Um disco indispensável: Cuarteto Característico Cordobés: A 2000 En Vivo - Rodrigo (Magenta, 1999)

Abril de 2000, Buenos Aires: o templo sagrado do boxe e de grandes eventos importantes envolvendo esportes e cultura Luna Park recebia naquele instante um palco que carregava um ringue de luta e sua atração era um artista que chegava ao palco tal como um boxeador ovacionado por milhares de pessoas que iam de crianças a adultos. Com um cabelo azulado, e chegando como um boxeador preparado para combater a inveja de quem via Rodrigo Alejandro Bueno como mais um produto midiático forçado da onda tropical e das bailantas - eventos noturnos populares em países de linguagem hispânica com gêneros musicais de origem caribenha e locais da América do Sul - populares especificamente na Argentina, onde a cumbia e o cuarteto fazem muito sucesso entre um público mais humilde, suburbano. Mas, afinal, o que é cuarteto? É algum estilo moderno? Sim, moderno para os argentinos, que na época, viviam entre caminhos como o do folklore enraizado nos costumes gaúchos, da região pampeana argentina, em especial das províncias de Córdoba, Santa Fe, La Pampa e a própria Buenos Aires - capital argentina. A província de Córdoba, em especial, a capital que leva o mesmo nome da mesma, testemunhou o nascimento deste tal cuarteto, quando ainda se chorava a morte de Gardel desde 1935, e o tango se renovava entre instrumentistas brilhantes como Aníbal Troilo, Astor Piazzola, Carlos Di Sarli, Pedro Láurenz e Osvaldo Pugliese - lendas imortais, e cantores como Julio Sosa, Francisco "El Tano" Fiorentino, Roberto Goyeneche, Edmundo Rivero e as presenças femininas de Tita Merello e Libertad Lamarque, e o tango perdurou-se como um gênero forte e soberano no seu auge até meados dos anos 1940. Em 1943, um músico chamado Augusto Marzano, um santafesino (natural da província de Santa Fe) radicado em Córdoba capital decide largar um conjunto chamado Los Bohemios para fundar um novo grupo chamado Cuarteto Leo, em homenagem à sua filha Leonor, que, assim como o pai, era musicista: o pai no contrabaixo e ela ao piano, ela desenvolvera ao lado dele um estilo diferente que diferia do tango, com tons menores do contrabaixo, resultando-se em uma canção mais pegadiça e bailável - assim nascia o cuarteto. Junto deles, o violinista José María Salvador Saracho e o acordeonista Miguel Gelfo acabaram construindo uma bela história na música argentina, e aos poucos, conquistavam o público provinciano de Córdoba e Santa Fe com um som diferente. Nos anos 1950 gravam seu primeiro disco e em 1960 seus álbuns são mais difundidos para o público argentino, dali saiu Carlitos "Pueblo" Rolán, vocalista de 1965 a 1971, vindo antes do Cuarteto Don Chicho. A música regida pelo piano de Leonor gerou diversos filhotes como Rolán, um jovem chamado Berna Bevilacqua tornando-se conhecido como El Pibe de Ouro e cujo grupo contava com um jovem chamado Juan Carlos Jiménez, que saiu do Cuarteto Berna para juntar-se a Coquito Ramaló no Cuarteto de Oro - um dos outros grandes expoentes do gênero. E Carlitos Jiménez, como era conhecido na época, deixou Cuarteto de Oro em 1984 para lançar-se em carreira solo e tornando-se La Mona Jiménez o rei do cuarteto, enquanto Las Chichi, El Negro Videla, Orly, Chébere - do qual saiu dois vocalistas, Sebastián e Pelusa. Nesse universo cuartetero é que entra um jovem rapaz chamado Rodrigo Alejandro Bueno, filho da dona de um quiosque Beatriz Olave e do produtor musical Eduardo "Pichín" Bueno, creseceu num ambiente musical - Olave ajudou muito a investir nos sonhos do jovem menino Rodrigo, nascido em 21 de maio de 1973 em Córdoba capital, e que estreou com 15 anos em um LP chamado La Foto de Tu Cuerpo, embora já ganhava seu dinheiro aos 13 anos. Bueno era um músico precoce, Pichín via no filho a frustração de artista, e o afastava dos vícios da fama que o colocariam em risco total.
