Um disco indispensável: Getz/Gilberto - Stan Getz & João Gilberto (Verve Records, 1964)

Parece brincadeira quando falamos isto, mas, podemos considerar a bossa nova como o maior acontecimento cultural brasileiro do século XX - ou o segundo, terceiro, quarto, pois temos o Cinema Novo, as artes modernas, o tropicalismo e por aí vai. Quando notamos que o boom desse mix de samba com um jazz sofisticado, mais leve, conquistaria os mais atenciosos ouvidos por novidades que fugiam daquelas imitações tupiniquins de boleros, das típicas marchinhas de carnaval com suas letras fortes - estas, com os dias contados a partir de 1964, e mantendo a música brasileira mais jovem, prafrentex e influente graças a um baiano vindo de Juazeiro que foi tentar a sorte na Cidade Maravilhosa (a.k.a. Rio de Janeiro) tentando um pouco de tudo na vida artística até um certo tempo, chamado João Gilberto, que veio para substituir Jonas Silva em um conjunto chamado Garotos da Lua, e cuja sorte não teve muito devido aos "perdidos" que dava nos colegas de grupo volta-e-meia, além de não ter uma rotina comum, morando sempre em apartamentos de amigos, e nunca satisfeito com algumas propostas, sempre querendo algo seu. Desses encontros pela noite carioca, encontrava em alguns bares um pianista que tocava de forma mágica, trabalhava insanamente para botar comida e dinheiro em casa, e trabalhava como arranjador na gravadora Continental - este era Antonio Carlos Jobim, que, depois encontrara nas composições com Newton Mendonça, Dolores Duran e Billy Blanco, porém, o parceiro que mais ajudou a construir a bossa nova foi o diplomata e poeta Vinicius de Moraes, e com este, as melhores composições vieram a dar um toque que faltava, embora Mendonça tenha sido inicialmente o mais frequente dos parceiros, pois o Poetinha trabalhava como embaixador e fazendo parte do Itamaraty. Tom foi para a Odeon trabalhar como arranjador, produtor e diretor musical, e participava de diversos trabalhos por lá, como os de Sylvia Telles, e de João, ex-namorado de Sylvia e que voltara para o Rio refazer o percurso da sua carreira musical após passagens por Porto Alegre, Diamantina e Juazeiro. Como o cupido acaba por ter um cuidado na hora de flechar os pares perfeitos, o mesmo não teve como mirar duas flechas em João a Vinicius e Tom, que nascia ali a santíssima trindade da bossa que ajudara em um projeto de Irineu Garcia, dono do selo independente Festa, em uma série de interpretações para as poesias de Vinicius inicialmente com a voz do próprio, mas depois com a alternativa de uma cantora - primeiro Dolores Duran, mas esta cobrou um cachê alto, e depois veio a eterna Divina, Elizeth Cardoso (1920-1990) como a voz que originou o álbum que gerou a Bossa Nova, estamos nos referindo a Canção do Amor Demais, que trazia o piano e os arranjos de Tom, a brilhante e soberba poesia de Vinicius e o violão diferenciado de João Gilberto - embora só em duas músicas. Com isto, a deixa para que o baiano tivesse a sua vez de gravar na Odeon, mesmo que, com uma implicância para que desse certo - e deu muito, gravando um disco (compacto) de 78 rotações com a canção inovadora Chega de Saudade no lado A, e no lado contrário, um baiãozinho autoral chamado Bim Bom, composto entre 1955 e 1956, apresentado logo voltando para o RJ em uma festa onde estavam jovens como Roberto Menescal, apresentando a sua batida nessa mesma. Depois daquele compacto, a música brasileira tomaria outros rumos - muitos queriam aprender a batida do violão, a pegada embalante que contagiara uma série de novos devotos, e isso despertou uma rapaziada que foi influenciada por ele e nem preciso dizer quem são estes*. Com o segundo compacto na qual trazia de Jobim com Newton a belíssima Desafinado, e outra canção autoral do baiano intitulada Hô-ba-La-Lá, e em março de 1959 o LP Chega de Saudade apresentou a um João mais diversificado e com um leque de surpresas - arranjos solares e inspirativos, canções de puro primor e covers interessantes de temas de Dorival Caymmi, Ary Barroso, Marino Pinto e novos autores como Ronaldo Bôscoli e Carlos Lyra, e dali em diante, sucesso e popularidade o mantiveram presente como um nome importante da MPB cultuado até hoje, mesmo depois de sua morte em 6 de julho de 2019.
João, Tom e Stan: clima estranho nos bastidores e reclamações do primeiro
sobre a equalização do álbum da parte do saxofonista o incomodaram.
