Um disco indispensável: Electric Ladyland - The Jimi Hendrix Experience (Track Records/Polydor Records/Reprise Records, 1968)

Em pleno ano de 1968, os fatos efervesciam de acontecimentos importantes: os protestos contra a guerra do Vietnã, as manifestações dos movimentos estudantis mundo afora, em especial na França - onde esta teve uma imensa proporção, no México e no Brasil - onde o caos já era de um tamanho enorme, e em decorrência da opressão e dos manifestos políticos contra a administração militar que governava o país, assim como em outros países latinoamericanos. O que estava acontecendo na música também era algo impressionante - os The Doors alcançavam voos maiores com o icônico Waiting For The Sun, na qual apresentavam Hello I Love You e Love Street como os principais sucessos do disco, apó o flop psicodélico que acabou sendo Their Satanics Majest Request, os Rolling Stones buscaram retomar às raízes da música popular estadunidense contemporânea através de Beggars Banquet - o último a contar com a presença ativa de Brian Jones no conjunto, já que viria a falecer pouscos meses depois, em 2 de julho de 1969. Grupos novos surgiam a cada instante, dentre eles o Big Brother & The Holding Company, que tinha como sua principal integrante uma moça texana branquela com uma voz de cantora negra: esta era Janis Joplin, e que, com sua voz rascante unindo todas as tribos das cantoras de soul, blues, jazz, gospel e com uma acidez marcante na base sonora, fez se destacar muito no LP da época Cheap Thrills, com o grande hit Piece Of My Heart, e com uma das mais irreverentes capas de discos da história - assinada pelo gênio dos quadrinhos underground, os comix, Robert Crumb. Dylan retomava geinalmente sua carreira artística discretamente com o encantador e religioso John Wesley Harding, mesmo sem fazer shows e estando ao lado dos músicos da The Band colaborando em projetos como o Music from The Big Pink, cuja uma das canções foi escrita pelo poeta de Duluth. Os Beatles também davam a sua volta por cima, após uma temporada de meditação na Índia e declaração de independência, abriam a empresa Apple para cuidar da carreira do grupo e lançarem os próprios álbuns e de outros artistas, e lançam um disco totalmente diferente - migram da psicodelia total para um clima roots rock, assim como os Stones, e o Álbum Branco como conhecemos foi lançado na onda do sucesso de um dos principais clássicos da banda, Hey Jude, que, por mais que tenha 7 minutos, se tornou um número 1 das paradas, do público e das listas de canções favoritas de muita gente. Mas, o que estava ajudando mesmo a fazer a diferença no cenário musical, fora grupos como The Who, Jefferson Airplane, Love, Moody Blues e até mesmo cantores como Van Morrison (recém-saído do conjunto Them), Joni Mitchell, Laura Nyro, Johnny Cash dando a volta por cima com um álbum ao vivo direto de uma prisão, era mesmo o popstar da guitarra Jimi Hendrix, que estava em grande ascensão desde que apareceu no palco do Café Wha? em New York e foi levado para acontecer na Swinging London de 1966 e 67, onde ele conseguiu atrair atenção de vez, gravando um compacto com o tema Hey Joe, e em seguida, edita seu primeiro LP chamado Are You Experienced através de canções como Fire, Purple Haze, Foxy Lady, entre outras canções - algumas na edição americana enquanto outras na inglesa com diferença de seis faixas. Meses depois, ele prepara mais outro álbum importante que ele ainda mostrava-se mais inspirado e totalmente preparado para mais desafios - com Axis: Bold as Love, manteve o acompanhamento do duo que complementa a sua Experience, banda que ele liderou contando com Noel Redding no baixo e Mitch Mitchell na bateria - além da presença de Chas Chandler, ex-Animals que dedicou-se a construir com Hendrix cada álbum brilhante que mostrava seu workshop de guitarra, seus tutoriais de como eletrificar o blues de forma ácida e sem se preocupar o limite de tempo para poder mostrar o seu talento como instrumentista.
