Discografia Indispensável: Pescado Rabioso

Com pouco tempo de atividade, a banda argentina Pescado Rabioso acabou ganhando fãs pelo mundo todo, inclusive no Brasil, que muitos fãs têm os três únicos LPs feitos na carreira da banda e cujo líder era o vocalista e guitarrista Luis Alberto Spinetta (1950-2012). A banda surgiu bem em meados do ano de 1971, após Spinetta ter passado meses fora de sua Buenos Aires e do país após uma crise com a sua antiga gravadora, a RCA Victor, que lançou o seu primeiro álbum solo “Spinettalandia Y Sus Amigos” e a gravadora acabou não aceitando a ideia da capa e da contracapa já concebida pelo argentino e mudaram o nome para “Almendra”, nome da antiga banda na qual fez sucesso com “Muchacha (Ojos de Papel)”, “Campos Verdes”, “Tema de Pototo”, “Rutas Argentinas” e “Los Elefantes” em apenas dois anos de estrada, o mesmo período que veio a durar o seu segundo grupo. O título e a capa original só reapareceriam em CD no ano de 1995, em um relançamento histórico pela BMG Music. Voltando de uma temporada viajando mundo afora ao lado de Cristina Bustamante, sua namorada, ele veio a se juntar com o baterista Juan Carlos “Black” Amaya mais o guitarrista e baixista Osvaldo “Bocón” Frascino e dali nasceu a primeira formação do grupo e cujo o nome se baseava em. Contando com Carlos Cutaia nos teclados, piano e órgão, a banda veio a ganhar este integrante logo nos preparos para o LP de estreia intitulado “Desatormentándonos”, desta vez na gravadora Microfón e contando com o quarteto definitivo com músicas cheias de peso, com destaque para “Blues de Cris”, a viajante “El Jardinero” com seus nove minutos recheados de excesso de acidez nos solos de guitarra, o bucolismo acústico em “Dulce 3 Nocturno”, e ainda com momentos de apoteose à la Rolling Stones em “Serpiente (Viaja Por la Sal)”, encerrando o disco de apenas cinco faixas em trinta e um minutos de som. Entre indas e vindas, a banda segue a fazer shows pela Argentina com uma performance cheia de aventuras sonoras que veio a influenciar bandas futuras e isso pode ser muito notado em um filme chamado “Rock Hasta Que Se Ponga el Sol”, filmado durante a realização da terceira edição do festival B.A. Rock, dirigido por Anibal Uset e produzido por Jorge Alvarez aonde a banda toca dois temas inéditos, “Despiértate Nena” e “Post Crucifixión” lançados em compactos. Um dos temas que ficara de fora do disco se chamava “Me Gusta Este Tajo”, lançado em um single no ano seguinte mas censurado pela COMFER e só doze anos depois entrara em “Desatormentándonos” como faixa bônus do disco. Sai Frascino e entra um músico que antes estava vivendo em terras americanas e que tocava guitarra como um bluesman legítimo, o tal músico era um jovem chamado David Oscar Lebón e ele entraria em outubro de 1972, quando a banda estava entre as sessões de gravação de seu próximo álbum e o festival B.A. Rock, cuja apresentação foi histórica também pelo fato de Spinetta usar uma sirene nas costas, uma espécie de manifestação contra a repressão policial na última etapa da Revolução Argentina naqueles tempos, um dos golpes militares latino-americanos da época. 
Luis Alberto Spinetta, Carlos Cutaia, Bocón Frascino e Black Amaya: os primeiros
 anos do Pescado Rabioso em 1972, em foto promocional do primeiro disco
da banda, Desatormentándonos (Reprodução/Facebook)
Após o fim de janeiro, o disco que acabaria se tornando um duplo intitulado “2” que incluía livretos com tipografia feita à mão, desenhos e fotos dos integrantes quando pequenos além de músicas como “Madre Selva”, “Corto”, “Nena Boba”, “Amame Peteribí”, “Mañana o Pasado” com várias influências poéticas de Rimbaud e que contou com um destaque grandioso na imprensa, porém devido ao desentendimento entre os músicos com Spinetta pela sua visão musical que desenvolvia na época, portanto ele decidiu seguir com o nome e lançou um disco chamado “Artaud”, que seria especificamente um disco mais pra Spinetta solo do que do Pescado Rabioso apesar de contar com seu irmão Gustavo e de ex-companheiros do Almendra acompanhando e também com músicas que se destacam nesse disco como “Todas Las Hojas Son del Viento” e “Bajan” além de uma capa simplesmente inovadora no formato que não era o tradicional, e ainda com uma apresentação oficial em setembro de 1973 no Teatro Astral da capital portenha, meses depois da banda em todo fazer sua última apresentação no Teatro Planeta. O grupo deixou um legado muito forte depois de sua separação, influenciando um sem-número de artistas e bandas não só do rock argentino, mas da música latina em especial, e esse legado foi documentado em forma de compilação três anos depois em “Lo Mejor de Pescado Rabioso” e mais tarde aconteceu o que poucos esperavam: a volta do grupo em um show de Spinetta com Las Bandas Eternas, aonde tocaram “Serpiente (Viaja Por la Sal)”, “Credulidad”, “¡Hola Dulce Viento! (Mañana o Pasado)” dentre outros sucessos e foi somente aquela vez que se reuniriam. Luis Alberto Spinetta veio a nos deixar em 8 de fevereiro de 2012, vítima de um câncer, deixando pra nós um pouco do que já fez na música, em especial na banda Pescado Rabioso, que teve um papel histórico na sua carreira, na história da música argentina, do rock argentino e do rock em todo também.

