Um disco indispensável: Canções Praieiras - Dorival Caymmi (Odeon, 1954)

Suavidade, beleza, primor e originalidade: existem outros mais elementos que possam combinar com o baiano Dorival Caymmi? O homem que definitivamente inventou a bossa nova antes de Tom, Vinicius e João, aquele que levou as belezas da Bahia para o resto do país através de suas músicas assim como Jorge Amado fez por meio de seus livros? O mesmo que influenciou não somente João, mas como Gil, Caetano, Novos Baianos e uma legião de nomes da música popular brasileira? Sim! Ele mesmo! Não podemos desmerecer o talento e brilhantismo desse rapaz nascido em Salvador no dia 30 de abril de 1914, descendente de italianos pelo lado paterno, filho de uma dona de casa e de um funcionário público que era músico nas horas vagas, Dorival também era bisneto de um dos funcionários que ajudariam na manutenção do Elevador Lacerda, e desde cedo mostrava sua vocação para a música. Com um pai que tocava violão, piano e bandolim, mais a mãe - mestiça de portugueses e africanos - que cantava apenas no lar, ele descobriu ali que tinha em sua frente uma atração enorme pela arte. Deixa de estudar aos treze anos e começa a trabalhar em um periódico baiano chamado O Imparcial, e assim nascia sua caminhada pelo sucesso, mas, o jornal fechou-se em 1929 e Caymmi vende bebidas por um bom tempo até começar a criar suas obras, a primeira foi bem em 1930 intitulada Lá no Sertão, e dali em diante a sua carreira foi crescendo mais e mais chegando ao elenco principal do Rádio Clube da Bahia como cantor e violonista, até que certo dia, um diretor desta rádio sugere que ele tente a sorte fora da Bahia, e aí que temos a mesma circunstância que faria muitos nordestinos saírem de suas terras para conquistarem o resto do país. A mesma que, no ano de 1939, fez com que um pernambucano chamado Luiz Gonzaga - depois de ter dado baixa no Exército - permanecesse no Rio de Janeiro tentando a sorte até os princípios de 1940 quando consegue ser notado no programa de Ary Barroso e, em seguida, um contrato com a RCA Victor. Naquela época, o Brasil vivia o chamado Estado Novo, uma espécie de regime governamental autoritário ainda com Getúlio Vargas que usou a Lei de Gérson para favorecer-se no poder, e, na época, havia um forte ar nacionalista, patriótico, ufanista que perdurou até a queda de Vargas em 1945, e nesse meio da história temos o mais trágico e inesquecível capítulo do século XX: a Segunda Guerra Mundial. De um lado, temos o bloco do Eixo: o Japão comandado pelo imperador Hirohito, a Alemanha com seu regime estadista centrado no nazismo com seu principal chefe de Estado, Adolf Hitler, e na Itália o fascismo de Benito Mussolini - o nazismo alemão ficou marcado pela tentativa de soberania mundial, pelas atrocidades como perseguições aos judeus e comunistas (o Estado Novo acabou meio que por esse caminho) e o holocausto, hoje tão reprimido. E no outro núcleo europeu da Guerra estavam os Aliados: a França governada por Charles De Gaulle, a Inglaterra com seu emblemático primeiro-ministro Winston Churchill, e os EUA sob a administração política de Franklin Delano Roosevelt, mais tarde, a URSS governada por Stalin. No meio desse mundo tão impossível de buscarmos a paz, com a guerra acontecendo, o Brasil respirava puramente a era de ouro do rádio, com as emissoras nas grandes cidades disputando pela audiência e cada uma com seus melhores contratados, e Caymmi começou a fazer sua história pela rádio inicialmente na Tupi, como calouro, e começou a cantar dois dias por semana no programa Dragão da Rua Larga, e ali apresentou sua obra-prima O Que É Que a Baiana Tem? justo em 1938, e com isso, lançando a canção que ajudou Carmen Miranda, uma luso-brasileira, a ficar conhecida mundialmente com sua versão interpretada para o filme Banana da Terra nesse mesmo ano.