Aí está uma coisa que era justo para seu próximo álbum: limite de tempo - tocar por longos minutos sem dar o luxo de importar-se com a duração era algo ousado, mas que atendia a necessidade da psicodelia, de fazer álbuns soarem mais longos do que de costume, e o álbum seguinte acabou se tornando isto. Após uma tournée cheia de complicações pela Escandinávia e Inglaterra, o guitarrista voltou para sua América natal, com alguns materiais feitos entre julho a dezembro de 1967 no Olympic Studios de Londres, ele parte para novas sessões em janeiro de 1968 e retomando em abril até agosto, mas, com muitas TRETAS (isso mesmo!) nos bastidores: ainda em maio, Chas Chandler, cansado de tanta cobrança do perfeccionismo vindo de Jimi, abandona a produção, deixando nas mãos de seu ex-gerenciado artista a liberdade de produzir e fazer o que quiser. O baixista Noel Redding acabou por desistir de algumas músicas, e em uma destas, estava em um bar bebendo enquanto o músico de Seattle assumia seu instrumento e multiplicava seu trabalho. Vale lembrar que foi por essas questões que ele decidiu mudar-se para New York e começar a gravar no Record Plant enquanto seu tão desejado sonho do estúdio próprio não era realizado, o Electric Lady, pronto somente em 1970 - meses antes de falecer no dia 18 de setembro. Como a intenção era a de levar um som bem parecido com as jams que ele fazia, ele tentou (com sucesso) fazer disso realidade. No Record Plant, o clima continuava bem Fire como diz a canção de 1967 - muitos takes a fazer, tentativas de achar uma versão perfeita e uma série de convidados ajudaram o disco a ganhar corpo - dentre os conhecidos estavam o baixista Jack Cassidy do Jefferson Airplane, os integrantes do Traffic: o tecladista Steve Winwood, o flautista Chris Wood e o guitarrista Dave Mason, mais o rolling stone Brian Jones, o tecladista Mike Finnigan, o percussionista Larry Faucette, o baterista Buddy Miles e o tecladista Al Kooper participaram desse que acabou tornando-se Electric Ladyland, editado em 16 de outubro de 1968, inicialmente com uma capa que desagradou Jimi - a presença de um conjunto de 19 mulheres nuas segurando itens de Jimi, dignas de um conteúdo estilo Playboy - sensual, mas nada a ver com a onda de Hendrix. A capa, surgida na edição inglesa, fora rejeitada pelos vendedores por motivos óbvios, acabou sendo substituída por uma adaptação visual em cima de uma imagem feita por Karl Ferris durante um show realizado no Saville Theatre, e na contracapa um retrato do trio, o encarte interno também mudou - com uma foto enorme do nosso guitar hero em destaque no topo, enquanto o dos dois músicos ficava com um tamanho diferente. 
Ao começarmos a audição do álbum, temos aqui uma bela forma de abrir um clássico com ...And The Gods Made Love, com 1'20 de duração, uma base que já dá o caminho certo sem fugir do conceito da canção e com uma bateria nervosa, efeitos vocais, solos bem distorcidos para mostrar o quão ousado continuava, e a cozinha funciona plenamente aqui; continuando o embalo do repertório, temos aqui outro tema de responsa na hora de mandar ver em temas como Have You Ever Been (To Electric Ladyland) nos leva para uma terra mágica, e o baixo de Redding ganha um destaque enorme aqui, mas também é uma contribuição para uma alquimia incomparável aqui; na sequência, o trio emenda mais outra pedrada que faz a viagem sonora acontecer é Crosstown Traffic, uma canção que envolve altas aventuras autmobilísticas cheias de romance e compara a mulher amada a um cruzamento de trânsito - Jimi não só manda ver na guitarra, como ao mesmo tempo toca kazoo e piano, Dave Mason participa da faixa nos coros desta; para a próxima canção, a intenção do nosso mestre de Seattle era fazer a gente viajar nesta canção, e, literalmente, Voodoo Chile é para fazer a gente viajar para outros universos paralelos com esta, em seus 15 minutos cheios de solos alucinantes e uma jam session indescritível, com a presença de Steve Winwooddo Traffic, mandando ver nos sintetizadores, e Jack Cassidy, do Jefferson Airplane, no baixo - Redding só participa nos vocais, e aqui Hendrix tenta unir as perfeitas fórmulas para uma alquimia musical perfeita: uma boa dose de psicodelia mais uma acidez no blues de Muddy Waters, ídolo a quem sempre reverenciou em suas canções, e possivelmente é um tributo a este, pois podemos notar melodias que remetem à Rollin & Tumblin', Still a Fool e um de seus hinos Rollin' Stone, e numa letra bem no estilo ficção científica com a adição de imagens psicodélicas, chegando bem a uma narrativa cinematográfica que complementa a fórmula desta mistura boa de verdade; continuando o repertório, temos aqui uma bela contribuição do baixista Noel Redding para o repertório do disco, esta é Little Miss Strange, um blues nervosão e cheio de melodias marcantes, uma bateria totalmente arrepiante e que dá a sensação de ser um rock cheio de peso em uma canção que alude à um antigo relacionamento de Jimi com uma certa mulher no passado, e fecha a canção falando que teve sonhos e visões na última noite - provavelmente muitos dos sonhos movidos a ácido como era na época; sem perder a aura, ainda existem aventuras de amor cheias de visões românticas, como no caso de Long Hot Summer Night em que o eu-lírico se sente