Um disco indispensável: Bitches Brew - Miles Davis (Columbia Records, 1970)

Quadro-geral breve sobre o que Miles fez no jazz dos anos 1950 e 1960 para não sermos tão complexos demais como sou exageradamente nas resenhas, lá vai: em 1950 ele já era um nome conhecido da cena jazzística, gravava seus trabalhos na Prestige Records e alguns materiais depois editados no antológico Birth of the Cool, mas, seu vício em heroína poderia ter quase o prejudicado ao longo dos anos, porém, soube como dar a volta por cima. Após ficar doze dias trancafiado num quartinho da farmácia de seu pai, e foi ao palco do festival de jazz de Newport para mostrar que ainda tinha sons a mostrar e fazer, tocou um clássico de Thelonious Monk chamado 'Round Midnight, e, foi graças a George Avakian que ele voltou ao mainstream do jazz e começou sua nova jornada editando LPs desta vez pela Columbia Records como 'Round About Midnight em 1957, Milestones em 1958 e o seu aclamado Kind of Blue, a magnum opus que tornou-se divisora de águas na forma de fazer música na segunda metade do século XX. Logo em 1964 montou um novo quarteto de apoio, e com este, realizou diversos concertos e gravou vários álbuns - Herbie Hancock no piano, Ron Carter no baixo, Wayne Shorter no saxofone e Tony Williams na bateria, e discos como E.S.P. de 1965, Miles Smiles e mais Sorcerer em 1967 e a trinca de 68 que mudaria de vez o seu estilo de tocar e fazer jazz: o ainda acústico Nefertiti, o experimental Miles in The Sky com um astral psicodélico até na capa, e por fim, Filles de Kilimanjaro, o álbum que já mostrava bem a sua migração do jazz acústico para um som cheio de órgão, piano elétrico, baixo e guitarra. Estamos em fins dos anos 1960, o mundo não era mais o mesmo, movimentos pelos direitos civis buscavam ser ouvidos e a Guerra do Vietnã acontecia mesmo com os protestos contra esta, o rock tinha se consolidado como a música jovem da década e grupos como The Doors, Velvet Underground, Big Brother & The Holding Company, Kinks, Rolling Stones e os Beatles mais o guitarrista Jimi Hendrix, revolucionário por colocar blues, jazz, música experimental e de outros cantos do mundo em uma guitarra com riffs embalantes fazendo de seus discos um workshop do instumento "digassi di passagi". O soul também estava mudando as cartas do baralho: com uma influência muito forte do black power e do movimento Panteras Negras, o funk balanceado começou a ganhar peso através de nomes como Funkadelic, The Meters, Ohio Players e nomes como Isaac Hayes, Marvin Gaye, Diana Ross e Stevie Wonder buscavam novas direções nas suas músicas que ajudassem a expressar os sentimentos e as indignações daqueles que são discriminados em uma América tão promissora de sonhos e esperanças, com os olhos fechados para o preconceito vivenciado pela raça afroamericana
Foi preciso Carlos Santana, o ainda desconhecido guitarrista levar Miles ao show de Hendrix no Fillmore East que se impressonou com Hendrix e o que ele fazia na guitarra através de pedais e sua jornada jazzística elétrica começou a ganhar uma faceta exposta, ali mesmo Miles descobre de vez Hendrix, a ponto do lendário guitarrista querer juntar para um dream team o trompetista e o beatle Paul como baixista - mas, a parceria não ocorreu embora Jimi tenha vindo a falecer mais adiante e Macca estava a um passo de pôr um fim na sua banda, embora seus outros 3 parceiros também estivessem afim. A música de Sly Stone e seu som funk-afroamericano-afrocaribenho-psicodélico universal e congêneres foi apresentado por sua esposa Betty e isso ajudou muito mais nas novas direções musicais, no caso do uso de piano elétrico, Chick Correa introduziu o Fender Rhodes logo em Filles de Kilimanjaro, e no álbum seguinte, In a Silent Way, ele deu o pontapé inicial para o que acabou se tornando o fusion que ele ajudou a propagarJusto em agosto do mesmo 1969, Miles decidiu voltar ao estúdio novamente poucos dias depois de lançar In a Silent Way com a presença bendita de boa parte do pessoal que esteve envolvido no mesmo como o guitarrista John McLaughlin, o baixista Dave Holland, o saxofonista Wayne Shorter (presente desde 1964), e os tecladistas Chick Correa e o austríaco Joe Zawinul batendo