Mas, apesar do clima que soaria como um ambiente de luta, conseguiram
realizar um dos melhores álbuns do século XX. (Foto: David Drew Zingg)
Em 1962, uma empreitada do produtor americano Sydney Frey, de uma gravadora chamada Audio Fidelity, ajudaria a trazer o fenômeno musical latino (sim, já era popular em países como Uruguai e Argentina) para um palco que merecia esse momento: o Carnegie Hall, e dentre os artistas escalados estavam Tom, João, Lyra, Menescal, Agostinho dos Santos, o conjunto de Oscar Castro Neves, Luiz Bonfá e uma revelação da época - o pianista niteroiense Sergio Mendes, que viria a construir sua carreira artística nos EUA a partir dos anos 60. O show no Carnegie Hall conseguiu fazer os músicos serem notados com importância e respeito, sendo ovacionados por crítica e público (se bem que houveram reportagens bem sensacionalistas a respeito do evento) - João Donato, velho conhecido do cenário musical fluminense, não participou, pois estava em outras bossas nos EUA também. Esse concerto ajudou a gravadora Capitol - cujos discos de Sinatra no Brasil eram distribuídos pela Odeon - a lançar nos EUA o segundo álbum do baiano chamado O Amor, O Sorriso e A Flor (1960) sob o nome de Brazil's Brilliant - e assim iniciando a jornada artística do cantor vindo de Juazeiro para agora conquistar o mundo, assim como Tom entre outros - enquanto uns construíam sua história em terras estrangeiras, outros voltavam para o Brasil contando histórias e mantendo suas agendas país afora, em clubes por RJ e SP - Lyra, Menescal, Agostinho e Chico "Fim-de-noite" Feitosa foram alguns destes. O que não se imaginava era que, em março de 1963, João e Tom participariam juntos pela última vez em um disco, desta vez, ao lado do saxofonista Stan Getz que, nos bastidores, deu dor de cabeça e por pouco não acontece de uma possível transformação do ambiente de gravação nos estúdios A&R Recording situado em Manhattan, o coração de New York, virar um ringue de luta tendo João como o boxeador pronto para comprar porrada (mas verbal) "Tom, diga para esse gringo que ele é muito burro" foi o deselogio do músico de Juazeiro ao saxofonista, que, um ano antes, propagara a bossa nova com Charlie Byrd ao público americano através de Jazz Samba!, um excelente trabalho que aqui ganhou resenha. Jobim, tentando trollar o saxofonista, respondeu a Stan da forma mais simples possível "Hey Stan, João told me his dream was always record with you" (Ei Stan, João me disse que seu sonho sempre foi gravar com você - tradução livre), e o saxofonista ainda rebateu dizendo "From his tone of voice, he doesn't seem to praise me" (Pelo tom de voz dele, não parece me elogiar - tradução livre). O motivo? Gilberto implicara com tudo da parte do músico estadunidense, desde as melodias, a levada, a batida e a pegada - ou seja, todas estas sutilezas rítmicas que escapam, sem esquecer que o perfeccionismo de João era algo muito cobrado, e Jobim sabia muito bem disto, assim como o baixista Tião Neto e o baterista Milton Banana, até a esposa Astrud Evangelina Weinert, baiana como João e que adotara o segundo nome deste como seu sobrenome artístico, vindo a participar do álbum também. Nem mesmo o responsável pela união de Tom e João com o renomado saxofonista estadunidense, o produtor Creed Taylor, que andava admirado com o sucesso da bossa nova no exterior, imaginava o problemão que seriam as gravações, o que salvou mesmo o clima de guerra - que, como disse antes, podia virar um ringue de boxe com João lutando contra Getz e até mesmo Jobim, Taylor e mais alguém que sobrasse na história - foi o pacifismo do precoce engenheiro Phil Ramone, sul-africano radicado nos EUA que tocava violino aos 3 anos e abrira o A&R Recording com 17 anos, e, agiu de forma discreta nos bastidores das sessões, acalmando os ânimos exaltados, e, como tinha um negócio a zelar, não iria permitir qualquer barraco em seu estúdio. Com o trio de ataque, havia a presença de Astrud, os já citados Tião e Banana mais Creed tenso e Phil presente para evitar que uma "bomba" caia ali. Salvo o clima das sessões, o álbum demorou um ano para ser concluído, e, há quem veja polêmica por causa do que pode ser visto como uma grande ausência de destaque do violão do baiano em muitas faixas, João acusara de Getz teria reequalizado o disco, fazendo com que seu sax soasse mais alto, com o pretexto de ficar o tempo todo em primeiro plano e que ele era o protagonista enquanto os brasileiros eram coadjuvantes, e os dois não chegavam numa decisão final sobre a escolha do take definitivo entre os vários gravados para aquela canção, o que só era resolvido por Taylor o desempate - a vontade de Astrud participar deste projeto também não foi muito satisfatória para João, ela persistiu e ganhou apoio do produtor, embora já tenha uma voz que encantasse até quem pudesse passar pelo estúdio. No final, o álbum foi lançado já um ano depois, em março de 1964 - provavelmente, antes do golpe de estado instaurado pelos militares, inicialmente um regime provisório e depois ditadura, aqui no Brasil.
