Um disco indispensável: Julie Is Her Name - Julie London (Liberty Records, 1955)

Ao buscarmos de onde surgiu a mistura da bossa nova, podemos entender que é a combinação perfeita da mistura do nosso samba, um pouquinho do baião com a leveza e o perfeccionismo do jazz. Ok, aí beleza. Mas, quais foram os nomes do jazz responsáveis por esta influência? Bom, temos aí figuras como Miles Davis, Dave Brubeck, Chet Baker, John Coltrane, Charlie Parker e até mesmo o próprio Sinatra, que tinha uma sofisticação, e o primeiro artista a ter um fã clube inaugurado no país, dividindo com Dick Farney a admiração por ambos. O jeito soft e cool de tocar era uma porta de conexão entre os instrumentais e até mesmo canções de gente como Julie London, que apresentava ali um estilo mais íntimo, sedutor como o canto da sereia, inconfundível e incomparável, e sempre acompanhada de músicos que sabiam o que os amantes do gênero estavam a ouvir. Nascida como Nancy Gayle Peck em 26 de setembro de 1926 na cidade estadunidense de Santa Rosa, situada no estado da Califórnia e filha única do casal de Josephine Taylor e Jack Peck, que tinham um conjunto de dança e canto vaudeville. Aos 3 anos mudaram-se para San Bernardino, onde estreou artisticamente no programa de rádio que os pais tinham, ela ainda era vista como uma menina tímida e sem muita autoconfiança, mas demonstrava uma admiração pela cantora Billie Holiday, de quem a mãe também era admiradora. Aos 14 anos muda-se para a cidade onde qualquer sonho de artista poderia tornar-se uma realidade, ou um pesadelo, Hollywood: onde respira-se puramente à arte do cinema e da música em especial, o bairro de Los Angeles que depende-se da sétima arte, e com um país totalmente recuperado da amarga Grande Depressão que atingira o país logo na crise de 1929, mas vivenciando o auge da II Guerra Mundial, os EUA formavam com Inglaterra e França o núcleo dos Aliados, sendo o contraponto ao extremista Eixo formado pela Alemanha, Itália e Japão - este último que teve a ousadia de bombardear a base naval americana de Pearl Harbor, no Havaí, e, menos de quatro anos depois, os americanos decidiram enviar uma bomba atômica nas cidades de Hiroshima e Nagazaki, culminando de vez no fim da II Guerra. Mas o que mais nos interessa aqui é como a carreira de Nancy, ou melhor, Julie London, começou a acontecer: cantando à noite em algumas casas noturnas de Los Angeles, formou-se na famosa Hollywood Professional School em 1945, após já começar também a trabalhar como atriz fazendo papeis em produções menos populares da época. Havia sido descoberta por Sue Carol, agente de talentos e esposa do ator Alan Ladd, enquanto trabalhava operando um elevador, e com isso, um contrato com a agência dela foi a porta de entrada para o meio artístico. Iniciou atuando na suspense Nabonga, e, em seguida, foi para a Warner Bros. Pictures, onde fez Task Force em 1949 - àquela altura, Julie havia casado-se em 1947 com Jack Webb, com quem teve duas filhas chamadas Stacey e Lisa. No começo dos anos 1950, parecia que tudo iria dar um sentido diferente, o contrato com a Warner estava sendo cancelado, e ao mesmo tempo, decidiu dar mais tempo para estar com a família, típio de uma american housewife, mas, conheceríamos mais dela o outro lado além da atriz... e lado esse que marcou o imaginário de muitos àquela época.