ponto mais uma vez com o trompetista. Juntamente deles, estavam também o pianista Larry Young, o baixista Harvey Brooks e os bateristas Jack DeJohnette e Lenny White mais os percussionistas Don Alias e Juma Santos para complementarem o time de peso que daria um luxuoso auxílio nas gravações realizadas nos dias 19, 20 e 21 de agosto - menos de um mês depois do lançamento do já citado LP e um dia depois de ter acontecido o majestoso e antológico festival de música e arte contracultural, Woodstock - e ali nomes como Janis Joplin e sua então nova banda Kozmic Blues, Sly and The Family Stone, The Who, Grateful Dead, Creedence Clearwater Revival, Jefferson Airplane, Crosby Stills Nash & Young, Joe Cocker, Santana e Jimi Hendrix fechando o festival tocando o hino estadunidense como protesto contra a Guerra do Vietnã. Enquanto isso, nos estúdios Columbia em New York, já nesses 3 dias após o festival, para o trompetista, tudo soava perfeito, chegou, orientou aos músicos o poder deles improvisarem como quiserem, e com uma incerteza sobre o uso de efeitos de estúdio sugerido por Macero, mas foi feito - loops de fitas, os ecos e a câmera de reverberação, algo até então jamais pensado nos álbuns, coisas vistas até então em materiais de musique concrète francesa ou até mesmo nos registros discográficos dos Beatles posteriores à 1965, e isso ajudou a romper barreiras com o estilo tradicional de se tocar jazz como de costume até então. Ou seja: há males de Miles que vêm para o bem do jazz ou seja: mesmo com todas as incertezas e expectativas dos críticos, eles conseguiram em um tempo recorde fazer um dos melhores registros de jazz da segunda metade do século XX e do seu conjunto da obra.
A começar falar do título deste seu álbum - Bitches Brew - o uso do nome bitch (vadia, ou p... em inglês) já deu um impacto gigantesco, assim como a capa psicodélica com ares surrealistas à la Dalí e no estilo dos murais de Diego Rivera - criação brilhante do alemão Mati Klarwein (1932-2002), que naquele mesmo ano estampara sua arte na capa de Abraxas, o segundo e mágico vinil do guitarrista Santana que o consagrou mais ainda como artista e músico completo. Logo de cara, já aviso que este é um disco duplo e quiçá um dos melhores de jazz no formato, com 94 minutos hipnotizantes onde Miles e sua trupe encontram os sons do mundo para fusionar e tornar em um só, graças à conexão dos músicos com o trompetista. A primeira parte do LP começa com uma sonzeira garantida, uma trinca de piano bem agitada e matadora, é o caminho ideal que nos leva a Pharaoh's Dance, criação de Zawinul, com uma série de acordes mágicos ao piano elétrico, com o groove do baixo bem balanceado e com um toque jazzístico divino - e é só entrar o trompete nervoso de Davis que a coisa flui mais ainda, mesmo com Zawinul fazendo um bom papel de contribuinte e tocando muito piano, a bateria marcada e com várias levadas que dão uma mudança contribuem muito; a seguir, a faixa que encerra a primeira parte e ocupa o lado B, justo a faixa Bitches Brew, contempla-se aqui a sua nova forma de se fazer jazz: com o grave do baixo e as levadas rítmicas pulsantes e agressivas que casam com o sopro de Miles, e a presença do clarinete de Bennie Maupin e o balanceio continua sem parar, ganhando um ar funky nos seus longos 27 minutos, a coisa flui puramente inspiradora e se salvam muito na cozinha sonora onde até John McLaughlin atender ao seu chamado ele manda ver um alto solo antes dos 7 minutos e desfila seu lado guitar hero chegando a duelar com o cool que rege aqui pelo seu instrumento de estimação,e o baixo de Holland não mostra ser desafinado como muito se imagina e soando puramente livre; com o segundo álbum rolando, ainda podemos contar com outra primorosa faia de destaque do repertório, justo Spanish Key com seus 17 minutos de puro groove, não precisamos correr atrás do ritmo certo da canção para entender - ela já nos conecta a um mundo bem groove e também marcado pelo peso do funk/soul, mas também não nos decepciona nos momentos em que a guitarra de McLaughlin se mostra muito potente nos seus riffs e as baterias dão um show à parte, assim como os pianos elétricos - seria esta uma faixa perdida de Sketches of