Um disco indispensável: Exodus - Bob Marley & The Wailers (Tuff Gong/Island Records, 1977)

Para um bom entendedor, meia palavra já basta compreender que o reggae jamaicano conseguiu saltar da barreira que separava esse gênero caribenho do resto do mundo graças a seu principal embaixador, o genial Bob Marley. Desde que remontou um conjunto de ska chamado The Wailing Wailers formado por ele mais Neville "Bunny" Livingstone e Peter Tosh nos anos 60 ao voltar do Delaware onde viu tanta injustiça, preconceito e dificuldades para um negro na América que mostrava-se a grande potência, mas que temia em dar valor a quem realmente merecia, e voltou para a Jamaica inspirado nos ensinamentos do rasafarianismo, uma religião que tinha muito do modo de vida e de filosofia, mas tinha como uma espécie de Deus um imperador etíope chamado Haile Selassie, conhecido também como Jah Rastafari. O rastafarianismo acabou mudando a vida de Bob Marley e levou seus ensinamentos para as canções, mensagens criticando as guerras, a desigualdade, pregando o amor como ele sempre fez (achou que era só sobre puxar uma verdinha???), e com os Wailers iniciou-se também uma busca pela nova identidade sonora - uma vez que o ska já era consolidado como o principal gênero, embora seja um pouco derivado do R&B mais o mento e o calipso de Trinidad & Tobago. Em fins dos anos 1960, surge o rocksteady, já sendo um pouco mais lento que o irmão ska, mas com um pouco menos de impacto, embora grupos como The Maytals, The Gaylads e The Paragons fossem os grandes propagadores desse segmento, que foi uma espécie de crescimento da árvore genealógica da música jamaicana, cujo fruto maior acabou sendo brotado por volta de 1968/69 com o nascimento definitivo do reggae. Marley, Tosh e Livingstone, depois de terem um flop como donos de uma própria fonográfica chamada Wail 'N' Soul, se aliam a Lee "Scratch" Perry que estava inovando na produção musical daquele país, e inicia-se a nova fase dos Wailers: com três álbuns gravados, e uma tentativa mal-sucedida de gravarem um material pela CBS em meio à excursão com Johnny Nash, conterrâneo que havia gravado Stir It Up, o que os colocaram em maus lençóis, seguem na Jamaica sem muito êxito até que Bob vai a Londres atrás do produtor Chris Blackwell para conseguir um contrato na Island Records e sai direto com a resposta positiva. Volta a Kingston, onde gravam Catch a Fire nos lendários estúdios Dynamic Sound, porém, Blackwell insere overdubs gravados na Inglaterra e mesmo assim o álbum sai em abril de 1973 com duas capas diferentes, porém, faz o sucesso que poucos esperavam - dali em diante, excursões pela Europa e por um canto dos EUA ajudam a conquistar um público, mas Tosh e Bunny saem dando a chance de Bob recriar os Wailers com uma nova roupagem na formação: Aston "Familyman" Barrett no baixo mais o irmão Carlton Barrett na bateria, Al Anderson na guitarra, Jean Roussell no órgão Hammond, Bernard "Touter" Harvey nos pianos e órgão e a presença feminina das I-Three contando com Rita Marley, Marcia Grifiths e Judy Mowatt nos vocais de apoio. Com o terceiro LP e o primeiro da nova pele da banda Natty Dread provando que eles conseguiram ir além e também que os Wailers não perderam a essência que havia inicialmente com Bunny e Peter - que decidiram sagrar-se com suas carreiras individuais.