Desatormentándonos (Microfón, 1972)
A estreia discográfica do Pescado Rabioso traz já o que Spinetta estava a fazer no momento, um som que lembrasse mais o Almendra do segundo disco: agressivo, pesado e sujo até. E o disco “Desatormentándonos” mostra que Spinetta não está mais para brincadeira, formando uma excelente cozinha com Frascino, Cutaia e Amaya, que já tinham uma pegada com o blues, convertendo-se em uma excelente alquimia sonora que deu certo mesmo. Comece a ouvir “Blues de Cris”, feita por Luis para sua namorada na época, Cristina Bustamante, com um tom bem ácido nos acordes de guitarra e na voz do eterno “Flaco”, em seguida uma viagem que entra nos ouvidos e nunca mais sai intitulada “El Jardinero (Temprano Amaneció)” de mais de nove minutos, já nos levando a mais uma profunda jornada sobre um jardineiro, que segue a ver a destruição do mundo que o rodeia, e vários momentos instrumentais desta canção já nos demonstram interesse pela forte influência de Hendrix, Stones e Zeppelin nesta canção. A próxima faixa já é algo mais acústico, “Dulce 3 Nocturno” traz coros e uma verdadeira originalidade na letra e nos arranjos, uma canção mais transparente até. Já em “El Monstruo de la Laguna (Algo Flota en la Laguna)” traz referencia às obras fictícias que falavam sobre monstros dos mares, já em “Serpiente (Viaja Por la Sal)” nós contamos com a influência de blues, hard rock e até mesmo de Beatles na sonoridade com momentos especiais na parte instrumental, como os solos de órgão de Carlos Cutaia e o baixo de Frascino deixando um gosto mais agressivo e com menos de nove minutos encerrando o disco. Para não deixar na mão, temos três faixas bônus deste disco, primeiro o single de 1973 “Me Gusta Este Tajo”,  um blues de tom picante nos versos e na sonoridade que por contar com algumas referências sexuais, foi vetada e só liberada 12 anos depois, depos temos “Despiértate Nena” com David Lebón na voz e no baixo (Frascino saiu da banda depois do lançamento do primeiro disco) e “Post-Crucifixión”, lançados no final daquele ano após as apresentações no B.A. Rock que originaram o filme “Rock Hasta Que Se Ponga Al Sol”, de Anibal Uset e lançado no ano seguinte. A arte traz uma pintura típica dos anos 1960 e 70, de ares psicodélicos, carregada de fortes tons das cores primárias (vermelhas, amarelas e azuis) soando

Pescado 2 (Microfón, 1973)
Originalmente, um disco duplo, trouxe um papel forte e inovador no rock latino uma vez que Luis Alberto Spinetta seguiu a buscar mais inspiração para suas músicas, e desta vez estava iniciando-se uma fase poeticamente influenciada por Antonin Artaud e Rimbaud. Já sem Bocón Frascino no baixo, o Pescado decidiu recrutar para a banda o ex-baterista do Color Humano, David Lebón, recém-retornado de uma temporada nos EUA e que viria a se consagrar mesmo como guitarrista após a separação oficial do Pescado, primeiro como guitarrista solo e depois em grupos como Polifemo, Serú Girán e em outros projetos. Cutaia seguia na banda, Amaya também e o disco seria gravado no mesmo estúdio Phonalex aonde o “Desatormentándonos” foi gravado, com o mesmo esquema de gravação mas desta vez já com mais material para gravar. O disco originalmente tinha a forma de dois álbuns, sendo a primeira parte chamada como “Pescado” e a segunda apenas “Pescado 2”, sendo que o formato CD seria totalmente um só, com dezoito músicas, 74 minutos de duração e duas vinhetas que complementam o disco em todo. A primeira parte começa com “Panadero Ensoñado” com corinhos e uma espécie de beatbox, depois nós temos “Iniciado del Alba” e “Poseído del Alba”, uma sequência que vai fazendo a atmosfera do disco crescer, além de “Como El Viento Voy a Ver”, “¡Hola Dulce Viento! (Mañana o Pasado)”, “Nena Boba”, “Rock de la Selva Madre (Madre Selva)” e “Amame Peteribí” encerrando a primeira parte. Já “16’ de Peteribí” nos traz à parte “Dos” do disco, que começa mesmo em “Señorita”, vai se desenvolvendo em temas como “¡Hola Pequeño Ser”, “Credulidad”, “Mi Espíritu Se Fue”, “Sombra de La Noche Negra” e com “Corto” e “Cristálida (Aguas Claras de Olimpo)” o disco encerra-se de uma forma impressionante, nos levando a uma viagem sonora sensacional aonde Spinetta afirma “no tengo más Dios”. O disco traz dois livretos com os repertórios de “Pescado” e “Dos” com ilustrações de Spinetta, o irmão Gustavo e de Jorge Álvarez, então diretor artístico e produtor executivo da Microfón, além de fotos dos integrantes ainda mais pequenos e jovens, este formato acabou se tornando um objeto de culto para os fãs e colecionadores do vinil nas terras de Maradona e Mercedes. O livreto para o formato CD sofreu alterações gráficas tanto na reedição de 1993 quanto nas breves edições de 2008 no momento em que a Sony Music iniciava seu processo de novas remasterizações dos trabalhos discográficos de Spinetta na casa quando este comemorava 40 anos de carreira e de música. Figura na 19ª posição dos 100 melhores discos do rock argentino, uma lista feita pela revista argentina Rolling Stone na qual conta com boa parte de vários álbuns da carreira de Spinetta, sejam pelo Almendra, Invisible, Spinetta Jade ou solo até.