Vamos para 15 anos depois disto tudo: Caymmi já era um artista consagrado da música brasileira, logo também tornou-se um compositor renomado assim como Noel Rosa (1910-1937), Pixinguinha (1897-1973), Orestes Barbosa (1893-1966), Cartola (1908-1980), Custódio Mesquita (1910-1945), o próprio Gonzaga entre outros. E com isso surge, não se sabe como, gravou somente voz-e-violão por idos de 1953 ou no começo de 1954 um conjunto de canções que falavam da vida no mar, dos pescadores, sem a presença de outros músicos, intimista como pouco se ouviu. Lançado em 1954, é perfeitíssimo para ouvir em dias de praia, ora vazia com pouca gente sob as areias ou as águas, e sentir o mar como poucos sentiram, Canções Praieiras é um registro importante de boa parte de seu conjunto da obra provando que o mar o trouxe inspirações que o imortalizaram para sempre. O destaque já fica pela célebre capa, uma pintura que lembra Di Cavalcanti, mas é uma obra do próprio cantor - que tinha um faro artístico excelente - e sobrava tempo para suas artes que iam além da música, mostrando pescadores em sua rotina, simplesmente um poema para olhos e ouvidos. Quando começamos a escutar o álbum, temos logo de cara Quem Vem Pra Beira do Mar, marcada pelo seu assovio e o larará que substituem camadas instrumentais de orquestras, e fala com primor sobre os encantos de quem caminha pela beira de uma praia e jamais volta, e isso nos surpreende pelo encanto marítimo da suavidade musical presente; na sequência, temos O Bem do Mar que segue com a introdução violão + assovios e vocalises, numa história sobre um pescador com dois amores - um na terra e outro nas águas que é o próprio mar que o carrega para as pescas, e soa como um louvor aos amores deste pescador que vive um sentimento profundo por ambos; continuando por aqui com a visão cronista do baiano sobre o mundo praieiro, ainda temos O Mar com um belo riff de violão no começo instrumental e uma narrativa do pescador Pedro que morreu enqunato pescava e cujo corpo foi encontrado nas areias, deixando Rosinha de Chica entristecida e doida ao saber, uma bela história contada; outra canção com um belo instrumental de abertura é Pescaria (Canoeiro) que detalha bem a vida destes que vão em busca de peixes que vão puxando a rede para atrair os animais e presente para as moças, e o ritmo acelerado como se fosse um trem marcado pelo seu violão é que surpreende; como muitos de nós sabemos, boa parte do mar oceânico é salgado, mas, segundo o poeta baiano, É Doce Morrer no Mar - sim, ele fala sobre o quão doce é morrer sob as ondas verdes das águas de forma melódica, mas fica mais doce ainda com sua voz mesmo; das tantas músicas com narrativas emocionantes de histórias pelas praias, temos A Jangada Voltou Só, de ares cinematográficos sobre uma jangada e dois homens que partiram e sumiram sob um pé de vento que separou-os de seu veleiro, sempre destacando o vocal e o violão soberano; sem perdermos o rumo das crônicas marítimas caymmianas, ainda sobra tempo para falarmos sobre A Lenda do Abaeté, falando sobre uma lagoa situada em Salvador cheia de mistérios, e não deixa passar batido aqui; fechando este LP, ainda temos aqui Saudade de Itapoan, um clássico de seu repertório, reverenciando as coisas desta terra e pedindo que esta saudade o deixe, encerrando assim este belo álbum, tão perfeito, mesmo com 23 minutos que parecem durar mais ainda.
Ninguém imaginaria que um disco de 10 polegadas como este já ajudaria muito a construir ainda mais a discografia da música brasileira, ainda mais somente com voz e violão, uma vez que era comum nos anos 50 os artistas gravarem sob o luxuoso acompanhamento de orquestra regida por nomes como Radamés Gnattali, Leo Peracchi, Guerra-Peixe, Lindolpho Gaya, Severino Araújo, Waldir Calmon, Lyrio Panicali e um jovem ainda desconhecido de nome Antonio Carlos Jobim - que, inspirado nas belezas naturais, trouxe um bucolismo meio caymmiano para o que se tornou a bossa nova. Inicia-se a saga brilhante da discografia do gênio que mudou para sempre a história da música popular brasileira (ou da Bahia?) com canções enaltecendo as belezas, os mistérios, os encantos de sua terra, que ajudou a construir as genéticas da bossa nova e do tropicalismo que se sentiram influenciados pela sua forma simples e bela de fazer música. Em 2007, a revista Rolling Stone, celebrando o primeiro ano da filial brasileira, decidiu escolher os 100 Melhores Álbuns de Música Brasileira - e este disco foi escolhido para ocupar a 77ª posição, e, segundo o texto de Márcio Cruz, imortalizou musicalmente o inconsciente de um povo. Um povo que ainda segue a louvá-lo Bahia e Brasil afora mesmo depois de ter partido em agosto de 2008 aos 94 anos a tempo de ver suas crônicas do mar baiano ser reverenciada por fãs - cantores, anônimos entre outros.
Set do disco:
1 - Quem Vem Pra Beira do Mar (Dorival Caymmi)
2 - O Bem do Mar (Dorival Caymmi)
3 - O Mar (Dorival Caymmi)
4 - Pescaria (Canoeiro) (Dorival Caymmi)
5 - É Doce Morrer no Mar (Dorival Caymmi)
6 - A Jangada Voltou Só (Dorival Caymmi)
7 - A Lenda do Abaeté (Dorival Caymmi)
8 - Saudade de Itapoan (Dorival Caymmi)

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