1955 era o ano do nascer do rock and roll... em Memphis, um caminhoneiro branco nascido em Tupelo (Mississippi) chamado Elvis Presley era a sensação com That's Alright Mama, seu primeiro hit ainda na Sun Records, e foi a deixa para Chuck Berry, Little Richard, Fats Domino, Jerry Lee Lewis e até um ex-aspirante a countrystar chamado Bill Haley a acontecerem de vez, ao mesmo tempo em que o ator James Dean, sexy symbol daqueles tempos e ícone da rebeldia adolescente, morria no auge da sua popularidade deixando filmes como Rebel Without a Cause (aqui conhecido como Juventude Transviada) em um trágico acidente, mostrando como era viver nos extremos em risco. E no mesmo 1955, London estava cantando em um clube de jazz da cidade de Los Angeles enquanto alguém descobria naquela atriz um talento incrível - era Simon Waronker, que a indicou para o produtor e futuro marido da loura-sensação Bobby Troup. Waronker conseguiu a ela a chance dela poder investir nesse seu lado cantora e assinando com a sua recém-fundada gravadora, a Liberty Records, um selo mais independente - distribuído pela Transamerica Corporation, e com isso, grava um disco acompanhada de dois músicos: o baixista Ray Leatherwood e o guitarista Barney Kessel, que mostrava criar melodias que casassem com a voz sensual de London nas 13 faixas de Julie Is Her Name, gravado em dois dias, 8 e 9 de agosto, com o lançamento em dezembro, e produzido por Troup, que se encantou com sua voz vindo a casar-se com ela permanecendo juntos deste período até o falecimento deste em 1999. Começamos o álbum logo com a música que imortalizou a voz desta mulher, logo Cry Me a River, um dos clássicos do jazz, na qual ela encanta de cara com este standard, e, sem sombra de dúvidas, uma das melhores partes da qúmica voz-encantadora-com-guitarra-melódica-delicada, Kessel mostra estar bem afinado como guitarrista, assim como a moçoila de Santa Rosa, que trouxe para esta criação de Arthur Hamilton de 1953 um status definitivo de clássico, vindo a ser gravado por Shirley Bassey, Barbra Streisand, Diana Krall, Frank Sinara JUNIOR (não sendo o Ol' Blue Eyes, mas o filho dele) entre outros; essa leveza na voz e no instrumental perdura pelo disco todo, e em faixas como I Should Care o papo é entendido bem a sério mesmo: com uma letra onde ela garante que, talvez ela não encontre alguém mais amável que o seu ex ou atual parceiro de relação, é de deixar a gente apaixonado pra valer; outro tema do chamado american songbook que acaba ganhando seu tom intimista com a guitarra é I'm In the Mood For Love, criação de Dorothy Fields e Jimmy McCugh por volta dos anos 1930, mantêm o primor e não nos decepciona em nenhum acorde e timbre, perfeito em cada detalhe escutado; sobrando ainda a tocante e maravilhosa I'm Glad There Is You, o baixo grave de Leatherwood consegue ser muito bem ouvido com cuidado, quando vemos que a criação de Paul Madera e Jimmy Dorsey de 1941 consegue ganhar uma sofisticação mais acomodável, e a voz não erra o tom; enquanto seguimos por esta viagem ao cancioneiro americano mais popularesco, ela busca ir mais além, com o tema do musical Show Boat, de 1927 - menos de 30 anos antes do LP, Can't Help That Lovin' Man de Jerome Kern e Oscar Hammerstein II, fala de alguém que não pode evitar amar um homem, mesmo com as condições e os problemas que atormentam uma relação - Julie segue a aperfeiçoar canções brilhantes como esta; em seguida, uma das músicas mais curtas deste LP, porém, com uma das mais belas letras e o título mais clichê do mundo - sim, mesmo vindo de um gênio como Cole Porter, não tem como dizer que I Love You é o título de canção mais clichê do mundo, se juntar um Baby antes ou depois fica mais redundante, mas a letra é de uma beleza incomparável e a forma de expressar o que sente pela pessoa amada aqui não nos passa batido e dá vontade de cantar para alguém que amamos muito, e com esse arranjo simples, porém, maravilhoso; outro