isolado em um frio enquanto sua amada está no calor, e no final recebe a ligação importante dela dizendo que irá visitá-lo, e, por isso, tudo muda para ele, e o que ajuda nessa canção, fora o baile que eles dão nesse arranjo, é o piano de Al Kooper, que só não duela muito porque a guitarra de JH é a estrela principal; em seguida, temos outro momento intérprete de Hendrix neste disco, ele traz de volta um clássico do blues da autoria de Earl King e recria à sua moda Come On (Part 1), que em algumas reedições leva o subtítulo de Let The Good Times Roll, e o rockão aqui ajuda a engolir poeira sem deixar rastros e o baixo ganha um destaque pela sua levada - Noel Redding agradece no céu a quem notou o seu talento; na próxima música, ainda temos uma batida que lembre a country music, o som de Nashville que dá o toque preciso na introdução de Gypsy Eyes, uma canção onde o músico demonstra seu total amor por uma moça que encontrou cheia de lágrimas nos olhos e fala que a ama muito, é engraçado que quando ouvimos o fuzz da guitarra no momento da levada country faz parecer que estamos ouvindo Johnny Cash ou até Willie Nelson sob o efeito de ácido, mas isso depende da sua visão; fechando a primeira parte do álbum, temos também outra pérola presente no repertório deste álbum é Burning Of The Midnight Lamp, uma canção onde Hendrix conta sobre as viagens que fez, e, coincidência que ele concluiu esta durante uma viagem entre Los Angeles e New York, a introdução bem chapante já dá uma guia para o que esta viagem pode proporcionar aos nossos ouvidos - ela foi uma das primeiras canções a terem sido gravadas antes e apareceu na compilação Smash Hits lançada meses antes.
E o bailado ainda continua, o álbum apresenta na segunda parte uma canção de atmosfera mais jazzy, e isso se nota pela suavidade que reina em Rainy Day, Dream Away com a presença do saxofonista Freddie Smith, Buddy Miles tocando bateria, Larry Faucette nas congas, e somente Noel do trio tocando baixo - a canção foi inspirada após o dia de chuva na última data da edição do Monterey Pop, e esse dia de chuva pode ter soado como uma influência para a canção, que só começa a ter letra após cerca de dois minutos, mas o que importa é a beleza sonora desta; continuando esta segunda parte, ainda temos outra masterpiece de peso, uma espécie de opereta presente no lado A do segundo disco, 1983... (A Merman I Should Turn To Be) onde canta sobre ele e sua amada fugirem do mundo devastado da guerra, tornando-se tritão e sereia e morando no fundo do mar, com uma virada de bateria matadora de Mitchell, aqui, só ele e Jimi - que toca baixo e percussão inclusive, participam da canção, que ainda teve Chris Wood do Traffic, tocando com eles na flauta, e existe uma notória influência dos ragas indianos... literalmente, uma das mais viajandonas das canções de Hendrix; e intercalando-se entre a música anterior e a seguinte, temos aqui um fragmento sonoro instrumental com uma ambientação totalmente futurística, e temos aqui Moon, Turn The Tides... Gently, Gently Away, que dá a deixa para a próxima canção e o lado B do vinil; mantendo a sua essência puramente blueseira e ácida, eles ainda apresentam uma continuação de Rainy Day, Dream Away - e com um nome que realmente lembra esta, Still Raining, Still Dreaming é uma bela forma de fazer continuações de músicas sem perder o toque mágico que só ele tinha na hora de fazer canções assim, com guitarras vomitando em um tom wahwah, no melhor estilo blues elétrico, como pede no repertório; continuando essa sequência de barulheira de responsa, temos aqui uma letra que mostra um lado de manifestação e indignação do guitarrista contra a Guerra do Vietnã, ele traz aqui House Burning Down, aqui ele simplesmente detalha os confrontos do homem e toda a sua revolta contra a guerra que se perdurou pelos anos 60, uma vez que Hendrix já mostrara seu posicionamento ainda no antecessor Axis: Bold as Love, e temos um dos mais belos solos presentes nesse disco, que, assim como os vocais do refrão, mostram o quão insatisfeito o eu-lírico estava, assim como muitos naquele clima de paz e amor com um combate movido pela Guerra Fria no meio - e a raiva é notável; no álbum, ainda temos aqui como uma surpresa o grande hit deste, logo a versão dele para All Along The Watchtower, que fora lançada meses antes por Bob Dylan em seu quase-esquecido título John Wesley Harding, da fase country e recluso da mídia após o acidente de moto sofrido em 1966, uma vez que jamais pararia de fazer música - o arranjo psicodélico, a sua guitarra evocando um slide no estilo havaiano, aqui com Dave numa guitarra de 12 cordas e Brian Jones na percussão enquanto Jimi faz a guitarra e o baixo - outra das sessões sem Noel - ao saber da versão, Dylan ficou encantado e confessou sua admiração por Jimi e pela versão, o que deixou o guitarrista gratificado e com muita moral; encerrando este álbum, temos um rockão que soa quase como uma das canções-mãe do heavy metal - sim! - Hendrix ajudou a fundar o metal através da épica Voodoo Child (Slight Return), com uma levada porreta e um arranjo viajandão, e uma letra envolvendo magia e as origens na África que conectem o vodu e com o trio Experience matando pau pra valer, fechando com chave de ouro esta beleza de disco.
