sem antes uma outra mudança dentro da banda. A guitarra ficaria vaga após Anibal Rigozzi deixar de ser o músico para desta vez assumir outro papel dentro da banda, o de empresário ao lado de Tomás Cookman, que já vinha agenciando a banda no momento em que começam a ficar populares no exterior, principalmente nos EUA. Com a saída de Rigozzi para cuidar dos negócios da banda e trabalhar nos bastidores desta vez, a banda escolhe como seu substituto um jovem músico chamado Ariel Sanzo, também conhecido como Minimal, e junta-se logo nas gravações do primeiro disco da banda para o selo Ariola, da BMG Music por onde também estava Soda Stereo em momento pré-separação, já que em 20 de setembro de 1997 seria a noite de despedida da banda no estádio do River Plate. Membro novo, o grupo inicia a concepção do próximo disco em fins de 1996 em Buenos Aires e em abril e maio de 1997 viajam para Nassau novamente gravarem no Compass Point com o produtor musical KC Porter, que desde El León já estava acompanhando a evolução musical da banda, e participa nos vocais, piano e percussão tendo alguns vocais gravados no Panamá, e em Buenos Aires gravou no estúdio De Pasto Al Abasto no começo das gravações. Dentre os músicos convidados, temos Américo Bellotto no trompete (nada a ver com o guitarrista Tony Bellotto dos Titãs em parentesco), Mimi Maura e Rigozzi nos vocais e Florián - filho de Vicentico - dando uma canja também cantando. A proposta do disco seria distorcer os mitos sobre a morte, levar um pouco esse universo da vida após a morte pra um lado mais surreal, influenciado pelo humor de Frank Zappa em suas canções e a literatura argentina - em especial do escritor Ernesto Sabato, influenciados também pela visão dos mexicanos sobre a morte e o Día de los Muertos, data tão tradicional no país dos guacamoles celebrado de 31 de outubro a 2 de novembro todo ano. Baseado nesse conceito, eles decidiram lançar o oitavo álbum de carreira - bem, nono, se contar com a compilação de sucessos regravados, originais e novos Vasos Vacíos - intitulado Fabulosos Calavera editado em 28 de julho de 1997, poucos dias depois de outra banda argentina da casa lançar seu trabalho, Los Auténticos Decadentes editara Cualquiera Puede Cantar!!! que também fez sucesso naquele ano, traz um encarte impressionante com pinturas de Vicentico e Flavio mais a capa e arte interna de Martiniano Arce com fotos de José Armetta e de José María Cristelli, mas nenhuma da banda, porém das pinturas e de lugares da cidade de Buenos Aires que dão esse detalhe. É um daqueles discos em que você já vê a capa e se fascina de imediato com o conteúdo, seja o do encarte ou da música dentro do disco, e isso funciona perfeitamente aqui quando descobrimos.