Com o resultado definitvo, o álbum Getz/Gilberto editado pela Verve Records é a continuação dos trabalhos do saxofonista envolvendo aquele som brasileiro tão diferente e tão encantador - primeiro o Jazz Samba! com Byrd pelo mesmo selo, e depois o Jazz Samba Encore!, desta vez com Jobim e Luiz Bonfá mais a sua esposa Maria Helena Toledo, porém, com Getz/Gilberto, o negócio foi outro definitivamente. Dá pra compreender o perfeccionismo de João em questão do seu esilo e as suas rixas com o "gringo burro", a doce presença vocal de Astrud no álbum e o piano de Jobim regendo um conjunto "desafinado" no bom sentido. A capa estampa uma bela pintura da portorriquenha Olga Albizu (1927-2005), artista com obras ligadas ao expressionismo abstrato e que deixou sua marca registrada também em outros álbuns de Getz e de Bill Evans. Na contracapa, uma foto clicada por David Drew Zingg do que mostrava ser um encontro perfeito, estampava outro clima a não ser aquele que se dizia das sessões tensas e complicadas - João, Tom e Stan em paz como se estivessem trabalhando pra valer - e o que nos importa mais também é que o resultado saiu do jeito que só Deus sabe como resolveram lançar, e que nos encanta os ouvidos da primeira á última canção. Quando colocamos o vinil pra rodar na agulha, ou o CD pra rodar no aparelho, ou encontrarmos este álbum salvo nos streamings, já dá a impressão de que passearemos por um conjunto de belas harmonias concebida de forma apaixonante - a faixa que abre o álbum, The Girl From Ipanema, traz uma bela união da letra original em português Garota de Ipanema cantada pelo baiano e a em inglês por Astrud, e cuja versão em inglês, Jobim penou para convencer Norman Gimbell a melhorar a letra e adicionar Ipanema na letra, pois era algo intocável tanto para o Maestro quanto para o Poetinha, que juntamente de João e Os Cariocas, apresentou no lendário concerto do Au Bon Gourmet em 1962, e aqui o arranjo mostra uma sutileza pura, que acaba unindo perfeitamente música e poesia, e pensar que as gravações desta música deram muito trabalho no ápice dos fervores; adiante, um momento divino para João trazer do seu repertório de canções dos tempos de conjuntos vocais e das canções que ouvira nos alto-falantes de Juazeiro: a começar com Doralice, das tantas conhecidas de seu estimado guru e mestre Dorival Caymmi, uma versão que não deixa perder o primor nem pelo toque da viola, o ritmo marcante da bateria de Milton Banana mais o baixo de Tião e o piano doce de Jobim com a presença do sax de Getz matando a pau aqui neste tema; continuando o bailado de belas canções, ainda sobra tempo para João tirar de sua cartola e sua memória musical fascinante um tema de Ary Barroso, intitulado Pra Machucar Meu Coração, um nome bem à cara da sofrência, e que não faz desgastar o clima que reina nos arranjos - ao ser lançado o disco, Ary, coitado, já falecera antes mesmo de escutar tal versão, que não deixaria o falecido se revirar desgosto em sua cova; e pra não sentirmos uma lastimável ausência dos clássicos no repertório, uma nova releitura de peso do hino da bossa nova, logo refiro-me a Desafinado - uma das maiores criações de Jobim e Newton Mendonça, que Getz já havia recriado com Byrd um ano antes, e que aqui, não perderia o primor e a beleza que ajudam a mostrar o melhor que podemos exportar da nossa música para o resto do mundo; e abrindo o lado B, a fórmula que funcionou na abertura do lado A novamente aqui: a dobradinha portu-inglês bilíngue, desta vez com a belíssima Corcovado, com o nome inglês de Quiet Nights of Quiet Stars, uma versão de Gene Lees para o tema composto somente por Jobim e mais outro momento para Astrud dar brilho a este tema com sua voz, entoando em inglês, deixando novamente a letra original para João, e que não fica a desejar novamente; voltando novamente para a trinca de ataque, ainda temos aqui canções só em português - a começar por Só Danço Samba, outro standard do gênero criação da dupla Tom/Vinicius de alguém que só prefere dançar o bom e velho samba ao invés do twist, calipso e chachacha, e com um belo momento para o sax de Getz seguir destacando-se ao longo do disco; sobra muito tempo ainda para desfilar belas canções da parceria Maestro & Poetinha, uma delas é O Grande Amor, e a doçura poética acaba se casando com o instrumental, fazendo a gente se sentir em um momento único quando ouvimos essa beleza de canção ser entoada, e com uma simplicidade nos versos notada de maneira incomparável - lindo mesmo é os acordes que vão desfilando e seduzindo o ouvinte e leitor, vale a pena conferir estes momentos; no final desta obra de arte, temos uma das melhores criações de Jobim que fazem-se presente no álbum: Vivo Sonhando, com a letra original, ganha um primor diferente da versão gravada antes pelos Cariocas em 1963, e que com os 3 aqui fica uma coisa que nos faz prestar atenção em cada detalhe da canção: a voz, a bateria, o sax, o piano... enfim, nos deixa sonhando com uma apresentação de ambos fazendo uma canja da boa.