Por volta de julho de 1994, seu pai e gerenciador artístico, Pichín, falecia justo antes de realizar um show em uma danceteria - parecia o fim, mas era o começo de uma nova fase que o tiraria de um ostracismo cinco anos depois. Após uma breve passagem pela gravadora Sony Music, do qual veio o flop comercial Saboroso, em 1995, troca a multinacional nipo-americana por uma gravadora argentina, a Magenta, e sob o cuidado de José Luis Gozalo, conhecido como El Oso (O Urso), ele daria a volta por cima não como um artista de música tropical que aqui no Brasil soariam como bregas pelo melodismo em algumas destas enquanto artista da Polydor. Do rapaz de cabelos longos, figurinos exagerados que iam desde o blazer de ombreiras com estampas até da moda, passando até por camisetas muito  para a época, para um rapaz de cabelos curtos, aos poucos evoluindo seu vestuário e já desligado da imagem de um simples cantor tropical para aí sim, ser o novo monstro sagrado do cuarteto. Seu instantâneo salto começou com o bem-sucedido Lo Mejor del Amor em 1996, no qual o seu repertório ainda se prendia um pouco aos primórdios, depois, vem a gravar um ao vivo chamado La Leyenda Continúa em fins de 1997 na danceteria Metropolis, e no ano seguinte acaba por emplacar Cuarteteando que lhes rendeu as canções Ocho Cuarenta, Si Tu Supieras  e também Y Voló, Voló como os principais sucessos nas paradas especializadas. A partir de 1999, ele começou a preparar o salto maior da sua carreira, depois de um álbum em que juntava canções gravadas em outros trabalhos com coisas inéditas intitulado El Potro, que acabou sendo uma forma carinhosa de chamá-lo, e, eis que surge o visual mais conhecido - o cabelo curto de tons vermelhos ou azulados - o azul poderia ser mais escuro, num tom violeta ou até esverdeado, e com regatas que exibiam o seu corpo esculpido no auge. Em uma conversa com Jorge Moreno, seu aliado esquerdo depois de Gozalo e do acordeonista Ariel "Tedy Tessel", Bueno teve a ideia de gravar um segundo ao vivo, na casa noturna Scombro Bailable em José C. Paz, em julho, e foram promovendo pelas rádios, os poucos programas de TV que lhes dava espaço - e no dia 23 de julho de 1999 foi a sua prova de fogo. A noite em que José C. Paz, cidade da província de Buenos Aires testemunhou a consagração de Rodrigo em um disco feito durante uma bailanta na Scombro Bailable, o que é um feito incrível - captar de uma noite bailanteira o equivalente da sua energia em palco ao lado de sua banda - algo mais ou menos parecido com o que o conjunto baiano de axé Chiclete Com Banana conseguiu realizar dois anos antes trazendo a energia do carnaval baiano para o ao vivo Chiclete É Festa! com muito êxito inclusive. Acompanhado de uma banda que já o vinha acompanhando desde um bom tempo, que contava com integrantes que iam desde o acordeonista Ariel "Tedy" Tessel, o tecladista Sergio Yanotti e o pianista Mariano Parmigiani, o baixista Daniel Castillo, o guitarrista Luis Altamirano, o baterista Alberto Campos mais o conjunto rítmico: Gustavo Pereyra na güira, Darío Vita nas congas e outros instrumentos de percussão, Elias Vázquez Martínez na tambora e Cristian Martínez nas timbaletas, com o coro formado por Roger Rosas Pérez, Mariano, Luis, Sergio, Daniel e Luis Castillo com um jovem de 18 anos chamado Walter Olmos, que também teria seu momento de brilhar no show.  Tudo isto com a santa ajuda de um cara que ajudou a captar cada momento mágico desta noite: em um pátio fora da casa noturna, Pichón Dal Pont gravava em um estúdio móvel sozinho e depois estava sob as mãos dele, Moreno e Rodrigo a decisão de o que seria colocado em um simples CD, pois o vinil já deixava de ser uma midia muito consumida e em evidência desde meados dos 90. O álbum faria uma homenagem às raízes do gênero, a começar pelo título de Cuarteto Característico Cordobés: A 2000 En Vivo, com produção do próprio, e cuja capa trazia uma ilustração de Gonzalo Ruiz em que mostra-se um conjunto em cima de um praticável com os instrumentos tradicionais: piano, baixo acústico, acordeom e violino com uma plateia e o cantor em uma silhueta cinzenta, e, no encarte original que acompanhava o CD, vinha além das letras, uma breve história do cuarteto reverenciando Cuarteto Leo, Rolán, o Cuarteto de Oro com La Mona, Berna e com fotos dos músicos - no ano seguinte a sua morte, a capa foi trocada por um close de Rodrigo com um olhar maquiavélico abrindo uma fresta, são raras as edições com a clássica capa que lembra uma história em quadrinhos com facilidade de achar.
Capa da reedição do mesmo álbum no ano de 2000. A arte original
de Gonzalo Ruiz foi trocada por uma das imagens do encarte.