O disco já começa logo de cara com as batidas percussivas de Rotblat que dão a deixa para Lozano, Rotman e Albareda mais o restante fazerem o peso sonoro em El Muerto, a salsa-rock que fala de um morto-vivo que zanza pelas ruas e ainda cita o filho de Vicentico, Florián, com um quê de Soul Sacrifice de Santana que depois migra pro hardcore em certos momentos, com Flavio dando uma gutural e a guitarra viajandona de Minimal se destacando; outro tema que entra no universo fantasioso da morte e das caveiras e é destaque se chama Surfer Calavera, um esqueleto que pega onda nas águas de Mar del Plata com seus dentes dourados, definitivamente um surfista mortal que ainda vive pegando onda, aqui ganha a pegada mais voltada pro hardcore do que só ska e ritmos afrocaribenhos como é notório as referências, e os metais se destacam muito assim como a passagem de cada estilo, do som latino pro ska e em seguida pra um rock mais seco e grosso; a seguir, a banda ainda desfila um tema que mantêm fidelidade ao conceito que é El Carnicero de Giles/Sueño - a primeira parte é mais punk, incluindo com Flavio cantando com gutural e do nada a bateria e o piano levam a uma amtosfera mais ao jazz em que Vicentico canta sobre o sonho com a própria morte e como ele imagina essa sua partida sem muita dor, e essa mudança do punk com um som mais agressivo para um jazz movido a sofisticação com um piano tocado por Siperman e o baixo leve de Cianciarulo dão essa prova de que os Cadillacs acertam mesmo em cheio; a seguir, uma faixa de destaque do repertório que se salva e traz uma forte influência de um nome da literatura argentina, Sabato é uma reverência ao livro Sobre Herois e Tumbas (1961) do escritor Ernesto Sabato, na canção falando sobre um morto que transita por Buenos Aires soturna e que traz além do rock pesado enérgico, uma pegada bem anos 60 pelos arranjos com um quê de psicodelia e pop da época com o peso estilo Cadillac que fortalece a sonoridade; na sequência, a banda oferece um rock de ares mais enraizados, porém sem perder a essência da banda, Howen é uma narrativa da pessoa que some do porto e da cidade de uma forma fantasmagórica e assume que depois pode rir assim, não sendo um defeito, a música que é um country bem estilo honktonky dos anos 50 é da autoria de Ricciardi e com a banda (Vicentico, Flavio, Anibal e mais KC) fazendo coros, a guitarra de Minimal lembrando um ambiente bem de filme de faroeste dos anos 1960 ao escutarmos perfeitamente; adiante, não perdendo no caminho como deve ser de lei, a banda nos apresenta outra belíssima canção do repertório que não passa batido ao escutarmos, já que A Amigo J.V. mergulha por um caminho bem descritivo de um amigo que não pode escapar de seu destino que é a morte, assim como o de muitos nós neste mundo, mergulhando a fundo nessa atmosfera mais jazz estilo anos 1940/50 destacando esse piano mais delicado e essa bateria mais à vontade sem esquecer da guitarra que lembra um solo de blues que se destaca e Vicentico tocando acordeom de forma linda aqui; a faixa seguinte é mais do que uma qualquer entre outras tantas do repertório - Hoy Lloré Canción é uma ode sobre a dor-de-cotovelo e a canção, uma prova de quem duvidava das canções e sobre como ela sustem o coração e expressa a razão, uma salsa no melhor estilo cadillac com a percussão de Toto matando a pau e a canja vocal do ícone salseiro Rubén Blades (que assina a canção com Sr. Flavio) sendo a grande participação especial do disco; mais adiante, um grande destaque do repertório que se tornou hit absoluto na época foi Calaveras y Diablitos uma descrição além da arte da morte, traz uma frase que se destaca que é a vida é para gozar e viver ela melhor, um reggae bem lento, traz um super solo de sax de Rotman e os vocais femininos de Mimi Maura (esposa de Sergio) que começa com um jazz com tons afrocaribenhos que é a percussão e o piano que dão esse toque; com mais pérolas a desfilarem no repertório, os Cadillacs ainda oferecem mais temas com a fina qualidade a exemplo de Il Pajarito, rockão matador do mais absurdo peso que fala de um eu-lírico que pede em uma prece para uma santa a piedade a alguém que está a morrer no mar, o som que traz uma fusão de salsa com hardcore e thrash metal se destaca muito pela guitarra e bateria sujas além dos efeitos de sintetizadores que lembram algo de anos 