A prova definitiva de que eles soavam perfeitamente ao vivo foi em julho de 1975 quando gravaram no Lyceum Theatre o marcante álbum Live!, o veredito de que ao vivo soavam bem mais potentes do que somente no estúdio, consagrando de vez No Woman No Cry, derivada do LP Natty Dread, nas paradas de sucesso. No ano seguinte ao disco ao vivo, Marley e a sua trupe de músicos talentosos decidiram botar na praça meses depois o brilhante, porém, quase esquecido da discografia Rastaman Vibration, que, apesar de apresentar temas tão marcantes como Positive Vibration, que teve um status de principal single do LP, mas era pouco. Naquele ano de 1976, havia a marcante corrida eleitoral para presidente jamaicano entre Michael Manley e Edward Seaga, de visões políticas muito diferentes e controversas, a Jamaica, que já tinha um quadro extremo de violência promovida pelas gangues encabeçadas pelos partidos, tanto o de Manley quanto o de Seaga. Marley tinha amigos de ambos os lados, e seu posicionamento era muito cobrado quanto à política, e sempre ficou no caminho discreto, e havia sido escalado para um evento encabeçado por Manley que serviria para amenizar o caos naquele país, o One Love, na qual dividiria o palco com Stevie Wonder, mas, às vésperas do evento, sofreu um atentado na sua casa em 56 Hope Road - o QG do reggae, e ali Marley sofreu uma tentativa de assassinato ao lado de Rita Marley e de seu então empresário Don Taylor. Mesmo com todas as incertezas, recuperou-se rapidamente e foi para a multidão cantar pela paz, pelos que lutam por ela e pela esperança de um mundo melhor ao lado de Wonder - que havia emplacado a sua Bíblia do soul, o triplo Songs in The Key of Life (1976) que havia feito um enorme sucesso mundo afora. Depois do concerto pacifista, o reggaestar mais Taylor e o designer gráfico Neville Garrick foram para Londres, onde poderia trabalhar longe dos conflitos político-sociais que atormentavam seu chão natal, o restante da trupe veio mais adiante, e com uma reformulação nos Wailers na qual contaria com um dos seus melhores guitarristas, Junior Marvin e o percussionista Alvin "Seeco" Patterson, novamente com os irmãos Barrett, Downe e as I-Three - e ali na Inglaterra descobrira o punk que tinha um flerte com seu gênero, bandas como The Clash, The Damned, The Jam e Dr. Feelgood haviam sido citadas em uma de suas novas canções - Punk Reggae Party, e o Clash tinha uma afinidade com a música jamaicana, literalmente abusando (no bom sentido) de referências sonoras do ska e do reggae, e o ska era revivido pelos britânicos com o movimento two-tone propagado por bandas como Madness e Specials principalmente, The Beat, Bodysnatchers e até mesmo os Police bebiam puramente na fonte regueira. O punk vinha com uma mensagem social, fortemente politizada e com a missão de revoltar e confundir a todos, e vinha de contraponto ao groove pesado e dançante da música discothèque propagado por Donna Summer, Chic, Gloria Gaynor, KC & The Suunshine Band e em especial os Bee Gees, que lançaram a trilha sonora do clássico filme-manifesto discothèque Os Embalos de Sábado à Noite naquele 1977 - para os punks, era como se soltassem glitter e purpurina pela pista de dança enquanto os revoltados vomitavam cru mesmo. Excursionando pela América, Ásia e Europa afora, ele solta nas lojas no dia 3 de junho o que pode ser considerado o seu melhor trabalho, mais politizado e ativista do que nunca, Exodus o enraíza num discurso que serve na carapuça do gênio de Nine Mile.
Quando começamos a escutar o disco, sentimos uma vibe rolar total logo nos primeiros acordes de Natural Mystic, uma canção em que faz uma ligação poética com o final dos tempos, em especial o Dia do Julgamento Final, onde Marley - como um profeta - prevê um misticismo natural, uma força da natureza pelo ar e pede ao ouvinte que sinta ao ouvir - o órgão com o baixo e a bateria constroem uma excelente alquimia nesta música; em diante, ele ainda nos apresenta outra pérola de brilho próprio neste repertório - So Much Things To Say não decepciona e nem deixa o primor se desgastar, o órgão aqui e o efeito de guitarra wahwah mostram sua potência em uma canção na qual ele se indigna com aqueles que contrariam tudo, ignorando questões raciais e espirituais importantes, as I-Threes ajudam muito nos vocais; adiante, o repertório ainda nos proporciona a reflexões da vida inspirada em versos bíblicos, como no caos de Guiltiness - onde ele refere-se aos "pães da tristeza" como se estivesse a confrontar os atiradores, tentando dizer que sua consciência está clara, enquanto seus depredadores/atiradores seguem vivendo com culpa e consciência manchada pelo resto de suas vidas, o tom de quem canta sobre