Logo após este disco, o Experience era desintegrado - Redding saiu para dedicar-se ao Fat Mattress, Mitchell seguiu com a nova reencarnação do Experience sob o nome de Gypsy Sun and Rainbows, ao lado do baixista Billy Cox e do guitarrista de base Larry Lee e mais os percussionistas Jerry Velez e Juma Sultan, que o acompanharam no célebre recital do festival Woodstock no amanhecer do dia 18 de agosto de 1969, onde, com uma forma de protesto contra a Guerra do Vietnã, Jimi solou ao vivo o hino estadunidense The Star Spangled Banner, e ele ainda mandou ver várias de suas canções mais coisas inéditas. Depois, ele remontou a Gypsy Sun & Rainbows agora com o nome de Band Of Gypsys, com Buddy Miles ocupando o lugar de Mitchell na bateria. Porém, o destino acabou colocando Jimi no final de sua jornada neste planeta, aos 27 anos, em 18 de setembro de 1970, encontrado morto em sua casa e sendo sufocado pelo próprio vômito. Morre o homem James Marshall Hendrix, porém, a lenda, o mito, o ídolo e sua música permanecem tão vivos quanto nunca, influenciando diversos nomes da guitarra que existem por aí e ajudam a manter seu legado vivo. Seus álbuns estão nas listas dos mais importantes da história da música, e graças a Electric Ladyland, que Miles Davis (1926-1991) teria conseguido buscar outras formas de fazer um som diferente. O disco conseguiu figurar em listas importantes, em especial, a da revista Q, dos 100 Melhores Álbuns de Sempre, enquanto isso a Rolling Stone deu a 53ª posição na lista dos 500 Maiores Álbuns de Todos os Tempos, e o periódico inglês The Times colocou  na posição de número 37 dos 100 Melhores Discos de Todos os Tempos, fora que ainda comparece entre os tantos da lista célebre dos 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer - a terra da dama elétrica ainda nos leva a caminhos inacreditáveis, mágicos e fantásticos.
SET DO DISCO 1:
1 -  ...And The Gods Made Love (Jimi Hendrix)
2 -  Have You Ever Been (To Electric Ladyland) (Jimi Hendrix)
3 - Crosstown Traffic (Jimi Hendrix)
4 - Voodoo Chile (Jimi Hendrix)
5 - Little Miss Strange(Noel Redding) 
6 - Long Hot Summer Night (Jimi Hendrix)
7 - Come On (Part 1) (Let The Good Times Roll) (Earl King)
8 - Gypsy Eyes (Jimi Hendrix)
9 - Burning Of The Midnight Lamp (Jimi Hendrix)
SET DO DISCO 2:
10 - Rainy Day, Dream Away(Jimi Hendrix)
11 - 1983... (A Merman I Should Turn To Be) (Jimi Hendrix)
12 - Moon, Turn The Tides... Gently, Gently Away (Jimi Hendrix)
13 - Still Raining, Still Dreaming (Jimi Hendrix)
14 - House Burning Down (Jimi Hendrix)
15 - All Along The Watchtower (Bob Dylan)
16 - Voodoo Child (Slight Return) (Jimi Hendrix)

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