García y La Máquina de Hacer Pájaros - La Máquina de Hacer Pájaros (Microfón, 1976)

Era o dia 5 de setembro do ano de 1975 em Buenos Aires e o tradicional estádio Luna Park receberia com exclusividade o grande show de despedida de uma das principais bandas argentinas de rock Sui Generis, que decidiu parar no auge depois de vários sucessos e perseguições vindo dos militares que estavam a planejar um golpe contra o novo peronismo que estava tentando tirar a Argentina dos dias sombrios. O Sui Generis, duo de folk e progressivo liderado por Nito Mestre na voz, violão e flauta mais Charly García na voz, violão e teclados, havia se consolidado pelas suas canções de combate ao regime ditatorial e sendo voz de uma juventude amordaçada e calada pelos opressores, o duo passou por sérios problemas com o terceiro álbum Pequeñas Anécdotas Sobre las Instituciones por causa das letras e isso começou a preocupar o futuro do grupo, que aos poucos, sairia de cena causando uma tremenda comoção no público, foram realizados numa mesma tarde dois concertos porque tamanha era a multidão para ver a despedida do grupo - 30 mil pessoas chorando em ver pela última vez Nito e Charly juntos no mesmo palco. Desde as históricas lutas de boxe protagonizadas por Mono Fontana, Nicolino Locche, Carlos Monzón e Ringo Bonavena ou os funerais de personalidades como Carlos Gardel que não se via multidões em torno do Luna para um evento tão caloroso e que tivesse sido tão apegado a um fenômeno como o Sui Generis e mesmo com um grande show de despedida, o grupo ainda fez algumas apresentações, mas pelo interior argentino em cidades como Rosario, Comodoro Rivadavia e Caleta Olivia na região da Patagônia, onde marcou o fim de uma era definitivamente. Ainda antes da despedida, rolou de fazerem um coletivo chamado PorSuiGieco com músicos como Raúl Porchetto, León Gieco e María Rosa Yorio - então namorada de Charly com quem teria um filho chamado Miguel Ángel mais tarde. A amizade entre García e outros músicos como o próprio Gieco teria laços estreitos pois este viria a gravar do pianista El Fantasma de Canterville - que também levou nome de disco, que teria recebido o veto e aí a perseguição ao vozeirão do folk começaria a levar a um clima desagradável. Estamos agora no ano de 1976, e toda a magia do peronismo, de um governo progressista desapareceu com José López Rega articulando com a Alianza Anticomunista Argentina a derrubada da presidente María Estela Ramírez de Perón, a Isabelita como acabou sendo chamada a viúva de Juan Domingo Perón, que morreu em 1974 em atividade como presidente em sua Argentina depois de anos. Em 24 de março, era dado o golpe de estado, e quem assumia o poder era o general Jorge Rafael Videla, e assim iniciava um dos capítulos mais sombrios, sangrentos e que marcou para sempre como uma fase dark da Argentina na segunda metade do século XX. Músicos e diversos artistas, jornalistas e líderes de movimentos e sindicatos sofreriam perseguições por suas ideologias e discursos que afrontavam o poder fardado - ameaçados, tiveram que deixar o país em busca de liberdade. Pessoas eram desaparecidas e mortas sem que ninguém tivesse uma resposta positiva, era difícil viver na Argentina e lembrar que haviam amigos e parentes que sumiram e não haviam respostas era de cortar o coração.
García sentiu que viver dentro de seu país era um desafio e ser a voz da resistência era maior ainda, vendo amigos sendo obrigados a deixarem a terra do rio da Prata para acharem uma nova chance de se reinventar mundo afora, mas ele precisou buscar um novo conceito além do folk-rock e com o progressivo e o jazz fusion encontrou uma nova fórmula e montou a sua próxima banda com base nas influências de Yes, Steely Dan, Procol Harum e Beatles obviamente. Para isso juntou-se a Oscar Moro, ex-baterista da lendária banda Los Gatos que foi chave para o rock em espanhol em fins dos anos 60 e o baixista José Luis Fernández, que na época tocava na banda Crucis fazendo algumas apresentações inicialmente como trio e depois entra o guitarrista Gustavo Bazterrica - já com o nome de La Máquina de Hacer Pájaros coincidindo com uma tirinha de um cartunista chamado Crist cujo personagem se chamava García e a historinha de nome García y La Máquina de Hacer Pájaros - a coincidência que levaria ao disco de estreia brevemente estava aí. Porém Charly não queria ser exposto apenas como o bandleader e o principal integrante à frente do conjunto, queria ser mais um entre tantos músicos brilhantes, e nos primeiros concertos chegaram a contar com dois backing vocals chamados Ana María Quatraro e Héctor Dengis que não deram muito certo. Logo em seguida, ingressa ao grupo outro tecladista aclamado, Carlos Cutaia vinha de trajetória brilhante com Pescado Rabioso, onde havia tocado ao lado de Luis Alberto Spinetta e David Lebón. Tocando em lugares com públicos menores, não mais que 300 pessoas, e com um repertório sendo desenvolvido, após longos meses era a hora de entrarem em estúdio e gravarem o primeiro long-play homônimo do conjunto que teve Quatraro e Dengis nos vocais como convidados, e também velhos conhecidos de Charly - o ex-parceiro de Sui Generis, Nito Mestre ao lado de María Rosa Yorio - logo a esposa de García - nos vocais de uma das faixas. As gravações, de julho a setembro de 1976 foram realizados nos antológicos estúdios ION em Buenos Aires com a banda comandando tudo na produção, além de uma tirinha especial de Crist ilustrando a capa e contracapa brincando com a situação que originou o título da banda e do disco mais o encarte interno todo preto com as letras das músicas, ficha técnica e uma foto do conjunto feita por Uberto Sagramosso e colorizada pelo lendário artista argentino Juan Orestes Gatti, icônico pelas capas criadas para jurássicos do rock hermano Sui Generis, Pescado Rabioso, Pappo's Blues, Crucis, La Pesada e também para Fito Páez - e também futuramente para pôsteres de filmes do cineasta Pedro Almodóvar mais tarde.