Artaud (Talent/Microfón, 1973)
O disco não soa nada de Pescado, pois a banda se dissolvera meses antes de seu lançamento e já havia tempos que Pescado Rabioso deixava de ser uma banda real. Seu último concerto, com a banda toda foi no teatro Planeta e dali, sairia Lebón para uma carreira solo, depois Cutaia e Amaya deixariam a banda e o “Flaco” ficaria só e mesmo assim, o disco que hoje consagrou o músico figura nos 100 maiores discos do rock argentino, lista que a Rolling Stone hermana concebeu e aclamou o 1º lugar ao disco. O disco foi gravado totalmente nos estúdios ION durante o inverno de 1973, com Spinetta tocando guitarra, baixo e violões mais o irmão Gustavo tocando bateria em certas faixas, ora quem estava era Rodolfo García seu ex-parceiro de Almendra e que na época tocava na banda Aquelarre, assim como outro músico acompanhante Emilio Del Guercio, baixista e também um velho conhecido de Almendra e a produção não ficaria somente por Spinetta, mas Jorge Alvarez cuidou do resto da produção do álbum. O tema “Todas Las Hojas Son del Viento” além da originalidade poética e musical, foi feito para sua namorada Cristina Bustamante, o blues triste “Cementerio Club” nos traz a uma viagem profunda e imagens tristes, o poema cantado “Por” com um tom acústico, o blues-rock pra cima “Superchería” tendo Rodolfo e Emilo fazendo uma cozinha sonora, a suave e bucólica “La Sed Verdadera” que fala sobre o fator contra as idolatrias aos ídolos do rock. O lado B do disco traz “Cantata de Puentes Amarillas”, uma suíte melódica de nove minutos baseada numa pintura chamada “A Ponte de Langlois em Arles” de Vincent Van Gogh (1850-1893), pintor holandês e cujo o restrato mostrava uma ponte amarela, seguido de “Bajan” que já nos trazia uma energia muito pesada apesar do ritmo meio lento, já em “A Starosta, El Idiota” traz os choros de uma mulher, um piano com tom melodramático e um sample de “She Loves You” dos Beatles, já o final deixa um clima mais hard em “Las Habladurías del Mundo” mostra que Spinetta deixou um legado imenso através de “Artaud”, um disco com tradução única, simples e que fala por si com canções de atmosferas tristes, melódicas e comoventes por demais. Atravessando gerações e segue a influenciar gente que vai de Fito Páez a Gustavo Cerati (1959-2014), um sem-número de gente aprendeu a fazer música pelos discos do “Flaco” e carregaram muito dessa influência dele em seus trabalhos, especialmente neste disco que está sendo dito no momento. A arte do álbum concebida por Spinetta e Juan Orestes Gatti traz um projeto totalmente diferente, deixando o formato original meio ignorado, convertendo um quadrado em um estilo mais livre e com tons verde-amarelos e uma foto do artista francês na capa e na contracapa além de uma página simples servindo como encarte trazendo a ficha técnica e algumas coisas sobre a banda Pescado Rabioso. Nas edições futuras, o formato ganharia uma adaptação comercial, mantendo o desenho de arte original mas com o formato quadrado tradicional do disco tanto no LP quanto no CD, óbvio, exceção das edições em CD no qual o não há aquela forma mantendo um simples quadrado recortando as partes que formavam a capa original.

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