Um disco indispensável: A Mulher do Fim do Mundo - Elza Soares (Circus/Natura Musical, 2015)

Uma mulher como poucas, que ainda segue na ativa, que viveu, sofreu mas que também sabia como dar a volta por cima, que perdeu amores, amigos e quando parecia tudo estar mais pra baixo e mais perdido, ela acaba olhando pra trás e se reergue de uma forma tão vangloriosa que não há como explicar direito. Desde que veio do "planeta Fome" para conseguir um prêmio no tradicional show de calouros do Ary Barroso quando criança para a boca da galera já na década de 1960 com o disco Se Acaso Você Chegasse, sendo um estouro imediato rapidamente e também levando a um patamar pelo seu estilo vocal que nos lembra Louis Armstrong e Ella Fitzgerald e acabou indo mais além graças a outro disco, intitulado A Bossa Negra e dali por diante, mais sucesso e grandes canções ela interpretou sucessos do samba, da bossa nova e acabou partindo até para turnê internacional durante os anos 60, e ainda teve um dos seus mais marcantes e conturbados romances: o com o jogador de futebol e eterno ídolo Garrincha, o anjo das pernas tortas, que ela considera até hoje um amor insuperável, dividido entre altos e baixos devido ao vício do jogador por bebida alcoólica na qual ela o proibiu de consumir e frequentar bares como de costume, deixando Garrincha ficar abstêmio por um certo tempo e se mantendo unidos até que o jogador vem a falecer em 1983 e depois de um disco cinco anos depois, deixa o país por um tempo e volta quase dez anos depois. 
Após ressucitar-se musicalmente e voltar a ser reconhecida, Elza foi eleita a cantora do milênio em uma pesquisa pela BBC em uma mesma pesquisa aonde estavam Ella Fitzgerald, Etta James, dentre outras tantas, e ainda houve tempo pra celebrar os quarenta anos de carreira no ao vivo Carioca da Gema (1999) e mais tarde lançar o grande Do Cócix Até o Pescoço, tendo Chico Buarque como seu ilustre convidado. Em mais de 55 anos de carreira, Elza da Conceição Soares ainda se mostra viva, firme e ativa, fazendo honra ao título de cantora do milênio, e recentemente fez um dos lançamentos mais surpreendentes da música brasileira, intitulado A Mulher do Fim do Mundo, totalmente com cara de São Paulo, e não é à toa que os principais cabeças por trás da concepção do álbum são dessa região; Kiko Dinucci, Rômulo Fróes, Rodrigo Campos e Marcelo Cabral, sendo o produtor Guilherme Kastrupp e um material distribuído pelo projeto Natura Musical e lançado em outubro de 2015.
O disco começa com Elza entoando o poema Coração do Mar, um canto que antecipa de vez o disco e sentimos que ela consegue se reerguer de uma forma triunfante a cada verso de Oswald De Andrade entoado; na sequência uma orquestra surge e eis que os primeiros acordes de Mulher do Fim do Mundo, um samba de Alice Coutinho e Rômulo Fróes, e que carrega uma energia que vai contagiando e no qual ela pede que a deixem cantar até o fim, soando totalmente autobiográfico como se fosse sobre a própria; na sequência temos Maria de Vila Madalena, com pegada eletrônica nos arranjos, na qual ela fala sobre os homens aproveitadores que vivem a agredir as mulheres e que são tantos por aí, e mostrando que a Lei Maria da Penha tem sua vez de verdade; a próxima faixa é Luz Vermelha, a sambista coloca sua voz pra disparar versos mirabolantes de Kiko Dinucci aonde se vê a respeito de um anão que previu que "o mundo ia acabar num poço cheio de merda" com elementos do hip hop e do rock nos arranjos; a próxima faixa já diz tudo, é Pra Fuder de vez as estruturas, com uma levada de sambão nos acordes de violão, a música mistura o linguajado contemporâneo com a pegada antiga do samba mais um quê de eletrônico, sendo um destaque principal do seu novo álbum; já na sequência temos Benedita, a canção que carrega um pouco dos ritmos africanos e também a presença de Celso Sim e do conjunto Bixiga 70 nos arranjos de metais, que se mostram surpreendentes por sinal, falando sobre um universo realista vivido nas periferias cheio de violência e drogas de uma forma crônica, comum em canções como esta; e quando parecia durar pouco, você ouve Firmeza!? e pensa como ela consegue se mostrar disposta a entoar qualquer coisa, neste caso, a linguagem contemporânea do subúrbio, e ainda contando com Rodrigo Campos - autor da música - dando aquela canja, dividindo os vocais com a lenda viva do samba pra deixar mais sensacional a música cheia das gírias dos dias atuais; enquanto em Dança, ela reacende aquela velha chama do bolero com elementos sonoros atuais, soando um pouco bizarro, mas não faz feio não e com outro figurão da nova cena da MPB fazendo duetos, desta vez é Rômulo Fróes que ganhou esse momento especial ao lado da cantora; em seguida nós temos O Canal, que não deixa rastros totalmente lastimáveis, mas também faz uma sintonia totalmente maravilhosa e retomando ao tempo de Alexandre O Grande e o canal de Suez com um pouco dos dias atuais nos versos; em seguida, temos Solto: uma canção totalmente maravilhosa, com um tom mais sutil movido por orquestrações e um violão e que acaba ganhando mais tonalidade sonora aos poucos e com uma letra belíssima, soando original e poética ao mesmo tempo; o final do álbum fica por conta de Comigo, que começa com uma orquestração instrumental que nos lembra algo mais experimental, mas depois de um minuto é que a música acontece mesmo, aonde Elza fala sobre carregar o que aprendeu com sua mãe pro resto de sua vida, apenas ela no estilo à capella e antes de encerrar de vez, um silêncio até que surge uma hidden track (faixa escondida) aonde ela canta "mas se eu me levantar ninguém irá saber e o que me fez morrer vai me fazer voltar" aonde se soa o descansar da cantora ou o último lamento antes que encerre o disco, de um estilo totalmente apoteótico.
Set do disco:
1 - Coração do Mar (Oswald de Andrade/música de José Miguel Wisnik)
2 - Mulher do Fim do Mundo (Rômulo Fróes/Alice Coutinho)
3 - Maria de Vila Madalena (Douglas Germano)
4 - Luz Vermelha (Kiko Dinucci/Clima)
5 - Pra Fuder (Kiko Dinucci)
6 - Benedita (Celso Sim/Pepe Mata Machado/Joana Barossi/Fernanda Diamant)
7 - Firmeza!? (Rodrigo Campos)
8 - Dança (Cacá Machado/Rômulo Fróes)
9 - O Canal (Rodrigo Campos)
10 - Solto (Marcel Cabral/Clima)
11 - Comigo (Rômulo Fróes/Alberto Tassinari)

Comentários

Mais vistos no blog