A primeira faixa que abre de cara o disco é logo um hino do cancioneiro de García e também uma senha de acesso para seu novo projeto - Bubulina carrega diversos significados sobre alguém que o eu-lírico tanto amava que foi desaparecido logo com o golpe estourando, mas parece ter sido sacada de uma novela chamada Zorba, O Grego o nome Bubulina, é uma canção com ares mais românticos carregada de uma beleza poética e havia sido feita ainda nos últimos tempos de Sui Generis, tem uma levada de balada romântica com um forte quê de sonoridade progressiva marcada pelos riffs de guitarra de Bazterrica e os teclados de Charly que canta muito bem; a próxima música é um achado do repertório e tanto, outra canção que mostra a genialidade de García como comopositor, a singela Como Mata el Viento Norte é cheia de significados sobre um novo dia e sobre as coisas que acontecem ao redor de nós, a introdução com um banho de sintetizadores cortando a sutileza marcada pelo violão soa muito próxima de um Pink Floyd e de Genesis ao escutarmos e com Nito e Yorio fazendo coros; na sequência, uma música que mostrava essa essência nua e crua progressiva intitulada Boletos, Pases y Abonos narra os sentimentos de traição, da forma que usam as pessoas mais inocentes, a dura realidade e os desafios que passam em sua rotina diária, marcada por uma sequência melódica cheia de brilhos pelos sintetizadores que conta com Pino Marrone, do Crucis que participa nos teclados no final instrumental da canção; em seguida, outro rockão de peso no repertório mantendo a sequência de temas icônicos, No Puedo Verme Más trata sobre como se sentir desconectado de si próprio, na luta de buscar um sentido de identidade e da necessidade de aceitação e pertencimento, o baixo de Fernández e a guitarra de Bazterrica são a peça-chave instrumental desfilando belas melodias e com a participação nos vocais de Ana María Quatraro e Héctor Dengis nos coros e com um final apoteótico de Moro na bateria quebrando tudo; mantendo linearmente a sequência de canções de poesia e arranjos inteligentes, a banda nos apresenta Rock, uma canção que fala sobre anseios, frustrações, busca pela felicidade e satisfação em meio aos desafios que enfrentamos na vida - marcado pela introdução de piano muito próxima de Chopin e Beethoven e por algo já mais hard, a magia dos dedos de Charly ao piano é muito detalhada assim como a sua forma de mudar os timbres de voz quando ganha mais corpo sonoro; na sequência o grupo oferece o segundo tema mais curto do long-play, Por Probar el Vino y el Agua Salada, na qual tem uma personagem central da história, uma jovem chamada Julia que se envolve com o rei dos loucos querendo ser sua prometida, com versos inicialmente positivistas e partindo pra uma coisa mais melancólica, sombria até entendermos no final uma mensagem ligada aos desaparecimentos e mortes durante o início da ditadura, com um violão bem dedilhado e um violino que soa como se Jean-Luc Ponty estivesse solando um country diferenciado, e soa bem mais suave até sintetizadores e percussão ganharem mais presença perto do minuto final; o encerramento do disco é marcado por um tema conhecido pela sombriedade nos versos de Ah, Te Ví Entre Las Luces que mostra versos profundos sobre isolamento e anseios, mas tem mais ligação com a forma que eram encontrados alguns perseguidos pela ditadura - mortos ou sobreviventes dos crimes e torturas cometidas pelos militares, com mais de 11 minutos, a banda faz uma excelente cozinha: Bazterrica mandando na guitarra com seus riffs viajandões, Moro dando seu show na bateria, Cutaia em seus teclados, Fernández colocando o baixo pra esquentar e García nos teclados sendo o coração sonoro da banda.
A banda seguiu excursionando pela Argentina em meio ao primeiro ano em que o governo militar escondia seus podres da forma mais suja possível a ponto de fazer um filme promovendo a Argentina romantizada naqueles tempos chamado Ganamos La Paz (Vencemos a Paz), e no ano de 1977 em que o mundo foi dominado por dois polos extremamente diferentes, o punk e a discothèque, La Máquina decidiu encerrar suas atividades não sem antes deixar outro petardo na discografia - o clássico Películas, mas aí já é uma outra história. O disco mostra uma gigantesca evolução na salada de referências sonoras de Charly sem perder as raízes argentinas como o folklore e o tango, tão presentes em suas influências como o progressivo e o fusion naqueles tempos, a estreia do La Máquina é a prova de que certos discos a gente ouve numa boa e deixa nos levar por uma longa viagem sonora.
Set do disco:
1 - Bubulina (Charly García)
2 - Como Mata el Viento Norte (Charly García)
3 - Boletos, Pases y Abonos (Charly García)
4 - No Puedo Verme Más (Charly García)
5 - Rock (Charly García)
6 - Por Probar el Vino y el Agua Salada (Charly García)
7 - Ah, Te Ví Entre Las Luces (Charly García)

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