O "gringo burro" e João: mesmo com as questões suspeitas segundo o
baiano do álbum feito juntos com Tom, vieram a realizar mais três
registros juntos, como "The Best of Two Worlds" em 1975.
O disco conseguiu proezas inacreditáveis até hoje: a de ter conseguido vender 2 milhões de cópias, ou seja. um dos discos de jazz mais vendidos da história até hoje, colocar Astrud Gilberto no rol de grandes cantoras, ganhar um Grammy na categoria de Gravação do Ano e ainda conseguem fazer mais outro concerto (Getz e João) no Carnegie Hall, registrado em disco apenas dois anos depois - e com isso, cada um com seu rumo. João e Tom viveram seus sucessos no exterior, com concertos, já Astrud decidira sair do casamento com João ao mesmo tempo em que excursionava com Stan, que era casado e teve suas investidas naquela baiana que uma hora não aguentou mais e decidiu abrir outros voos. Jobim havia editado pela mesma Verve antes The Composer of Desafinado Plays, na qual teve a presença de Claus Ogerman nos arranjos, como foi em muitos discos posteriores, seguiu tendo suas idas e vindas ao país, e tendo trabalhado até mesmo com Frank Sinatra anos mais tarde, num disco que também houve momentos de pura tensão, mas aí já é uma outra história. João e Getz ficaram distanciados por um tempo até que em 1975 eles se reúnem para gravar outro álbum, intitulado The Best of Two Words com a participação de outra esposa do cantor, desta vez Miúcha (1937-2018), cujo irmão é ninguém mais ninguém menos que o célebre cantautor Chico Buarque, um dos tantos jovens que buscou beber na fonte de João, que não secou mesmo depois de sua morte em julho de 2019, pelo contrário, muitos ainda vão atrás dessa fonte para beber e encontrar a inspiração. Stan faleceu em 6 de junho de 1991, em decorrência de um câncer de fígado, após anos lutando contra o vício em álcool e drogas, enquanto Jobim faleceu em 1994 de uma parada cardíaca após sofrer uma embolia pulmonar. O álbum ganhou méritos de estar em listas importantes relacionados ao jazz, a própria bossa nova - a começar por uma das mais célebres listas importantes da música, a dos 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer, sendo um destaque na discografia dos anos 60,além de ter conquistado a 447ª posição da lista dos 500 Maiores Álbuns de Todos os Tempos da revista Rolling Stone a partir de 2012, sendo um dos únicos álbuns brasileiros a fazerem parte desta. A lista dos 100 melhores álbuns brasileiros da Rolling Stone feita em 2007 cedeu a posição de 70º lugar, nada mal, para um álbum que definiu de vez como a bossa nova sendo uma música universal.
Set do disco:
1 - The Girl From Ipanema/Garota de Ipanema (Antonio Carlos Jobim/Vinicius de Moraes, versão em inglês: Noman Gimbell)
2 - Doralice (Antônio Almeida/Dorival Caymmi)
3 - Pra Machucar Meu Coração (Ary Barroso)
4 - Desafinado (Antonio Carlos Jobim/Newton Mendonça)
5 - Corcovado/Quiet Nights of Quiet Stars (Antonio Carlos Jobim, versão em inglês: Gene Lees)
6 - Só Danço Samba (Antonio Carlos Jobim/Vinicius de Moraes)
7 - O Grande Amor (Antonio Carlos Jobim/Vinicius de Moraes)
8 - Vivo Sonhando (Antonio Carlos Jobim)

Referências bibliográficas
Chega de Saudade: a história e as histórias da bossa nova. Ruy Castro, Companhia das Letras, 1990.

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