Deixando de lado as informações úteis sobre o álbum, vamos para o faixa-a-faixa: ao botarmos o CD para rodar, temos aqui uma abertura épica: o locutor manda a primeira sílaba do nome do artista, fechando com um "Rodrigo, carajo!" e, com a euforia da plateia, ele manda ver ao embalo da percussão Yerba Mala, a canção que consagra logo de cara este concerto - a intenção de capturar um show sem tanto exagero de adição de instrumentos, overdubs que sempre são úteis - e a história de um cara que tenta esquecer alguém com um amor novo, e o ritmo da percussão ajuda muito a dar um agito, sem exagero - o acordeon também faz a diferença; em seguida, a banda manda ver e Rodrigo já emenda Como Le Digo, sobre um cara casado que fica na incerteza de que ama uma outra pessoa, e que não esconde a infidelidade - a traição é algo precisamente destacado nos versos da música, e o bailado parece não ter fim mesmo; adiante, o que temos neste repertório é hit atrás de hit - a marcação rítmica que dá a deixa para Fuego Y Pasión, que destaco o solo de acordeom de Tessel e os coros no refrão, de um casal de amantes que não são bem vistos, apesar de cada um ter seus cônjuges e filhos, para eles, nada importa além do sentimento que carregam um pelo outro - a pulação de cerca é uma temática bem notável nesta e outras canções; deixando de lado o momento cornitude para o patriotismo à moda cordobesa, o cantor emenda no show o que podemos chamar de um dos hinos da província e da cidade, Soy Cordobés é muito mais do que uma das mais conhecidas canções dele, é a história do cuarteto destacando os personagens indispensáveis como o conjunto de Leonor, Rolán, Berna, La Mona e Ramaló com o Cuarteto de Oro, a reverência ao clube Belgrano do qual Bueno era torcedor, e sua admiração pelo vinho, a farra, e admite que é de Córdoba sem documentos pois leva o sotaque da capital com a multidão gritando euforicamente no meio da canção; na sequência, sem perder o fôlego, ele manda mais outra da linha sobre o tipo que tenta demonstrar que é o homem ideal para uma determinada mulher comprometida - e é bem isso que podemos ouvir em Qué Ironía, em que ele fala à tal moça comprometida que o seu amado não a entrega nada, é aquele que não desiste de provar que é o amor da vida dela, o ritmo se mantêm e a música não pode parar, no final ele anuncia diante da multidão que continuam gravando o recital ao vivo, o que soa como uma notícia boa pra moçada; em diante, ele convida a nós para uma viagem a Córdoba capital através de El Viaje, com uma pegada mais hot, sensual nos versos, o cara que entra na vida da mina e quer "viajar" sob o seu corpo em uma noite de paixão, nada que deixe a desejar pela sonoridade novamente, uma vez que o estilo cuartetero de tocar continua plenamente; na segunda metade, o acordeon de Tessel emenda uma levada de valsa que depois cresce com o tempo e dessa forma nasce Aprendiz, uma das poucas covers do repertório, sem muita firula, e, que entra no repertório com primor sobre os ensinamentos de um amor com sofrimentos e dores, e na qual o eu-lírico amaldiçoa a "professora" que ensinou a ele, nada mal para uma canção escrita por Alejandro Sanz que ficou conhecida na voz da espanhola Malú e que na Argentina teve um intérprete de nível como O Potro; em seguida, temos no repertório, uma canção mais roqueira pela levada, mas que segue comprometida com o gênero de Córdoba, uma história engraçada que entra no repertório como um tema de destaque, Amor Clasificado, apesar de ser um pouco bobinha, é outro grande clássico, aqui com Rodrigo cantando sobre um amor que ele decide procurar através do jornal La Voz na página de classificados, e com uma voz soando como se estivesse no telefone  - há quem não goste muito, mas ajuda na grandeza deste registro; adiante, quando escutamos o ressoar das congas, é porque parece vir uma canção mais da pegada tropical, a introdução de salsa acaba indo para a cumbia, e temos Por Vivir Jugando - um tema na qual o cantor principal não é Rodrigo e sim o baixista de sua banda, foi a chance de Maquinaria Castillo ter seu momento de brilhar com Rodrigo - este repetindo poucos versos e só aparecendo mais no final da canção sobre alguém que viveu brincando com os sentimentos da pessoa amada e acabou ficando só, o final, saltando da cumbia para o cuarteto com um grand finale épico; na sequência, uma canção mais