isso pode soar como uma reflexão do atentado que o cantor sofrera ainda bem antes; não passando batido também, o grupo ainda mostra o poder da sonoridade regueira em The Heaten com uma introdução chapante vinda do wahwah e do órgão, é a mais curta do disco e com uma letra de ares rastafáris, motivacional e positiva para valer; em seguida, somos surpreendidos por um power chord bem típico do reggae através de Exodus - o movimento do povo de Jah, o célebre louvor ao imperador etíope visto como Deus, e o título vem do segundo livro do Velho Testamento do Torá, o livro sagrado dos judeus e com um dos melhores instrumentais deste trabalho até agora, com seus quase 8 minutos que poderiam ser intermináveis, e soam como um mantra literalmente; na sequência, temos aqui um grande hit que marcou o ano de 1977 entre punks e discos, Jamming traz na letra uma bela narrativa sobre querer divertir-se com alguém sem perder a pose, a levada divertida acaba nos conquistando e temos adiante um lado B repleto de clássicos deste LP; uma outra faixa romântica que soa como uma baladinha, mas não totalmente lenta, pois o embalo do reggae é outro papo - Waiting in Vain pelas entrelinhas soa como uma história pessoal, provavelmente sobre seu romance com a modelo Cindy Breakspeare, então Miss Mundo 1976 e mãe de um dos filhos do cantor (Damian) e, embora fosse casado com Rita, ele descreve essa espera em vão como o período do relacionamento, os teclados e o solo de guitarra casam perfeitamente com o arranjo instrumental que não deixa errar um acorde sequer em pérolas como esta; e, falando em pérolas, outra que abrilhanta o lado B cheio de sucessos também é Turn Your Lights Down Low, com um clima poético bem hot - na qual temos o que pode ser uma história de sexo, inspirado (mais uma vez) provavelmente no seu namorinho com Cindy, e essa história de noite de sexo dá para sentir o clima até no arranjo, a base mais soft com um ar quentíssimo que chega a lembrar uma coisa cerca do soul daquela época; na sequência, temos de vez aquele que pode ser considerado o grande clássico deste álbum e a favorita de muitos no top 10, 15, 20, se formos imaginar que Three Little Birds tem um grande valor pelos especialistas em marleylogia - uma letra que prova a motivação que ele nos mostra, que não faz sentido se preocupar demais com as coisas, pois a vida lhe abrirá muitos caminhos melhores - quer você tirando uma nota ruim em uma prova, terminado com um relacionamento duradouro ou tenha perdido um(a) amig@ ou parente importante, tudo pode melhorar, aqui a canção acaba dando um tom positivista para o ouvinte; e para terminar esta preciosidade, temos aqui outro grande hino do seu conjunto da obra, One Love de sua autoria mesclado com um tema dos anos 60 de Curtis Mayfield chamado People Get Ready, e fala da união de todas as pessoas não importando sexo, cor, raça, de que é possível uma unificação social se todos nós nos juntarmos e celebrarmos a nossa humanidade, e com essa música alto-astral puro no ambiente poético-musical, temos aqui a prova de que Exodus é como bons vinhos: quanto mais duradouros, mais fáceis de degustarmos.
Com a ascensão dos dois movimentos opostos, ambos se saíram vencidos por contarem com a mesma influência do reggae em algumas canções, e nem podemos desmerecer tamanha influência deste gênero universal influente no mundo até hoje. Dias antes do lançamento, ele apresentou o álbum com a sua superbanda no teatro Rainbow no começo de junho, consagrando logo de cara o sucesso deste trabalho. Em seguida, seguiu peregrinando com suas mensagens de esperança, união da humanidade, amor e a divulgar as sábias palavras de Jah mundo afora, e em 23 de março lança o LP seguinte intitulado Kaya, novamente fazendo um grande estouro com mais outras canções de fácil assimilação popular - mas aí já é uma outra história. O disco marcou muitas gerações, influenciando diversos músicos que se sentiram abençoados pela música e pela poesia marleyiana, que consagrou até mesmo em listas como a da revista Time como o melhor álbum de todos os tempos, a revista Rolling Stone colocou este mesmo álbum na posição de n° 169 na célebre lista dos 500 Maiores Álbuns de Todos os Tempos, e seu legado segue sendo difundido pelos seus discípulos por esta Terra afora.
Set do disco:
1 - Natural Mystic (Bob Marley)
2 - So Much Things To Say (Bob Marley)
3 - Guiltiness (Bob Marley)
4 - The Heaten (Bob Marley)
5 - Exodus (Bob Marley)
6 - Jamming (Bob Marley)
7 - Waiting in Vain (Bob Marley)
8 - Turn Your Lights Down Low (Bob Marley)
9 - Three Little Birds (Bob Marley)
10 - One Love (Bob Marley)/People Get Ready (Curtis Mayfield)

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