70 e termina com uma pegada de valsa rock mais delicada sem muito exagero; e por falar em delicadeza, a faixa seguinte têm um tanto disso na sonoridade da faixa a seguir - Niño Diamante é aquela canção que você se pega ouvindo e se impressionando com a narrativa de um personagem que possa ser o próprio Deus que rege o mundo e programa o destino, traz dessa vez um jazz com referências à Take Five, o clássico tema do quarteto de Dave Brubeck onde o piano se supera nas melodias similares ao clássico do Brubeck, e a seção rítmica (bateria e percussão) acertam em cheio, assim como as guitarras de Minimal são um ingrediente cheio pra um prato sonoro bom de degustar; quem ainda pensa que a banda já abusou de tanto som afrocaribenho, jazz, punk é porque vocês mal imaginam o quão expandiram mais a mente pra outras sonoridades, em Piazzolla - criação brilhante de Flavio, diga-se de passagem - é uma homenagem digna da banda ao tango, à cidade de Buenos Aires e ao músico Astor Piazzolla (de quem Flavio homenageou logo na época do disco Astor, seu primeiro filho) nos versos, e transita por esses caminhos entre o tango e o rock com metais vibrantes e o baixo de Cianciarulo mais Siperman no órgão mandando ver com tudo; em diante, o repertório da banda segue sendo um prato cheio quando somos surpreendidos com Amnesia, última contribuição de Rotman antes de deixar a banda, fala sobre essa coisa de esquecer das coisas e da sensação de que não se lembra do que passou, uma  considerada balada acústica mais com presença de piano, violão, percussão e órgão além dos trompetes de Lozano e Bellotto (não é o Tony) e que no final vira uma pauleira com metais e guitarras conectadas que dá essa química sonora funcionável; o encerramento deste clássico fecha de vez com um posfácio da morte poeticamente em A.D.R.B. (En Busca Eterna), uma espécie de considerações finais de alguém que está próximo de morrer e que nela acaba refltindo sobre como a morte é sua saída triunfal para a eternidade, o arranjo que flerta com o tango dá essa beleza que perdura pela canção desde a guitarra de Ariel até o piano e a marcação rítmica da bateria mais a voz de Vicentico que traz um tom preciso para a história contada.
O que era para ser mais uma obra-prima de Vicentico, Flavio e sua turminha acabou se tornando o grande sucesso daquele ano de 1997 - sim, o sucesso do ano e ainda rendeu a famosa certificação do disco de ouro e, adiante, o grupo recebeu a consagração máxima ganhando um Grammy na categoria de Melhor Disco Latino de Rock Alternativo vencendo os colombianos Aterciopelados e os mexicanos do Café Tacvba - é, nada mal mesmo. A banda excursionou com o disco até o final de 1998 pelos EUA, México, Espanha e com shows mais diversificados na Argentina, como o Calavera Experimental Concherto realizados durante o final de junho no Teatro Broadway tendo como convidada a atriz Valeria Bertucelli recitando García Lorca, e Daniel Melingo - produtor do primeiro disco e saxofonista. O sucesso de Fabulosos Calavera conseguiu colocar na banda uma imagem amadurecida e mais adulta nas canções, e isso foi apenas a deixa para que voltassem a gravar mais em solo argentino onde realizaram o nono disco intitulado La Marcha del Golazo Solitario, mas aí já é uma outra história. O disco foi eleito na lista dos 250 Melhores Álbuns de Rock Iberoamericanos organizado pela revista Al Borde obtendo o 16º lugar, enquanto a Rolling Stone da matriz (EUA) decidiu organizar uma com os 10 melhores álbuns de rock latino em que nessa lista ostentam o segundo lugar provando que é uma obra atemporal indispensável na discografia da música em castelhano.
Set do disco:
1 - El Muerto (Flavio Cianciarulo)
2 - Surfer Calavera (Flavio Cianciarulo)
3 - El Carnicero de Giles/Sueño (Gabriel "Vicentico" Fernández Capello/Flavio Cianciarulo)
4 - Sabato (Flavio Cianciarulo)
5 - Howen (Fernando Ricciardi)
6 - A Amigo J.V. (Gabriel "Vicentico" Fernández Capello)
7 - Hoy Lloré Canción (Flavio Cianciarulo/Rubén Blades)
8 - Calaveras y Diablitos (Flavio Cianciarulo)
9 - Il Pajarito (Gabriel "Vicentico" Fernández Capello)
10 - Niño Diamante (Gabriel "Vicentico" Fernández Capello)
11 - Piazzolla (Flavio Cianciarulo)
12 - Amnesia (Sergio Rotman)
13 - A.D.R.B. (En Busca Eterna)(Gabriel "Vicentico" Fernández Capello)

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