compositor que desfila nas interpretações magníficas da americana é Irving Berlin, nascido no ainda Império Russo, e que consolidou-se como um grande compositor durante a primeira metade do século XX, tem aqui sua Say It Isn't So, é claro, Kessel, Leatherwood e London mantêm uma química perfeita para a canção funcionar bem aqui - e que deu certo, só de ouvir a base instrumental, já prova o talento que há destes músicos; dentre outras duplas brilhantes de compositores que criaram suas obras para o cinema e para musicais da Broadway, Richard Rodgers e Lorenz Hart foi outra que acertaram nas belas criações: It Never Entered My Mind passa até um pouco batido nesta versão, mas, vendo que não houve decepções, salva-se plena a interpretação como um todo; uma faixa que merece todo seu destaque, mesmo ficando escondida nas canções favoritas do seu repertório e que faz jus à fidelidade do conceito sonoro do arranjo é Easy Street, na qual ela fala sobre uma rua onde ninguém trabalha, brincam sobre os cavalos, e cuja vida é boa para quem mora, nada mal, a alquimia sonora segue a dar certo nesta faixa - sem nenhuma falha; como não podemos deixar de falar do repertório, ainda sobra tempo para gravar até os irmãos Gershwin - George e Ira tiveram redescoberto pela cantriz outro tema de musical 'S Wonderful, desta vez do lendário Funny Face (1927), mas, aqui sentimos a voz doce mantendo o seu encanto e o charme de sempre; ainda por estes caminhos brilhantes e cheios de perfeições sonoras, temos No Moon At All que mostra o quão autêntico conseguem ser na hora de interpretarem uma obra de arte como a décima-primeira canção do LP; em diante, ainda procuramos ouvir muito mais da beleza vocal através de canções que levam nomes de mulheres, como no caso de Laura inspirada no filme homônimo de 1945 e feita para o mesmo, sobre uma mulher que soa como uma lembrança para alguém por beijos e olhares, mas conclui-se que era apenas um sonho - o baixo não perde o seu toque no acompanhamento sonoro; e o disco fecha logo de cara com outra canção com nome de filme - logo Gone With the Wind, embora não haja ligações com o flime de 1939 dirigido por Victor Fleming, mas na novela literária escrita por Margaret Mitchell que deu origem ao mesmo, e dá a entender que ela gira em torno desta história envolvendo o amor de uma moça por um nobre sulista que casará com sua prima e a Guerra Civil estadunidense - o belo da música mesmo fica para a guitarra de Kessel, já a voz de London continua plena e no mesmo tom.
Okay, vamos lá: existe sim muitas razões deste álbum ser um típico registro de mais um cantor interpretando o American Songbook, mas, o que marca aqui é a forma como ela dá vida a estas canções do seu jeito, e o acompanhamento instrumental que ajuda muito com essa vibe mais intimista. Sem palavras a descrever. Este álbum fez muito sucesso inclusive aqui no Brasil, que despertou o interesse de uma juventude apaixonante pela capa que estampava Julie seminua, e a guitarra de Kessel vindo a influenciar um certo nome da bossa nova chamado Roberto Menescal, um dos nomes da guitarra brasileira ainda na ativa. Pode até não figurar nas grandes listas, mas, só quem conhece clássicos como este sabe o devido valor que esta belezinha merece.
Set do disco:
1 - Cry Me a River (Arthur Hamilton)
2 - I Should Care (Paul Wexton/Axel Stordahl/Sammy Cahn)
3 - I'm In the Mood For Love (Jimmy McCugh/Dorothy Fields)
4 - I'm Glad There Is You (Jimmy Dorsey/Paul Madera)
5 - Can't Help That Lovin' Man (Jerome Kern/Oscar Hammerstein II)
6 - I Love You (Cole Porter)
7 - Say It Isn't So (Irving Berlin)
8 - It Never Entered My Mind (Richard Rodgers/Lorenz Hart)
9 - Easy Street (Alan Rankin Jones/Bud Carlton)
10 - 'S Wonderful (George Gershwin/Ira Gershwin)
11 - No Moon At All (Dave Mann/Redd Evans)
12 - Laura (David Raskin/Johnny Mercer)
13 - Gone With the Wind (Allie Wrubel/Herbert Magidson)

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