emocionada, e que carrega todo um peso emocional a começar pela parte instrumental - uma dedicatória antes de começar a canção, Un Largo Camino al Cielo é uma bela homenagem ao músico e companheiro de estrada Alejandro Biasco, falecido entre 1998 e 1999 e cujo pouco sabe-se dele, mas, aqui conhecemos sua devoção pelo time de futebol Racing, do bairro Nueva Italia e do ícone lendário do rock Charly García, e a homenagem acabou sendo muito lembrada após Bueno chocar seu carro e morrer prematuramente em 2000, e após encerrar a música, dá a deixa para Walter Olmos cantar entoando "Olé, olé, olé, olé... Walter! Walter", dando a deixa para a música seguinte; ao ser anunciado, já é a hora e a vez da estrela de Olmos brilhar e acontecer - com sua voz que lembra mais ou menos La Mona, ele manda Por Lo Que Yo Te Quiero - ao entendermos a letra, soa como se fosse de um amor à distância, e na voz de um rapaz com 18 anos e uma carreira promissora, e o show parece encerrar após ouvirmos "Fuertes aplausos para Walter", mas, em um intervalo de 30 ou 40 segundos, ouvimos a plateia eufórica por mais bis - e eis que temos após pedidos da multidão para que Rodrigo não deixasse, e, de surpresa, emenda um "Quien dijo que yo me iba?" (Quem disse que eu iria?) mandando ver o final que poucos notam, a hidden track que fecha de vez o CD em ritmo de cumbia, Himno del Cucumelo, uma canção surgida do grupo Las Manos de Filippi e não era a primeira vez que o Potro gravara ela: é a única regravação presente neste álbum, uma vez que ele gravara na época do álbum Lo Mejor del Amor e soa como uma ode ao cogumelo de zebu, porém, falta chover e pede por um aguaceiro cair e fazer as plantinhas crescerem para aí sim a festa rolar, embora, o álbum já tenha sua festa terminada por definitivo aqui com o locutor agradecendo aos presentes pela noite com uma sensação de magia ainda a nos perdurar.
Com o lançamento deste trabalho em dezembro de 1999, inicia-se a crescente euforia midiática em torno do cantor com 26 anos, que, em uma década como cantor, conseguiu sobreviver ao preconceito e rompeu barreiras logo de cara - enchendo o Teatro Astral na capital argentina, e, fazendo 45 shows em poucos dias logo no verão de 2000, de cara, surge a oportunidade de lotar em 13 oportunidades num mesmo abril o templo sagrado dos esportes e entretenimento, o famoso Luna Park, e, como um lutador de boxe, chegou e venceu a tudo e a todos, atingindo o ápice da Rodrigomanía ou Rodrigazo, fenômeno que, poderia ser comparado até mesmo à Beatlemania, porém, interrompido dois meses depois - num maldito 24 de junho de 2000, enquanto dirigia sua Ford Explorer onde estavam a ex-mulher Patricia Pacheco e Ramiro, fruto da relação de ambos, o locutor Alberto Pereyra, o produtor Jorge Moreno e o ator Fernando Olmedo, filho do humorista Alberto Olmedo, o auto chocou contra a barreira de contenção e acabou tirando a vida não somente de Rodrigo, mas a de Olmedo - cujo pai se suicidara de forma estranha em 1988. O grupo de músicos fez uma homenagem sob o nome de La Auténtica Banda de Rodrigo tempos depois com o álbum Seguimos Cuarteteando, e cada músico seguiu com sua vida. Gozalo gerenciou a carreira de Olmos, considerado o legado de Rodrigo e que tinha uma carreira promissora - interrompida por um suicídio em 7 de setembro de 2002 enquanto se preparava para uma apresentação. Mesmo assim, o irmão Ulises Bueno, que chegou a cantar nos ensaios para o Luna Park, iniciou sua jornada e sempre bem recebido, porém, evitando comparações ao eterno irmão talentoso. O cuarteto ganhou mais outro deus supremo, e, observa do Olimpo dos ícones do gênero uma nova geração o valorizar pelas bailantas de uma parte da América do Sul afora.
Set do disco:
1 - Yerba Mala (Flavio Bueno/Elías Vázquez Martínez)
2 - Como Le Digo (Flavio Bueno/Paola Palencia)
3 - Fuego Y Pasión (Flavio Bueno/Tedy Tessel)
4 - Soy Cordobés (Flavio Bueno/Tedy Tessel)
5 - Qué Ironía (Paz Martínez)
6 - El Viaje (Flavio Bueno/Tedy Tessel)
7 - Aprendiz (Alejandro Sanz)
8 - Amor Clasificado (Flavio Bueno/Daniel Altamirano/Vikingo)
9 - Por Vivir Jugando (Flavio Bueno/Daniel Castillo/Luis Castilo)
10 - Un Largo Camino al Cielo (Flavio Bueno)
11 - Por Lo Que Yo Te Quiero (Juana Delseri/Daniel Franco/Dante Franco)
12 - Himno del Cucumelo (Hernán "Cabra" de Vega) - faixa escondida

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