Spain que ganhou uma roupagem diferente? Ou será que não? Isso pouco nos importa, o que importa mesmo também é a curtíssima faixa que leva o nome do guitarrista, John McLaughlin é o seu cartão de visitas para as melodias entoadas por ele, fazendo um bom trabalho na guitarra na única faixa em que Miles não aparece com seu trompete, impressionante mesmo! E sem deixar de destacar o restante da cozinha que arrasam vibrantemente com um peso elétrico, assim como o clarinete de Mauppin que reaparece com muito brilho e ajuda ainda mais na energia sonora que esta carrega; e se um encontro possível não aconteceu para que Jimi e Miles tocassem junto, aqui o segundo busca do primeiro uma forte influência e é assim que temos Miles Runs the Voodoo Down, inspirado na antológica Voodoo Chile o tema clássico do LP Electric Ladyland onde as guitarras e os pianos dão uma forte sensação de soar como bruto e suingante demais no decorrer do instrumental e isso é garantido mesmo com os solos de Zawinul, Correa, McLauglin e de Miles também; fechando de vez o bolachão, temos aqui uma obra-prima de responsa mas com mais suavidade, falo aqui de Sanctuary onde o baixo acústico de Holland segura boa parte da música e ajudando a gente a ficar seduzido pelas melodias, que chega a soar explosiva em um certo momento e retomando depois à suavidade com um balanço marcado pelo piano elétrico e seção rítmica que é uma beleza, e o trompete cada vez soando melhor (óbvious!). Ainda que sobre na edição CD uma faixa bônus (já com a série de relançamentos Columbia Jazz pela subsidiária retrô Legacy), uma gravação feita já em princípios de 1970, e que pouca gente acaba se deparando com esta, a inédita Feio, na qual contou com o ritmista brasileiro Airto Moreira (Quarteto Novo) na percussão e o baterista Billy Cobbham, uma mistura sem igual da pegada brasileira com o jazz psicodélico criado por Davis e que merece uma boa escuta para quem quer saber do tempero brasileiro presente nesta.
O disco foi recebido de uma forma boa por um lado pela sua inovação e por buscar outras direções do seu som, mas foi mal recebido por ver Miles como um cara que deixou de lado a essência sofisticada e o primor raiz do gênero - ainda há controvérsias em torno disto, mas teve quem não pudesse resistir. Influenciou uma série de trabalhos na época dos anos 70, e abriu portas para que seu ex-bandmate Hancock fosse além em antológicos álbuns como Sextant, Headhunters e Thrust, mas também foi onde Miles lançou álbuns experimentais e viajandões como o duplo On The Corner em 1972, e os geniais esquecidos Big Fun mais o expandido Get Up With It de 1974 - algumas com sobras de gravações realizadas no início do seu período de eletrificação. Houve quem fosse influenciado, como Thom Yorke do conjunto Radiohead que buscou em Bitches Brew a fonte de inspirações para o brilhante OK Computer (1997), mas Donald Fagen, do Steely Dan, nem conseguiu engolir o disco como uma obra-prima, o que deixou sem reações surpresas - porém, o gênero fusion acabou fluindo diversos álbuns do SD posteriormente. Há diversas listas em que destacam como um dos álbuns mais influentes da música, a The New Yorker em uma lista com os 100 melhores do jazz, deu o 45° lugar com outros 5 títulos, assim como Kind of Blue. Na Rolling Stone, quase não é difícil reagir com o posicionamento dado ao álbum nos 500 Melhores Álbuns de Todos os Tempos, o justo 94° lugar para essa bíblia do electric jazz. Além de figurar na lista dos 1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer e obviamente estar presente em diversas listas importantes sobre jazz sempre destacando a nova transição sonora de Miles como um inovador pelas portas abertas que conectaram de vez o jazz com o funk e o rock dando assim uma nova visão e forma de fazer música muito comum no psicodelismo e com o rock progressivo mais adiante.
SET DO DISCO 1:
1 - Pharaoh's Dance (Joe Zawinul)
2 - Bitches Brew (Miles Davis)
SET DO DISCO 2:
3 - Spanish Key (Miles Davis)
4 - John McLaughlin (Miles Davis)
5 - Miles Runs the Voodoo Down (Miles Davis)
6 - Sanctuary (Wayne Shorter)
FAIXA BÔNUS DA REEDIÇÃO EM CD (1999):
7 - Feio (Wayne Shorter)

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